O Irã não pagará pelos pecados dos EUA no Iraque

No que tenha a ver com o Irã, há história muito, muito longa, tão longa quanto a revolução islâmica de 1979, da propaganda ocidental contra Teerã, sempre pintada em espessos tons de fantasia. Apesar do 'bem-estar' que reina nas conversações do P5+1 e Irã, essa propaganda mal-intencionada prossegue sempre. O Irã dá de ombros; diz que não passa de guerra psicológica [guerra-psi], mas a influenciável opinião pública quase sempre acaba enrolada no 'conto-do-vigário' da propaganda do dia.


17/6/2014, MK Bhadrakumar, Indian Punchline
http://blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/2014/06/17/iran-wont-bite-american-bullet-in-iraq/


A primeira grande história da semana passada foi que o Irã teria mandado tropas para o Iraque para combater contra militantes do Estado Islâmico do Iraque e Levante [ing. ISIL]. O Wall Street Journal liderou essa campanha de desinformação, provavelmente no esforço para empurrar o presidente Barack Obama dos EUA a 'fazer alguma coisa'.

É claro que os EUA têm fontes de inteligência, humana e eletrônica, para avaliar a real situação em campo. Mas, por via das dúvidas, os iranianos desabaram como uma tonelada de pedras sobre o WSJ e desmentiram tudo.

Veio então a segunda onda de ataque: EUA e Irã 'cooperariam' no Iraque. A Reuters lançou a história, citando, de início, um funcionário iraniano não identificado (que poderia ser qualquer um). Sem dúvida, notícias arrepiantes - o Grande Satã e os persas, ombro a ombro nas barricadas da Mesopotâmia, em luta contra a al-Qaeda. O mundo 'midiático' saltou sobre a 'coisa', como se fosse fato. O secretário de Estado dos EUA John Kerry correu a jogar gasolina na fogueira, encorajando a mídia de especulação a escalar os mais altos píncaros da des-notícia. A imprensa-empresa mundial parecia zonza - até na Índia.[1]

Como sempre acontece no que tenha a ver com o Irã, porém, o que se viu foi total blecaute, em toda a imprensa-empresa ocidental, da versão iraniana sobre os mesmos ditos 'fatos'.

Ora, ora! A regra básica, essencial, é que não há tango, se não houver dois. E onde estaria o tangueiro persa? Pois o fato real é que o tangueiro persa não passou nem por perto daquele palco no qual Kerry plantou-se, solitário, com ar de desamparado.

Exame atento das declarações e pronunciamentos de Teerã ao longo de toda a semana passada mostra história muito diferente da versão que Kerry tanto gostaria de nos fazer engolir. Examinemos aqui o que disseram alguns dos principais atores do governo iraniano:


a) Presidente Hassan Rouhani (9/6, em Ankara): "A violência e o terrorismo cresceram e tornaram-se mais complicados, por causa da interferência de potências trans-regionais."[2]

b) Vice-ministro de Relações Exteriores Hossein Amir Abdollahian (10/6): O papel de alguns "lados estrangeiros" nos eventos de Mosul é óbvio. "Esses lados que estão apoiando takfiris devem estar gravemente preocupados com medidas antissegurança que essa corrente terrorista tome nos seus respectivos países."

c) Comandante dos Guardas Revolucionários do Irã (Basij), general Mohammad Reza Naqudi (11/6): (i) grupos takfiri cometem crimes alinhados com os mais sórdidos objetivos das potências arrogantes e obedecem aos think-tanks ocidentais e israelenses, todos eles apoiados pelos petrodólares de alguns países árabes regionais. (ii) "A Arábia Saudita está armando terroristas na Síria com armamento leve e pesado diferenciado, violando todos os regulamentos e convenções internacionais." (iii) Grupos takfiri e salafistas em diferentes estados da região, especialmente na Síria e no Iraque, são apoiados pelos EUA. (iv) Os EUA estão manipulando os terroristas takfiri para comprometer a imagem do Islã e dos muçulmanos.

d) Porta-voz do ministério de Relações Exteriores Marziyeh Afkham (11/6): Conclamou que alguns estados pusessem fim imediatamente ao apoio que dão a grupos terroristas e exigiu que todos os países adotassem medidas coletivas de combate ao terrorismo.

e) Vice-ministro de Relações Exteriores Hossein Amir Abdollahian (11/6): "Nós apoiaremos firmemente o Iraque em seu confronto contra o terrorismo."

f) Presidente do Parlamento (Majlis) Ali Larijani (13/6): "É perfeitamente óbvio que os norte-americanos e demais países aqui à nossa volta são responsáveis pelo que hoje se vê no Iraque. (...) O terrorismo converteu-se em ferramenta que as grandes potências usam para promover seus objetivos."[3]

g) Presidente Rouhani (13/6): (i) "Se o governo do Iraque quer ajuda, vamos estudar o pedido (...) Claro, ajuda e assistência é uma coisa, interferência e ação no campo de batalha é outra (...). A entrada de tropas iranianas [em campo de batalha no Iraque] jamais foi cogitada (...) jamais enviamos soldados para combater fora do Irã (...) Se um grupo terrorista aproxima-se de nossas fronteiras, sim, com certeza lhe daremos combate. (ii) Alertou os estados que estão dando apoio financeiro e armas ao ISIL e outros grupos terroristas, e disse que esses grupos voltariam, para incendiar também os seus 'apoiadores'. (iii) Desmentiu e desautorizou matéria da Reuters, sobre 'cooperação' EUA-Irã no caso do Iraque. "Os norte-americanos talvez façam alguma coisa, mas não estou informado sobre ação alguma." (iv) Eventos recentos no Iraque devem-se ao fato de que os terroristas estão furiosos ante os resultados das eleições no Iraque, que mantiveram os xiitas e o primeiro-ministro Nouri Al-Maliki no poder, por meios e procedimentos democráticos.

h) Ala'eddin Broujerdi, presidente da Comissão de Política Externa e Segurança do Majlis (14/6): "O apoio dos EUA, armas e treinamento militar [aos grupos takfiri) são a causa raiz da disseminação do terrorismo e seus crimes na região (...) A Ummah muçulmana tem de pôr um fim nas intervenções dos EUA na região."

i) Gen. Mohammed Naqdi, comandante do Basij, (14/6): Os ataques do ISIL no Iraque são novo golpe dos EUA, depois que Washington foi derrotada no confronto com grupos da resistência na região. Os EUA conheceram a derrota no confronto e nos golpes atentados contra aliados do Irã na Palestina, no Líbano e na Síria, e agora "estão começando a conhecer a mesma experiência no Iraque (...) Uma imensa força popular cresce na região e fará gorar os escandalosos golpes do inimigo." Essas forças populares que se formaram nos estados regionais cresceram numa corrente que se estende por todo o Oriente Médio.

j) Afkham, porta-voz do Foreign Office (14/6): Irã opõe-se a intervenções militares no Iraque. "O Iraque tem os potenciais necessários e a prontidão militar requerida para combater os elementos terroristas e extremistas (...) Ação que complique a situação no Iraque não se faz no interesse do Iraque ou da região."

k) Ministro Mohammed Zarif, das Relações Exteriores, em entrevista à revista New Yorker: "É do interesse de todos estabilizar o governo do Iraque. Se os EUA entenderam que esses grupos [ISIL] representam ameaça à segurança da região, e se os EUA realmente desejam combater o terrorismo e o extremismo, então há aí uma causa global comum."[4]

l) Contra-almirante Ali Shamkhani, secretário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã (15/6): Culpou Washington pela criação do ISIL. Refutou veementemente matérias que sugerem a possibilidade de cooperação EUA-Irã no caso do Iraque; essas matérias são parte da 'guerra psicológica' [guerra-psi] do ocidente contra o Irã e são "completamente irreais". Criar terror e instabilidade e incitar campanha armada e violenta contra o desejo do povo [iraquiano], já manifesto em eleições livres e justas no Iraque, são alguns dos objetivos dos EUA por trás da criação de grupos terroristas como o ISIL. Os EUA e alguns de seus aliados tem cooperação financeira, de inteligência e logística para implementar tal política. Conclamou os xiitas e os sunitas iraquianos e os curdos a permanecerem alertas, contra os golpes das potências exteriores e para defender seu país. Qualquer ajuda iraniana ao Iraque acontecerá em bases bilaterais "e nada tem a ver com algum terceiro país."

m) Contra-almirante Ali Shamkhani (15/6): Os estados ocidentais e regionais são responsáveis pela atual crise no Iraque. 


Considerados os pronunciamentos acima, todos inequívocos, feitos por altas autoridades de Teerã, ao longo da semana passada, parece altamente improvável, para dizer o mínimo, que venha a haver qualquer tipo de operação EUA-Irã, de coordenação às claras, para o Iraque. O que faz toda a diferença é que Teerã realmente está vendo uma mão dos EUA ativa direta ou indiretamente no crescimento de grupos islamistas extremistas patrocinados por sauditas, como o ISIL na Síria e Iraque.

Assim também, Teerã tampouco crê na disposição e na capacidade dos EUA para separarem-se completamente das suas políticas anteriores na Síria e no Iraque; e, ainda mais importante, para confrontarem a Arábia Saudita.

Claro que tudo mudaria completamente de figura, se o governo Obama assumisse a firme decisão de renegar completamente a trajetória passada das políticas dos EUA para Síria e Iraque; nesse caso, sim, Teerã responderá positivamente. Mas é difícil ver acontecer tal coisa, no curto prazo.

O governo de Obama está hoje tão gravemente enfraquecido no quadro da política interna dos EUA, que a Casa Branca não terá a coragem política para 'reiniciar' [orig. reset] tão audaciosamente as políticas dos EUA para o Oriente Médio, em direção virtualmente oposta, do dia para a noite, fazendo o gênero 'insurgente' em relação aos seus aliados regionais, sobretudo em relação à Arábia Saudita. O Irã compreende perfeitamente a realidade geopolítica que a aliança EUA-sauditas gera. Em resumo, Teerã sempre desconfiaria das intenções dos EUA.

A cautela extrema com que Teerã se movimenta em relação aos desenvolvimentos no Iraque sugere que o país cuida para não se deixar prender na armadilha de um labirinto sectário, o que teria profundas consequências para a posição regional do Irã como um todo.

Teerã não vê convergência de interesses com os EUA, hoje, quanto à situação no Iraque. Da perspectiva de Teerã, o empoderamento dos xiitas não é negociável. Tampouco o Irã parece disposto a aceitar uma mudança de liderança em Bagdá, na atual circunstância.

A bola está agora na quadra de Obama, para convencer Teerã de que ele é capaz de controlar Arábia Saudita, Qatar e Turquia, com toda a influência em mãos dos EUA, e de realmente optar por guerra ao terror. E Obama conseguirá (na hipótese de que se decida a tentar)?

Fato é que Teerã não será rígida e se disporá a discutir o Iraque com quem apareça, para expor suas preocupações. Assim sendo, não se devem descartar contatos informais entre EUA e Irã. Obama parece sinceramente interessado em testar possibilidades. O secretário do Exterior britânico, William Hague, conversou longamente por telefone com Zarif. Os britânicos sempre estão a postos para obrar como leva-e-traz a serviço de Washington, nesses momentos difíceis. *****

 


[1] http://www.thehindu.com/news/international/world/obama-open-to-discussing-iraq-crisis-with-teheran/article6120458.ece

[2] http://www.islamicinvitationturkey.com/2014/06/10/president-rouhani-iran-turkey-should-cooperate-in-fighting-violence-extremism/

[3] http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/06/eua-gaguejam-sobre-o-iraque-o-ira-poe.html

[4] Só para assinantes, em http://www.newyorker.com/reporting/2014/05/26/140526fa_fact_wright (ing.) [NTs].

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey