“Nível insuportável” da violência no Rio de Janeiro

Gustavo Barreto, 30/12/2006

Novamente se institui o medo em uma grande cidade do país, desta vez no Rio de Janeiro. Os números até a noite da quinta-feira (28/12) são os seguintes: pelo menos 32 ataques a cabines e patrulhas da PM, delegacias e nas ruas de 18 bairros da capital, além de localidades nos municípios de Niterói, Itaboraí, Nilópolis e Mesquita.

Foram ainda 18 mortos (9 civis) e 30 feridos, entre baleados e queimados, sete ônibus e oito carros incendiados. Em um dos ataques, morreram carbonizados dentro de um ônibus sete passageiros que viajavam do Espírito Santo para São Paulo e passavam pela altura de Cordovil. Uma vendedora ambulante que trabalhava perto de cabine da PM e foi atacada em Botafogo levou um tiro pelas costas e morreu.

Assim como a evidência mais importante de um suspense de Edgar Allan Poe, estrategicamente colocada na mesa da sala de modo que ninguém suspeite que se trata de um documento importante, é necessário resgatar algumas obviedades sobre estes acontecimentos. E a primeira, que vou argumentar ser a mais importante, diz respeito à percepção que temos do ocorrido.

Estado ausente

As autoridades em segurança pública no Rio de Janeiro há muito perderam parcialmente o controle da situação. Como é de conhecimento de muitas comunidades cariocas e fluminenses – exceto em áreas da Zona Sul e parte da Zona Oeste, onde moram muitos políticos, empresários e banqueiros –, em pelo menos 20% da cidade do Rio de Janeiro e da região metropolitana o Estado não entra mais. Com isso, serviços essenciais (como luz e gás) e não tão essenciais assim, como TV a cabo – ou a “GatoNet”, em referência à maior empresa de TV a cabo do país –, são feitos de forma clandestina, muitas vezes com taxas fixas cobradas pelos traficantes e, mais recentemente, pelas milícias formadas por policiais, ex-policiais e bombeiros. Portanto, como se vê, esta não é uma novidade.

Destacam-se também os ataques simultâneos realizados pelo tráfico. Novamente, deixando de lado a visão estreita da mídia empresarial, estes ataques sempre aconteceram, de forma simultânea, por três diferentes grupos.

A saber:

(i) Policiais em serviço, que entram atirando em comunidades cujo nível de renda é baixo e a maior parte das pessoas é negra. Nestas empreitadas, o número de morte de civis inocentes também é alto, como denunciam diversos relatórios de organizações como as respectivas associações de moradores, o Centro de Justiça Global e a Anistia Internacional, entre outros. Em tempo, se as vítimas, civis ou militares, não fossem inocentes, lembremos que têm direito a um julgamento justo, na forma da lei. A pena de morte não é legalizada, destaca-se, mas muito comum e apoiada por setores militaristas e parte das decadentes classes média, alta e até mesmo baixa.

(ii) Policiais, ex-policiais e bombeiros fora de serviço, que à margem do Estado decidiram fazer “justiça” com as próprias mãos. Conhecidas como milícias, a última informação dá conta de que teriam dominado 80 comunidades ( O Dia online , 29/12/2006). Trata-se da banda podre do serviço de segurança pública, com sustentação na iniciativa privada (por meio da segurança particular a empresas em áreas consideradas de risco), que igualmente são uma ameaça ao bem estar da população. É o que podemos chamar de marginais criminais, ou seja, pessoas atuando à margem da lei na área criminal.

Para se ter uma pequena idéia sobre a importância e o terror das milícias, veja o trecho do jornal O Dia sobre a situação na Cidade de Deus: “No bairro de Jacarepaguá, as bocas-de-fumo ainda resistem apenas na Cidade de Deus. Ainda assim, nos últimos meses, os boatos de uma possível invasão da milícia — que utilizaria 150 homens com fuzis e granadas — ganhou força e, com medo, todos os líderes do tráfico passaram a dormir fora da favela. Os principais deles são os irmãos Paulinho e Julinho da 15, abrigados no Complexo do Alemão, e o tio deles, Jorge Ferreira, o Gim, que vive em um dos apartamentos da localidade conhecida como Moc, no Morro da Mangueira.” ( O Dia online , 29/12/2006)

(iii) Finalmente, traficantes em disputa por território de influência, seja com a polícia, seja com outros traficantes. Uma política de segurança pública que não privilegia a inteligência, como é o caso de todas que até hoje já existiram no Estado, não pode fornecer muitos dados sobre os traficantes, até porque estes atuam sem o respaldo da lei. As informações disponíveis, como a do dia 26 de dezembro que dava conta dos ataques do dia 28, são insuficientes para atacar a raiz do problema, já que se sabe que os lucros com o narcotráfico são de uma ordem de grandeza tal que não poderiam sobreviver sem o respaldo do sistema financeiro internacional.

Direitos e deveres à margem da lei

Construo a idéia de marginais criminais porque estes atuam em regiões onde a concentração de marginais sociais é grande, ou seja, pessoas à margem da lei na área social. Nestas áreas, o Estado não proporciona educação básica e fundamental suficiente e de qualidade, a política em saúde é precária, os leitos são poucos e os profissionais em saúde não possuem condições dignas de trabalho, o saneamento básico é vergonhoso (o que limita uma política em saúde eficiente) e as condições de moradia são desumanas.

A propósito da “falência do Estado” na área de segurança pública em grandes cidades, com a qual estamos todos de pleno acordo, é preciso destacar uma outra obviedade. O despreparo da sociedade como um todo em enfrentar este problema apenas reforça a idéia de que o Estado falido precisa ser reerguido. Precisa ser fortalecido. O sistema de valores baseado nas regras do mercado – o Grande Misericordioso, segundo os colunistas da grande imprensa – falha e sempre falhará em regiões em que o nível de poder aquisitivo for baixo.

Destaca-se, por exemplo, que um dos personagens mais importantes desta História é certamente o bom policial – honesto, verdadeiramente preocupado com a transformação da sociedade, consciente dos problemas da comunidade. Com salários irrisórios, péssimas condições de trabalho, falta de planejamento e de inteligência na articulação das buscas e o risco de morte cada vez mais iminente, que perspectiva este profissional pode ter?

O Rio desconhecido

Por outro lado, as soluções messiânicas inúteis, por cruel ironia, vêm dos mesmos grupos que consideram o Governo Federal assistencialista ao conceder a Bolsa Família, que beneficia exatamente estes grotões e é um programa que nunca será plenamente justo, contudo consegue atingir metas de saúde e metas educacionais com seus beneficiados na ordem de 90% – os outros 10% são os casos que a mídia empresarial, cujos interesses atendem ao Grande Misericordioso, mostra na TV e no rádio.

O Estado republicano, que dá conta de interesses coletivos e não apenas da pequena fatia de brancos acomodados, no asfalto, entre o Centro e a Barra da Tijuca, chega onde as novelas da Rede Globo não chegam. É o Rio de Janeiro que os outros Estados não conhecem e nunca vão conhecer, a não ser pessoalmente.

As soluções, portanto, não são messiânicas e mesmo as aparentes saídas de “gerações de empregos” escondem armadilhas. O tão comemorado Complexo Petroquímico Rio de Janeiro, por exemplo, é sem dúvida um avanço para a Petrobrás – empresa de administração pública e grande parte dos lucros privados – e deve gerar 212 mil empregos diretos e indiretos até 2011, quando o complexo começa a funcionar. Esta é a boa notícia.

A outra é que o empreendimento empregará menos de 50 mil pessoas durante sua operação. Eis o sutil e mais cruel detalhe, que poucas pessoas ousaram colocar em questão, entre elas o diretor de Inclusão Social do BNDES, Elvio Gaspar: são 212 mil empregos gerados para a construção (grande parte de mão-de-obra não qualificada) e apenas 50 mil efetivados (em números brutos). Qual o resultado desta conta? “Infelizmente, boa parte deles se instalará ao redor do empreendimento, favelizados, aumentando a demanda por serviços públicos como água, saúde e educação, que não estão disponíveis sequer para a população atual”, afirma Gaspar, em artigo no jornal O Globo da última quinta (28).

Sobre o “nível insuportável”

Estas questões estão em conexão com a própria complexidade do Brasil, em que trabalhadores das principais empresas localizadas nos centros urbanos têm seus direitos plenamente respeitados, com declínio de direitos à medida que o centro empresarial se afasta e culminando nos grotões de um país do século XIX, em que o trabalho escravo ainda pode ser encontrado.

O caos na segurança pública, igualmente, é uma construção histórica que atingiu em algum momento um “nível insuportável”, tal como vocifera a mídia empresarial. Em que momento isso aconteceu?

Aconteceu não. Acontece. E aqui, depois de um longo raciocínio, estamos no ponto-chave do problema, onde reside a “novidade”: entre os diversos locais que sofreram ataques de traficantes, milícias ou policiais em serviço, um era em Botafogo. Talvez seja útil falar um pouco sobre este bairro, para os que aqui não residem ou não tenham prestado a devida atenção ao assunto.

Botafogo é um bairro absolutamente central para a elite carioca. Depois do Centro da cidade, é o principal centro empresarial, onde se localizam os escritórios centrais de algumas das multinacionais estabelecidas no Estado. Fica entre o Centro e bairros nobres como Ipanema e Copacabana e 90% das pessoas ali residentes possuem renda para pagar um condomínio de pelo menos R$ 200 e aluguel de R$ 400 a R$ 1.000. Não é para qualquer um. O jornalismo da mídia empresarial se torna sério quando a tranqüilidade de pessoas com este perfil econômico está em jogo. De resto, o nobre leitor não ficará sabendo acerca do sofrimento alheio pela perda de parentes e amigos queridos. Para estas outras pessoas, o “nível insuportável” já chegou há algumas décadas.

Disputas políticas e ação consciente

No plano administrativo, uma das maiores tragédias do nosso Estado – efetuando-se evidentemente a dívida histórica de governos anteriores – se deu durante os últimos oito anos de governo, com a participação de três líderes insensíveis às questões fundamentais do Rio de Janeiro. A notável ausência de uma política pública de qualidade na área de Segurança Pública por parte de Anthony e Rosinha Garotinho é recheada com a insensibilidade do prefeito da capital César Maia e do casal Garotinho de acirrarem a disputa política, com críticas duras sem qualquer caráter propositivo, nos momentos mais difíceis pelos quais passou a cidade.

De forma despropositada, apenas para citar um exemplo, César Maia criticou o sociólogo e ex-secretário de Segurança Pública Estadual e Nacional, Luiz Eduardo Soares – a quem chamou de “policiólogo” de forma pejorativa –, relacionando-o a Anthony Garotinho, com quem Soares rompeu há pelo menos 6 anos. As críticas, ressalta-se, são puramente partidárias, sem qualquer sentido unificador ao qual um prefeito responsável deveria se dedicar neste momento.

Este tipo de comportamento, unido ao descaso com que a mídia empresarial e as autoridades das três esferas enfrentam as questões apontadas acima – sociais e criminais –, serve de recheio para o cenário de violência em que a população pobre e majoritariamente negra se encontra, com respingos nos bairros da elite. A ação da população organizada e consciente da tarefa histórica que temos pela frente – em maior número do que o número global de jornalistas da mídia empresarial e administradores insensíveis – será fundamental para a reversão do quadro. A visão depreciativa dos últimos acontecimentos deve ser radicalmente abolida, para então nos perguntarmos: o que podemos fazer pela população do nosso Estado e quais são os próximos passos?

Gustavo Barreto é pesquisador da Escola de Comunicação da UFRJ e editor da Revista Consciência.Net , do Fazendo Media e de outros meios da imprensa alternativa. Contato: [email protected]

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