Fundamentos de uma política de pleno emprego no Brasil

Por José Carlos de Assis*

Para se entender o consenso neoliberal brasileiro em torno de uma política que nos trouxe à maior crise social de nossa história, determinada pelo alto desemprego - e cuja destruição deve ser entendida como uma precondição para uma política de pleno emprego, tal como propomos - convém recuar rapidamente ao Plano Cruzado. Então, havíamos recém-saído do regime militar, para cuja superação os trabalhadores, desde as greves do ABC em 1978, deram contribuição decisiva. Era politicamente impossível fazer um plano econômico sem levar em conta os interesses imediatos da classe trabalhadora. Num ambiente econômico em que a maioria das categorias passava a reivindicar, e muitas conseguiam, reajustes salariais mensais, o imperativo econômico de pôr em marcha um plano contra a inflação se contrapunha ao imperativo político de proteger salários.

Os trabalhadores, depois do experimento de Francisco Dornelles na Fazenda, estavam ultra-desconfiados do Governo Sarney, pois Dílson Funaro ainda não havia dado sinais de a que viera. Era necessário não só fazer um plano que atendesse aos interesses dos trabalhadores, mas também convencê-los disso. Essa foi a razão política do gatilho salarial de 20%, que reinstituiria a indexação.

Quase dez anos depois, no Plano Real, a sociedade brasileira estava estressada no último grau pela retomada da inflação galopante. Era evidente que a indexação não protegia os salários. E a própria ação do Estado contra a inflação havia sido desmoralizada pelo Plano Collor, cujo único benefício acabou sendo desvalorizar drasticamente a dívida interna, à custa da indignação das classes dominantes dela detentoras.

Nesse ambiente econômico, foi muito fácil para a equipe de Fernando Henrique, coesa em torno de princípios neoliberais e infensa a pressões políticas de baixo para cima, desindexar os salários, manter indexados os preços públicos e super-indexar o capital financeiro na forma de taxas de juros básicas extremamente elevadas. Já antes, Marcílio Marques Moreira, elevando as taxas básicas de juros a pretexto de esterilizar o excesso de liquidez derivado da devolução dos recursos bloqueados pelo Plano Collor, deu início a escalada da financeirização da economia. Não surpreende, pois, que um levantamento do economista Miguel Bruno tenha mostrado, para espanto geral, que entre 1993 e 2005 a renda dos juros tenha se elevado, em média anual, a 29% da renda interna disponível - tendo havido ano em que chegou a 44%.

Isso poderia até ser tolerado, se a contrapartida fosse uma situação de pleno emprego. Veríamos o rebaixamento ou o congelamento dos salários em favor dos lucros e dos juros como algo temporário a ser corrigido pelo efeito da retomada do investimento sobre o mercado de trabalho. Sabemos que não é assim. Temos tido uma política sistemática de desemprego, que importamos sobretudo da Europa Ocidental, não dos Estados Unidos. O Consenso de Washington é a formulação de um inglês, sendo que economistas ingleses, alemães e franceses, presentes nas agências multilaterais como FMI, Banco Mundial, BIS e BID, se apresentam como muito mais ortodoxos que norte-americanos, estes a exemplo do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz e de Paul Krugmann - para não falar em rebeldes como L. Randall Wray.

É que os Estados Unidos não têm base moral para impor políticas neoliberais ao resto do mundo, porque nunca as impuseram a si mesmos, desde a Grande Depressão. Governos norte-americanos, sejam democratas, sejam republicanos, adotam sistematicamente políticas fiscais e monetárias de pleno emprego, não as chamadas políticas de austeridade fiscal-monetária tão de agrado dos ricos. Isso faz parte da natureza mesma de seu pacto social fundamental. É o virtual pleno emprego que tem compensado, nos Estados Unidos, um estado de bem estar social menos generoso que o europeu ocidental. Em contrapartida, é por ter um estado de bem estar generoso que a Europa Ocidental tolera taxas tão elevadas de desemprego como as que têm prevalecido ali nos últimos anos, em torno de 10% nos países mais populosos.

O Governo Fernando Henrique importou o neoliberalismo europeu, mas não seu estado de bem estar social; e aceitou as regras liberais dos Estados Unidos, para consumo externo, dispensando, porém, suas políticas protecionistas e de pleno emprego. Na essência, nossa política fiscal-monetária tem as características mais perversas, do ponto de vista social, jamais observadas em qualquer economia capitalista, em qualquer tempo da história. Temos provavelmente a única maquinaria institucional no mundo que transfere de forma sistemática renda de pobres para ricos - na forma de superávit primário constituído por recursos líquidos tirados também dos pobres e usado para pagar o serviço da dívida pública pertencente exclusivamente aos ricos: de um lado, temos o Banco Central aumentando ou mantendo em patamares extremamente elevados os juros reais; de outro, temos o Tesouro correndo atrás com a extração de tributos, inclusive dos pobres, para pagá-los.

O estrago que essa política tem feito nos verdadeiros fundamentos da economia brasileira é alarmante. Citarei duas situações apenas. Do ponto de vista demográfico, o sistema previdenciário brasileiro está em seu melhor momento. A razão entre a população economicamente ativa e a população total vem subindo continuamente desde 1980, quando estava em torno de 58%, para 65% em 2005. Entretanto, nesse mesmo período, a razão entre o nível geral de emprego e a população em idade ativa sai de mais ou menos 60% em 80, vai a um pico de 65% em 1990 e desaba para a faixa dos 54% a partir de 1995 até 2005.

Não temos déficit na seguridade atualmente. Temos, sim, como vários especialistas têm apontado, uma recorrente apropriação imoral de recursos da seguridade para o orçamento geral da União, a fim de que seja acumulado superávit primário. Entretanto, se o desemprego se mantiver nos níveis atuais, de algo como 10% de desempregados absolutos e uns 30% de informais ganhando menos de um salário mínimo, a Previdência acabará entrando em crise. Se não houvesse outras razões, razões sociais e razões políticas, esta seria suficiente para exercermos o princípio da Constituição, artigo 170, de busca do pleno emprego.

A financeirização exacerbada da economia se vê também pelo lado da queda relativa do investimento. A taxa de acumulação do capital fixo produtivo - continuo seguindo as estatísticas de Miguel Bruno - e a taxa média do lucro, em qualquer economia "normal", evoluem segundo uma mesma tendência. Isso de fato aconteceu no Brasil, entre 1950 e 1992. A partir daí, contudo, elas descolam. A taxa de lucro vai de 15% em 1992 para 29% em 2005. Já a taxa de acumulação de capital fixo produtivo desaba nesse mesmo período de 16% em 1950 para 2%, desde 1992 a 2005. Ou seja, o investimento produtivo no Brasil tem atendido meramente o crescimento da população, enquanto o lucro, alimentado pelos juros, se tornou a expressão não da relação direta capital-trabalho, mas da relação pagadores de tributos-credores da dívida pública interna, com o Estado mediando a transferência.

Diante disso, não creio que possa haver muitas dúvidas de que temos que reverter essa política - chamemo-la de financeirização da economia, ou de política econômica de desemprego. Há um sinal no fim do túnel, que é o PAC-Plano de Aceleração do Crescimento. Ele é importante porque, depois de anos, mais de duas décadas, voltamos a falar em investimento público de infra-estrutura e em melhoria das políticas públicas gerais. No meu modo de entender, o PAC vai indo bem. Mas não é suficiente. Não chega a ser mesmo coerente, pois mantém inalteradas as bases da política macroeconômica de Fernando Henrique e do primeiro Governo Lula.

A política de pleno emprego pela qual estamos lutando se baseia em quatro pontos fundamentais. Primeiro, a redução para patamares internacionais da taxa básica de juros; segundo, o controle do movimento de capitais, sem o que seria inviável reduzir soberanamente os juros básicos sem o risco de uma sabotagem dos endinheirados; terceiro, em face da queda de juros, e mantida inicialmente a carga tributária, surgiria uma folga fiscal de mais de R$ 50 bilhões adicionais ao orçamento, por ano, em dinheiro de hoje, para financiar um programa vigoroso de infra-estrutura e de políticas públicas; finalmente, seria necessário administrar a taxa de câmbio num nível favorável às exportações, para escaparmos de um risco cambial.

O programa de investimento público em serviços públicos básicos e em infra-estrutura seria a chave para relançar a economia pelo lado da demanda, do aumento do investimento privado e do aumento do emprego. Ao mesmo tempo, nos introduziria no mundo das melhores políticas de bem estar social universal, rumo à verdadeira democracia social. Note-se que apenas baixar a taxa de juros, embora necessário, não é suficiente para estimular o pleno emprego. Empresários não investem porque o juro está baixo, mas porque a demanda está alta. Ninguém produz para as prateleiras, mesmo porque não há crédito sem base de renda. É o gasto público, ampliando a demanda, que puxa o investimento privado.

Por outro lado, é o processo de busca do pleno emprego que possibilita, pelo próprio mercado, a melhora do salário real. Assim como melhoram as contas públicas e previdenciárias, não apenas pela queda dos juros mas como conseqüência do crescimento econômico. A própria carga tributária pode baixar, sem afetar o investimento público. Um exercício simples mostra que, com crescimento anual do PIB de 7%, e partindo de uma carga relativa de 37% do PIB, mesmo com o valor absoluto da carga aumentando 2% ao ano - portanto, um pouco acima do crescimento demográfico -, em apenas cinco anos a carga poderia ser reduzida para 27% do PIB sem afetar um crescimento moderado do orçamento fiscal e de seguridade!

Não é apenas à inteligência de vocês que apelo para justificar a política de pleno emprego, embora a inteligência dessa política seja evidente por si mesma desde o New Deal.

Apelo a sua consciência política de economistas. A ninguém que trate de questões sociais pode ser dado tratá-las de forma politicamente neutra na base de equações e de modelos. Querendo ou não, pela simples escolha de nossa disciplina, somos economistas políticos, interferindo no jogo de poder real da sociedade.

O alto desemprego, racionalizado como estrutural pelos ortodoxos, é uma violência política desnecessária, uma agressão aos fundamentos da democracia e do capitalismo regulado. Fichte perguntou aos arautos da revolução francesa e da revolução americana: se a base da sua democracia é a propriedade privada, o que vocês farão, na democracia, com os que não têm propriedade? A únicaresposta possível, fora a liquidação da própria propriedade privada defendida por Marx, foi originalmente dada por Keynes e Kalecki: o Estado, mediante a regulação do capitalismo, deve garantir condições de pleno emprego. Pelo que, para estabilizar uma democracia, a contrapartida necessária da propriedade privada é o pleno emprego!

PROJETO DE LEI DE INICIATIVA POPULAR DO PLENO EMPREGO


O Congresso Nacional decreta:


Art. 1o O Banco Central do Brasil tem como atribuição a gestão da política monetária de forma a garantir um suprimento de moeda compatível com a estabilidade de preços, o crescimento sustentável da atividade econômica e a busca do pleno emprego.

Parágrafo 1o As metas da política monetária a ser executada pelo Banco Central serão estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional.

Parágrafo 2o O Conselho Monetário Nacional será constituído pelo Ministro da Fazenda, pelo Ministro do Planejamento, pelo Ministro do Trabalho, pelo Ministro do Desenvolvimento, pelo Ministro da Agricultura, por um representante das Confederações patronais, por um representante das Centrais Sindicais e pelo presidente do Banco Central.

Parágrafo 3o O presidente do Banco Central apresentará ao Congresso Nacional, a cada quadrimestre civil, relatório detalhado da execução da política monetária, demonstrando sua coerência em relação ao estabelecido no caput deste artigo.

Art. 2o O Governo estabelecerá, nos orçamentos anuais, a conciliação entre a política monetária e a política fiscal no sentido de garantir um nível de demanda agregada na economia suficiente para favorecer o pleno emprego com estabilidade de preços.

Art. 3o Em situação caracterizada como de alto desemprego, o Governo fica autorizado a projetar e a realizar déficit nominal no orçamento anual, com o conseqüente aumento da dívida pública, em paralelo com a redução da taxa básica de juros e do superávit primário.

Parágrafo Único. Caracteriza-se como de alto desemprego, nos termos desta lei, uma situação do mercado de trabalho na qual a taxa média de desemprego das seis principais regiões metropolitanas, medida pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, fique por três meses seguidos superior a 4,5% da força de trabalho.

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*José Carlos Assis é economista, professor, coordenador da Campanha do Pleno Emprego, representante do IBDES no XVII Congresso Brasileiro de Economistas.

Fonte: www.cofecon.org.br

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