O papel da mídia no debate da maioridade penal

 Gustavo Barreto, da Rede Nacional de Jornalistas Populares, março de 2007. Adaptado de entrevista concedida a Jamile Chequer, do Portal Ibase .

A “reivindicação” da redução da maioridade penal sempre retorna à pauta da imprensa de grande alcance. E a cobertura da imprensa é bastante triste, quase tão triste quanto os últimos acontecimentos. A vida de um ser humano é algo extremamente valioso, único, algo que os parentes das vítimas entendem bem. Quem parece não entender isso são as pessoas que compõem parte do sistema midiático contemporâneo.

De que forma a descrição contínua e irracional de que “o menino foi arrastado por 7 quilômetros e 4 bairros até a morte” ajuda na compreensão do que aconteceu? Perceba que esta é a grande frase da imprensa. Não é uma sentença do tipo “precisamos repensar o peso que damos à vida” ou algo parecido. Não podemos dizer que inexistem reflexões desse tipo, mas não é esse o tom da cobertura.


Logo após o acontecimento, importantes telejornais começaram a destacar diversos crimes em que jovens menores estavam envolvidos. A ênfase era sempre no fato de que um dos envolvidos em um crime tinha menos de 18 anos. Dentro desta linha de pensamento, a maioridade penal seria decorrência de uma incoerência do Código Penal. Neste momento, poucos registram – não me recordo de nenhum jornal, rádio ou TV – estatísticas sobre quantas crianças estão fora das escolas por falta de vagas ou sem moradia adequada. Não tentam esclarecer como funciona uma escola ou como os professores se relacionam com a comunidade ou com os pais. Nada disso é pauta. Relações muito mais absurdas, como a idade de um adolescente infrator, são destaque nas primeiras páginas.


Sociedade mobilizada?

É equivocado supor que a sociedade esteja mobilizada em relação a este tema. Ouvi frases em importantes telejornais como “Existem seis propostas para reduzir a maioridade penal que entraram em pauta nesta semana no Congresso...”. Este é o tipo de pressão legítima que um grupo organizado faz para chamar a atenção do grande público em relação a uma causa. É absolutamente legítimo, repito, em uma sociedade democrática.

A nossa questão é que não há democracia real no Brasil. Como escreveu um leitor (Jorge Afonso) sobre um texto que escrevi recentemente, “Democracia começa com ampla participação das organizações populares na mídia. Sem isso, é ditadura, é manipulação oligárquica em prejuízo do povo e do País”.


Portanto, não há controle social, não há pacto social, não há diversidade cultural. Se houvesse, não haveria problema em um grupo fazer pressão pela redução da maioridade. Teríamos outros seis, sete grupos, com seis ou sete outras propostas diferentes. Em algum momento, chegaríamos a um consenso. Avançaríamos, apesar das diferenças. Isto não acontece em um país onde, em centenas de anos, todas as grandes mudanças políticas se deram de cima para baixo. Felizmente, a meu ver, essa cultura sofre uma forte resistência, uma forte contracultura.


Foco no problema

A concentração de riquezas – cultural, econômica ou política – é uma questão que considero central quando se percebe a defesa que a imprensa de grande circulação faz da redução da maioridade. O mínimo de investigação sobre a violência na juventude – estudos de casos internacionais, literatura sobre o tema, entre outros – nos faz admitir que estamos falhando na formação da nova geração.

O modelo que adotamos, cujo principal traço é o consumo, já é por si só uma violência brutal e cotidiana contra os jovens. É um erro fatal aceitar a violência simbólica como menor que a violência física. Rubem Fonseca publicou um conto definitivo sobre o tema denominado “O Cobrador” (1979). Não há sociedade possível com esse modelo de consumo e concentração de riquezas.


Não sei se é possível responder sobre o que torna possível essa postura por parte da mídia. Mas aceito arriscar que a tentativa de negar esta contradição fundamental do capitalismo – o consumo e a concentração de um lado; a exclusão e a pobreza do outro – é uma peça-chave nesse jogo. Muitos dos formadores de opinião bem-pagos, desfrutando de todas as benesses da vida contemporânea, nunca conseguirão entender que o estilo de vida que vendem por meio da indústria cultural e midiática também é desejado por outras pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades. Em vez disso, põem a culpa na lei.


Com isso, perdem todos aqueles que gostariam de discutir coisas úteis para o nosso futuro. Ganham aqueles que estão satisfeitos com as mortes, com o caos urbano – e muitos estão. Perdem os que sofrem diariamente com este caos.

Nunca vi um repórter de uma grande TV ir lá na Avenida Brasil, onde trabalho, para falar sobre o caos no sistema de transporte mais popular da minha cidade, que é o ônibus. Compare, apenas para citar um exemplo, com a cobertura do sistema de transporte aéreo.


Direitos negados

Os debates trazidos pela mídia são extremamente aprofundados, em alguns casos. A imprensa brasileira tem um poder imenso no país e pode se aprofundar em qualquer tema que desejar. A questão não é bem essa. Ligamos a TV e nos fazem a seguinte pergunta: você acha que deve haver redução da maioridade penal ou ela deve ser mantida? Minha resposta é que esta pergunta é inútil, obsoleta, não foca na solução, e sim no problema. É como aquela piada em que o comandante de um navio usa toda a sua autoridade para exigir que o farol saia de sua rota marítima imediatamente.


A tática é simples: as ONGs de direitos humanos adequadas ao sistema atual, que é violento e excludente, responderão que a proposta de redução da maioridade penal é inadequada, que se trata de uma idéia equivocada. É o suficiente para morrer o debate. A continuidade do debate, que é a real situação da infância e da adolescência no Brasil, fica de fora. O Estatuto da Criança e do Adolescente é deixado de lado, mais uma vez. O ECA é letra morta porque este é o desejo de muita gente importante no país.


Por uma mídia responsável

Temos que tratar desse importante e complexo tema em partes. Por exemplo, analisar a situação das crianças de 0 a 5 anos. Como estão sendo tratadas? Há hospitais e creches suficientes? Há apoio do governo para pais que tenham dificuldade em criar seus filhos? Estamos reprovados já nesta questão. Existem muitos outros temas – casas de recuperação, educação especial, exploração infantil, mídia dirigida a crianças, e por aí vai. São muitos temas.

Perceba que, já nos primeiros passos, falhamos. Em todos os outros, há falhas graves, como o pouco investimento de recursos (não só financeiros). Pense sobre todas essas questões e depois perceba a inutilidade que é incluir na pauta a questão da maioridade. É um foco no problema que é trágico, culturalmente enraizado, incrivelmente equivocado.


Outra questão importante, sempre recorrente na imprensa, é a tal "falência do Estado" na área de segurança pública. O despreparo da sociedade como um todo em enfrentar esse problema apenas reforça a idéia de que o Estado falido precisa ser reerguido. Precisa ser reformulado e fortalecido.

O sistema de valores baseado nas regras do mercado – literalmente endeusado pela imprensa de grande alcance – falha e sempre falhará em regiões em que o poder aquisitivo for baixo. Esta é uma lei inerente do mercado, que não enxerga cidadãos, apenas consumidores. Não enxerga comunidades locais, apenas nichos de mercado. A comunicação não-violenta dá lugar ao marketing agressivo das grandes cidades.


É importante destacar como surgem as pautas jornalísticas da imprensa tradicional. Tente imaginar um importante editor lendo previamente um estudo dentro do tema da infância e, a partir daí, procurando pautas que sejam condizentes com o que diz o documento. Um trabalho como este consome, por vezes, longos anos e muitos recursos para ser finalizado. Pode-se deduzir facilmente que não é assim que surgem as pautas. O primeiro fator que predomina numa redação é o fator de impacto.


Algo “sensacional” e “impactante” é muito bem-visto porque prenderá a atenção do telespectador. Daí a importância da frase “o menino foi arrastado por 7 quilômetros e 4 bairros até a morte”. Muitas pessoas morrem todos os dias no Rio de Janeiro de causas trágicas. Trabalhamos em uma rede de jornalistas contra a violência e sabemos de muitos casos. Alguns são destacados pelo fato de terem alto fator de impacto e, portanto, grande possibilidade de repercussão.


Enquanto a imprensa puder estender o sofrimento de uma família atingida por um crime “sensacional”, melhor para ela. O jornalismo cidadão aparece apenas como um apêndice, um detalhe, depois de uma enxurrada de sangue e sofrimento. Não é o que guia o jornalismo tradicional, que se serve da tragédia e da dor alheia.

Novamente, não há problemas significativos em se ter uma imprensa com este comportamento em países efetivamente democráticos. A diversidade acaba por criar uma riqueza cultural muito importante, em que a violência midiática tem sua importância e é exposta ao ridículo. Mas o que dizer de um país em que a imprensa mais sensacionalista possui alguns dos mais destacados meios de difusão?


Sociedade civil e mobilização

Quanto ao perfil da população, as diferenças no tratamento dado a casos de acordo com o gênero, cor, posição social e outros fatores existem, até porque homens são diferentes de mulheres, que são diferentes de homossexuais, ao passo que negros possuem uma tradição cultural diferente dos brancos, e por aí vai.

Uma das questões centrais é que, no cenário de violência urbana em que nos encontramos, são evidentes as disparidades sociais das vítimas. Pesquisa recente apresentada na PUC-RJ mostra que uma morte em Copacabana equivale para a mídia a aproximadamente 600 mortes na Maré, no Complexo do Alemão ou em qualquer outro bairro pobre da cidade do Rio de Janeiro.


Estamos falando claramente em um extermínio sistemático da população pobre e majoritariamente negra, com importantes conseqüências na estruturação de milhares de famílias brasileiras, quase todas de baixa renda. Mães e esposas perdem filhos e maridos – os homens são a maioria entre as vítimas, segundo as pesquisas – e acabam por ter suas vidas mudadas drasticamente. Este é um dado importante que se relaciona em grande parte com a formação socioeconômica do nosso país, de tradição racista e segregacionista.


Por outro lado, é importante não adotar a tática da segregação de movimentos sociais que desejam os mesmos direitos, que buscam rumos parecidos. Esta é uma tática suicida em uma sociedade que tem uma tradição de organização popular baixíssima. A sociedade civil organizada depende de um desenvolvimento histórico complexo e, no caso brasileiro, precisa evoluir muito.

Não há tradição no país de grandes passeatas, de grandes movimentos de união nacional, não como em outros países. Imagine esta sociedade, com pouquíssimos grupos de tradição de luta por direitos fundamentais, ainda mais dividida em grupos menores, em movimentos segregados.


Portanto, a diferença de tratamento vem da imprensa, sim. Uma imprensa de classe, com seus próprios temas e preconceitos. No entanto, também é uma diferença estimulada pelos movimentos sociais, em menor grau; e histórica, em maior grau. O desenvolvimento da sociedade civil brasileira tem demonstrado importantes avanços, mais ainda é insuficiente para efetivamente pressionar por mudanças estruturais nos próximos 10 ou 20 anos.


”Direitos humanos” e invisibilidade

É interessante refletir sobre esta expressão, “direitos humanos”. Um uso muito recorrente que se faz dessa expressão é o direito de um ser humano, em casos isolados e evidentemente muito trágicos (do contrário, a imprensa não teria tanto interesse). Não se pode ignorar as perdas individuais, que são terríveis, únicas, muitas vezes inaceitáveis. Uma morte pode desestruturar muitas outras pessoas que conviviam com as vítimas. Como uma avó que perdeu um neto de 6 anos poderá, com sua avançada idade, resistir a esta perda?


No entanto, mantendo a lucidez que precisamos em momentos de crise, os direitos humanos são basicamente os direitos fundamentais que todos os cidadãos de um país devem ter, sem exceção e sem excessos. Governos que estejam à frente de um país com baixo pacto social devem agir rápido para reverter o quadro, promovendo profundas transformações sociais imediatas.


No Brasil, administradores sem nenhuma sensibilidade e uma profunda incompetência para gerir grandes quantidades de recursos descobriram que obras de um grande evento esportivo que ocorrerá em junho deste ano, na cidade do Rio de Janeiro, poderia se tornar uma grande “vergonha” mundial.

Decidiram, então, multiplicar por 10 um investimento que já era altíssimo para os padrões nacionais. Pois é disto que sentem vergonha: da possibilidade de não conseguir realizar um evento internacional de grande porte. Ao final desse evento, não haverá mudanças estruturais na cidade em que estão sendo investidos os recursos.


Caso nossa vergonha fosse pelos altos índices de pessoas privadas dos direitos fundamentais que existem no Brasil – índices desastrosos e inaceitáveis para um país tão rico como o nosso –, talvez aumentassem por 10 a atenção – recursos humanos e financeiros, gestão mais eficaz etc. – voltada para áreas como educação, infra-estrutura, ciência e tecnologia, moradia, e por aí vai.


É nessa linha de raciocínio que são eleitas as prioridades da imprensa. Em particular, como já citei, basta analisarmos em que contexto os casos de violência urbana acontecem e verificar porque são destaque. No final de 2006, os cariocas se assustaram com uma série de ataques coordenados e ficaram à mercê de uma guerra declarada entre policiais corruptos e traficantes de drogas. A história, que não era nova, explodiu na mídia apenas quando uma das vítimas morreu em Botafogo, bairro central da elite carioca.


Depois do Centro da cidade, Botafogo é o principal centro empresarial carioca, onde se localizam os escritórios de algumas das transnacionais estabelecidas no estado. Fica entre o Centro e bairros nobres como Ipanema e Copacabana. 90% das pessoas ali residentes possuem renda para pagar um condomínio de, pelo menos, R$ 200 e aluguel de R$ 400 a R$ 1.000, como destaquei à época em artigo sobre o tema. Não é para qualquer um.


O jornalismo da mídia empresarial se torna sério quando a tranqüilidade de pessoas com esse perfil econômico está em jogo. De resto, o telespectador não ficará sabendo acerca do sofrimento alheio pela perda de parentes e amigos queridos. Serão ignorados. Vão se tornar invisíveis, verdadeiros cidadãos de papel, como sugeriu o jornalista Gilberto Dimenstein. Para essas outras pessoas, o tal “nível insuportável” – uma “novidade” na imprensa – já chegou há algumas décadas.


Neoliberalismo cultural

A exploração de casos individuais é importante porque o jornalismo vive de “personagens”, de pessoas que representem segmentos do grande público de algum modo. Não vejo mal nisso. A questão é que o destaque é direcionado politicamente, geralmente a pessoas que não tocam na ferida. Quando o compositor MV Bill e o sociólogo Luiz Eduardo Soares argumentam que uma criança comete atos de violência como quem dá um grito para uma sociedade que ignora sistematicamente suas crianças, são poucos os canais que surgem.


Uma das faces da pós-modernidade, que poderíamos chamar de neoliberalismo cultural, é exatamente a individualização de uma situação que é social. Há nesses casos um encerramento da História como processo, como condutora dos acontecimentos atuais. Torna-se algo pessoal: um criminoso matou meu filho e deve morrer por isso. Como a legislação não permite, ele deve ir para a cadeia e apodrecer lá.


Dentro desta lógica, não é difícil entender a conivência da imprensa com o extermínio que ocorre nasperiferias das metrópoles. Este problema é muito mais grave do que a mídia de grande alcance deixa transparecer. Problemas de ordem moral são as grandes questões das novelas e telejornais. Enquanto isso, o extermínio de jovens “quase pretos, e são quase todos pretos”, para citar aquela bela música de Caetano Veloso e Gilberto Gil, é sustentado pelo silêncio criminoso de meios de comunicação ocupados com seus próprios negócios.


Os guardiões morais da nossa sociedade silenciam brutalmente quando olhamos para os últimos acontecimentos. De novo, nesta mesma música (“Haiti”), há um trecho interessante que trata deste tema: “E (se) o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto / E nenhum no marginal”. Como argumentei, passaram-se mais de 15 anos desde que a música foi lançada e, aparentemente, esta mentalidade irracional continua viva.


Mudanças possíveis

 
Existem diversos tipos de ações válidas em comunicação. Primeiro, precisamos lembrar que, conforme argumentou Edgar Morin, esta é uma questão central da nossa sociedade, tal como foram as tradições religiosas e humanistas, em um primeiro momento, e as questões nacionalistas, mais recentemente. Não é à toa que, relacionando com estas duas grandes questões dos séculos passados, Morin elegeu a “cultura de massa” como a grande questão da nossa sociedade – e isso já em 1967.

Este desafio se torna dramático, visto que o poder midiático é indissociável, conforme demonstrou Milton Santos, de um poder financeiro crescentemente centralizado nas mãos de poucas empresas e grupos transnacionais.


Uma das mudanças, de caráter fortemente institucional, é a regulamentação das leis referentes aos meios de comunicação. Muitos dos ativistas ligados ao tema demonstram, há décadas, que uma democracia não pode ser real e efetiva sem a multiplicidade de vozes, sem as organizações populares no comando de sua própria representação simbólica. Não há país desenvolvido que não tenha conquistado este direito fundamental.


De caráter mais popular, é fundamental que todo e qualquer movimento social reconheça o mais rapidamente possível a centralidade da comunicação para as causas defendidas atualmente.

A comunicação une os movimentos sociais de duas formas distintas: primeiro porque dá visibilidade mútua a grupos que estavam isolados. Segundo porque se torna um dos fatores de convergência desses movimentos, uma vez que todos desejam ampliar seu raio de ação e têm como ferramentas imprescindíveis as modernas técnicas de comunicação popular.


Outro ponto importante é a iniciativa, da parte dos jornalistas, de tratar o tema da violência da forma mais transversal possível. Não estou falando de excessivas reflexões filosóficas que acabam por esquecer os desafios imediatos que temos de enfrentar. Trata-se de acompanhar o processo de violência urbana em que estamos inseridos – tratando como processo, e não como crises isoladas – do ponto de vista educacional, político, comportamental, filosófico.


Interessante notar que, com esta onda de preocupação com as mudanças climáticas, é cada vez maior a consciência de que o mundo é um só e a natureza não conhece fronteiras nacionais. Seria interessante que pensássemos o mesmo sobre a natureza humana e enfrentássemos a violência dentro de um processo complexo, e não mais de acordo com o binômio “criminosos-homens de bem”.

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Gustavo Barreto, integrante da Rede Nacional de Jornalistas Populares, co-editor da revista Consciência.Net e da editoria Internacional do Fazendo Media e pesquisador da Escola de Comunicação da UFRJ. Contato: [email protected]

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