Assinalar os 89 anos da Grande Revolução de Outubro com um debate em torno do XX Congresso do PCUS, sobre o qual já passaram 50 anos, foi uma ideia feliz da Renovação Comunista. Parece-me uma boa forma de reflectirmos sobre o curso do mais ousado de todos os projectos libertadores, iniciado pelos bolcheviques, a 7 de Novembro de 1917.
Com efeito, o Congresso liderado por Krutchev, que se realizou, em Fevereiro de 1956, sensivelmente a meio do que veio a ser o período de existência da URSS, constituiu o primeiro sobressalto dramático sobre o emaranhado de contradições com se debatia a construção do socialismo.
O Congresso fez o ponto e enalteceu as espantosas realizações da Revolução nos domínios político, económico, social e cultural, mas, ao mesmo tempo, surpreendeu o mundo com a denunciado culto de Stáline e dos seus crimes, não hesitou em revelar sintomas de estagnação e riscos de declínio, e procurou fazer frente a tudo isto apontando orientações para imprimir um novo fôlego aos ideais de Outubro na União Soviética e à sua influência internacional.
Pessoalmente, além do choque provocado pelo Relatório Secreto de Krutchev, a que nenhum comunista escapou, tenho recordações bastante desagradáveis do período do XX Congresso, pois fui preso pela PIDE em Outubro de 1956, no auge das suas repercussões e especulações e ainda com muito confusão entre os comunistas sobre o que havia de verdade no que dizia na imprensa internacional. É claro que Staline e a repressão na URSS constituíam o prato forte com que os «pides» me massacravam nos interrogatórios.
Entre os próprios presos não sabíamos muito bem com tratar a questão: o Direcção do Partido tinha começado por dizer que eram mentiras e calúnias. Quando fugi do Aljube, em Maio de 1957, e voltei aos quadros clandestinos do Partido, a questão já estava muito mais aclarada. O Partido tomara posição sobre o «culto da personalidade» e circulavam entre os quadros textos teóricos interpretativos na maior parte oriundos do PC da China, também alguns do PC italiano, emprestados por camaradas intelectuais. Mas estava-se muito longe de avaliar o imenso novelo de complexas consequências que resultariam para o futuro.
O XX Congresso do PCUS (com a Relatório Secreto de Krutchev e as novas teses sobre a coexistência pacífica e a passagem pacífica ao socialismo) foi um terramoto de intensidade máxima, seguido de réplicas que continuaram por muito tempo. Depois dele nada ficou como antes.
Foi, obviamente, na sociedade soviética e na marcha da construção do socialismo na URSS que as suas consequências foram mais profundas e, em aspectos essenciais, mais positivas, sobretudo o desmascaramento do terror estalinista e nas medidas para conter a repressão. Nos comentários que li para preparar estas notas observei, nos textos mais recentes, uma tendência para minimizar o significado do XX Congresso. Julgo que se subestima precisamente este aspecto fundamental das suas repercussões.
No relatório de Krutchev salienta-se, e percebe-se porquê, o terror contra os comunistas.
Dois exemplos por ele apresentados: o primeiro, dos 1906 delegados ao XVII Congresso do PCUS, realizado em 1934, 1 108 foram presos e acusados de crimes contra a revolução; o segundo, 70% dos membros e candidatos eleitos para o Comite Central, nesse Congresso, foram presos e fuzilados, a maior parte entre 1937 e 1938.
O terror abatia-se, no entanto, sobre toda a sociedade como o Relatório elucida.
O historiador Moshe Lewin, no seu livro «O Século Soviético», cita cálculos feitos pelo KGB, na época de Krutchev, que estabelecem, para o perído de 1930-53, um total de 3 777 380 pessoas, acusadas de «crimes contra-revolucioonários», e o número de sentenças de morte de cerca de 700 000 correspondendo na sua maioria às purgas de 1937-1938.
O terror estalinista não ficara, porém, nos anos 30, como os estalinistas de hoje pretendem fazer crer. O conceito inventado por Staline de «inimigo do povo» e a sua tese querida de que «quanto mais nos aproximamos do socialismo, mais crescem os inimigos da revolução», alimentava permanentemente as prisões, os campos de concentração e as execuções.
No momento da morte de Estaline, segundo o historiador atrás citado, havia 600 mil presos políticos, um ano depois, e por influência da direcção de Krutchev, o seu número já se reduzia para 474 mil. Foi posto termo ao império do trabalho forçado, milhares de condenados foram reabilitados. Assinalando os novos tempos, os membros do grupo conspirador que tentou derrubar Krutchev, um ano depois do XX Congresso, (Molotov, Malenkov, Kaganovich) não foram fuzilados, nem presos, nem submetidos a qualquer processo espectacular, como acontecia nos tempos de Estaline, mas simplesmente despromovidos e afastados e um deles até perdoado, Vorochilov.
Vivi cerca de um ano na União Soviética, entre 1966 e 1967, no início do período Brejenev, para estudar na Escola do PCUS para estrangeiros e tive a oportunidade de conviver com alguns professores e seus familiares e amigos. Posso testemunhar que embora não gostassem nada dos modos e do estilo de Krutchev estavam-lhe muito agradecidos pelas novas condições de segurança, o desanuviamento repressivo e dignidade que tinha assegurado aos cidadãos soviéticos.
No Relatório Secreto, Krutchev refere uma conversa com Bulganin em que ambos teriam reconhecido que quando um dirigente do PCUS era convidado para a mesa de Estaline não sabia se voltava a casa ou ia para a cadeia. Pois os meus amigos soviéticos diziam-me que no que tocava aos simples cidadãos nunca sabiam quando saiam para os empregos se voltam ou se eram envolvidos em qualquer intriga política que os leva à prisão e a uma qualquer pesada condenação.
É claro que Krutchev não estabeleceu na URSS as liberdades democráticas, como as entendemos, mas fez o «degelo», na definição de Ilya Ehrenbourg, o clima e as práticas repressivas abrandaram consideravelmente, a discordância deixou de ser crime, a sociedade soviética podia respirar, finalmente.
Julgo que esta circunstância, aliada a alguma subida das remunerações na indústria e na agricultura terá contribuído para o que foi o último período de mobilizações dos soviéticos para grandes objectivos apontados pelo PCUS, como o avanço para as terras virgens e, de outra forma a mobilização em torno da corrida espacial.
Estas mobilizações inserem-se no dinamismo e optimismo que direcção Krutchev praticava e transmitia à população e que a levou, também, a fixar objectivos por demais ambiciosos e irrealista, como o tempo provou, entre outros, o avanço para a construção das bases tecno-materiais do comunismo e a promessa de ultrapassar, num curto período, a economia e níveis de bem estar dos Estados Unidos. Este último aspecto, ao não ser concretizado, ao longo de muitos anos, voltou-se em cheio contra o paradigma soviético.
Além disso, as reformas empreendidas pela equipe de Krutchev não tocaram nas traves mestras do modelo soviético, centraram-se fundamentalmente na descentralização dos centros de decisão. Toda a prioridade continuou a ser conferida ao desenvolvimento das forças produtivas, com a completa subestimação das relações de produção. Esta contradição já aguda no período de Krutchev não deixou de se exacerbar nos anos seguintes, como a actual análise marxista tem procurado demonstrar, tornando-se fatal para a União Soviética. Estaline decretou o fim das classes na URSS, mas elas não desaparecem por decreto, como se viu, e, no caso soviético, reconstituíram-se e constituíram-se à margem do sistema e dentro do sistema, a ponto de provocarem a sua derrocada. Isso acontecerá décadas mais tarde.
Para já importa salientar que o período da vida soviética que se seguiu ao XX Congresso, sob a liderança de Krutchev, foi, na apreciação de diversos historiadores, um período de progressos espectaculares, mas pensa-se hoje, em alguns meios marxistas, que já então os referidos progressos não ajudaram a debelar a doença resultante do complexo de contradições que minavam as estruturas do Estado soviético e de que talvez a liderança krutcheviana tivesse apercebido, pois se propunha arrancar para novas reformas, quando se deu o seu afastamento do poder.
De qualquer forma, no plano internacional, o XX Congresso simboliza um período em que a União Soviética consolidou o estatuto de grande potência e se afirmou com uma enorme capacidade de iniciativa e de intervenção que passaram a marcar a agenda mundial.
A concepção da coexistência pacífica foi, simultaneamente, o suporte teórico e o instrumento desta iniciativa. Contribuiu seriamente para o apaziguamento internacional, mas ao contrário do que afirmavam os críticos chineses e albaneses, a coexistência pacífica, no período krutcheviano nunca significou um agachamento diante do imperialismo. Pelo contrário, foi um período de ousado afrontamento do imperialismo em todo o planeta, incluindo no próprio continente americano, nas barbas dos Estados Unidos, em defesa de Cuba. O crescente papel da União Soviética, na arena internacional constituiu, neste período, uma grande ajuda ao movimento nacional libertador e combate ao colonialismo.
As repercussões do XX Congresso no movimento comunista foram, a meu ver, bastante mais contraditórias.
Primeiro, foi a confusão provocada pela denúncia do culto de Estaline e dos seus crimes e pela tese sobre a possibilidade da passagem pacífica ao socialismo que provocaram um profundo abalo nos partidos comunistas, convulsões internas, agudas divergências, divisões e cisões.
Depois com os ânimos mais serenados desenvolveu-se o aturado exame e o decido combate ao culto de Staline, às concepções sectárias e estalinistas que sob a influência do PCUS se tinham espalhado por todos os partidos, modelando a sua vida interna e influenciando a sua linha política. Tal como aconteceu na União Soviético, nos principais partidos comunistas o estalinismo, como tendência dominante, foi efectivamente exautorado e derrotado.
Finalmente, as revelações sobre a forma como se tinha desenvolvido no interior do PCUS o culto da personalidade, o poder pessoal, ditatorial e tirânico de Staline não podia deixar de abalar o prestígio deste partido e o seu papel de guia do movimento comunista. Palmiro Togliatti, líder do Partido Comunista Italiano, retirou desde logo a conclusão de que tinha acabado o partido guia e defendendo o policentrismo no movimento.
Por outro lado, o Partido Comunista Chinês, que se distinguiu na elaboração teórica a propósito das questões do culto da personalidade, de crítica ao conceito de coexistência pacífica e à teses da passagem pacífica ao socialismo assumiu, cada vez mais, uma atitude liderante. Háquem queira ver nesta crise do movimento comunista o início dos processos que conduzirão, por um lado, ao euro-comunismo e, por outro, ao conflito sino-soviético. De qualquer forma, o terramoto provocado pelo XX Congresso trouxe como consequência que cada partido comunista passasse a procurar o seu próprio modelo baseado nas realidades nacionais.
As repercussões do XX Congresso no PCP não foram substancialmente diferentes das que se verificaram nos outros partidos. Depois da confusão inicial a direcção acelerou a correcção do desvio sectário e estalinista em que o partido tinha mergulhado nos primeiros anos da década de 50, e que já se tinha iniciado com os novos ventos que sopravam de Moscovo com o advento de Krutchev, procedendo-se a revisão de processos persecutórios e sancionatórios arbitrários realizados sob influência expressa da suprema tese de Staline segundo a qual «o partido reforça-se depurando-se». Este processo de rectificação culmina com a realização do V Congresso que, ao aprovar pela primeira vez os Estatutos do partido, não só procurou corrigir os desvios sectários, autoritários e arbitrários na vida interna partidária, mas impedir a sua repetição no futuro. Julgo que este foi o único debate importante e profundo sobre o estalinismo que travou em toda a história do PCP.
Mas ao abordar a questão do «culto da personalidade», o Congresso exagerou admitindo a existência, embora sem responsabilidade do próprio, de um culto da personalidade de Álvaro Cunhal, então a cumprir a sua última e longa prisão.
Além disso, o Congresso abraçou todas as outras teses do XX Congresso, chegando ao ponto de adaptar para Portugal a tese da possibilidade da passagem pacífica ao socialismo, transformando-a na possibilidade da «solução pacífica do problema político português», ou seja, o derrubamento pacífico da ditadura salazarista.
Quando, após a fuga de Peniche de Cunhal e de outros dirigentes do PCP, se puseram em causa a linha e as conclusões do V Congresso, consideradas como constituindo um «desvio de direita» e traduzindo uma «tendência anarco-liberal», e por isso abandonadas e corrigidas, a denúncia do estalinismo e a necessidade de o combater no interior do partido, não foram ressalvados, como aconteceu com a resolução sobre o problema colonial.
E a partir de então o debate sobre o estalinismo nunca mais foi feito.
É verdade que em documentos do CC e até em Resoluções de Congresso se usou algumas vezes a formula canónica de «violações e até crimes de Staline», mas o debate sobre o significado histórico do estalinismo, os prejuízos irreparáveis que representou para a União Soviética e os ideias do comunismo, as orientações e práticas preversas que introduziu na vida dos partido comunistas, incluindo no PCP, isso nunca mais foi considerado.
Nesta omissão pesou, como em toda a vida do PCP depois de 1960, a opinião de Álvaro Cunha, que não era estalinista, mas que sempre considerou o debate inoportuno, ou por recear outras derivas ideológicas ou por estar sinceramente convencido de que não se tratava de um problema para o PCP.
São aliás raras, esparsas e contidas as suas declarações sobre o estalinismo. Encontrei, no entanto, o trecho de uma entrevista sua, à revista «Sábado» de 12.11.88, em que responde à acusação de estalinista que era feita ao PCP. Diz o seguinte:
«Eu estive na União Soviética em 1935 e 1936, vinte anos antes de ser revelada a conduta de Stáline no XX Congresso do PCUS. Convivi com a juventude, vivi com o povo soviético. Eram os anos dos planos quinquenais, os anos da industrialização, os anos do stakonovismo, toda uma linha revolucionária de desenvolvimento da sociedade. E Stáline era visto e admirado como um homem modesto, um dirigente atento, uma imagem que foi criada pelo próprio PCUS e que entretanto era falsa.»
E um pouco mais à frente:
«O stalinismo é o culto de personalidade. É resolver as divergências através de métodos administrativos, da violência e até de crimes. É a não admissão de opinião contrária. É a sobreposição da opinião individual à do colectivo. É a crença na infalibilidade do chefe. São traços de que nós somos adversários de há muitos anos. Temos uma prática completamente contrária, uma prática de combate real à tendência stalinista.»
É claro que a tendência estalinista não se define apenas por estes traços negativos, outros se lhe juntam, tão ao mais negativos, tais como: no plano da vida interna, o clima de permanente suspeição, a caça a heresia, a purificação através da depuração e a exclusão, a condenação absoluta da divergência; e no plano da direcção e da organização, a centralização no secretariado de todos os poderes relevantes; a estruturação na base de um corpo hierarquizado de funcionários; a selecção Comité Central feita de cima para baixo: a impossibilidade do partido mudar de liderança por meio de eleições.
Nas crises que o PCP atravessou nos finais da década de 80 e de novo nos finais da década de 90 e nos anos de 2000 e 2001, todos esses traços mais negativos foram exuberantemente postos em evidência. Depois disso, não admira que aparecessem grupos de jovens da JCP a proclamarem-se estalinistas, alguns dirigentes partidários a gostarem de ser considerados com tal e até o «Avante!», pela pena de responsáveis, a inserir peças reabilitadoras de Stáline.
Razão tinha Cunhal quando na entrevista atrás citada, defendia: «é necessário que qualquer Partido tome as medidas necessárias para que não possa haver nele procedimentos como o de Stáline.»
Voltando ao XX Congresso e às reformas de Krutchev e da sua equipa. É hoje evidente que não responderam como se impunha aos desafios que já então se colocavam à União Soviética e talvez tenham engendrado outros problemas e contradições, mas atacaram a doença degenerativa do comunismo o estalinismo, deram um novo fôlego à Revolução de Outubro na URSS e à sua influência no mundo, melhoraram a imagem do «socialismo real», ajudaram os movimentos de libertação nacional, conseguiram espectaculares resultados em vários domínios que deram grandes alegrias aos comunistas da minha geração.
Além disso, a verdade é esta: quando Krutchev foi afastado do poder, em 1964, a União Soviética e o movimento comunista no mundo não estavam em queda, pelo contrário, atravessavam um período de ascenso e de expansão.
Para terminar, quero acentuar que, a meu ver, a actualidade do XX Congresso do PCUS reside precisamente em que foi ele a estância fundadora do combate ao estalinismo. É esse o seu papel na história.
Novembro de 2006
Carlos Brito
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