Dentro das claridades e dos segredos em Remorsos para um cordeiro branco, de Reina María Rodríguez
Por Alexandra Vieira de Almeida
Em Remorsos para um cordeiro branco (Penalux, 2018), de uma das maiores vozes da literatura cubana, Reina María Rodríguez, premiada e aplaudida nacional e internacionalmente; temos um intensificar-se do eu nas coisas do mundo. Reina circula pelas aspas do real, trazendo para dentro o que está fora, numa simbiose perfeita. Emil Staiger, grande teórico dos gêneros literários discursou sobre a "disposição anímica" (Stimmung) do eu lírico, que tem seus momentos de elevação e de queda. Friedrich Theodor Vischer falou sobre "o discreto inflamar-se do mundo no sujeito lírico". A poeta cubana, por ora aqui estudada, penetra na pele da realidade, sacrificando-a pelo viés poético. A palavra da poesia fere as pessoas, os animais, os objetos, os lugares, colocando a partir do remorso, de um arrependimento perante a agressividade do cosmos circundante, um alento, uma esperança de versos que traduzem a ultrapassagem do que nos corrói por dentro. A atmosfera reinante é vítima sacrificial de seus poemas que superam a imagem da inocência do cordeiro pela tônica profundamente analítica de seus textos. Em (João, 1, 29), temos: "Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo". A brancura deste cordeiro, desta voz que grita por dentro, agita o ser em sua penetrabilidade poética. Só que o branco convive com a sombra, criando-se, assim, uma poesia de claridades e segredos confessados.
Outras cores penetram na brancura deste véu de suposta inocência, revelando os paradoxos dos símbolos, que cortam um eu cindido, como as duas faces da moeda. Em "Elegeste o azul", esta cor é território de beleza e verdade, mas também de mentiras e traições: "O azul é a cor da verdade, disse a menina". Para depois desdizer-se na incompletude e contradição da poesia: "O azul é a cor da mentira, digo agora". O branco da inocência se macula com a escrita dos versos, a tinta negra cria um paradoxo dinâmico em sua poesia, feita de luzes e penumbras. O grande poeta Mallarmé escreveu: "(...) A armadura intelectual de um poema se dissimula e se forma - tem lugar - no espaço que isola as estrofes e em meio à brancura do papel: significativo silêncio que não é menos belo de compor do que o verso". Este espaço entre a lacuna e a escrita cria um rico paradoxo na urdidura imaginativa dos versos de Reina, que produzindo mistérios e deslumbramentos, joga com nossa inteligência em vagar pelas ruelas e avenidas de suas páginas. Havana, lugar de suas aparições, descentra-se e conquista o mundo. Como nos mostra o tradutor de seus poemas no prefácio, José Eduardo Degrazia: "Dava para entender sua poesia como aquela mostra de subjetividade, de intensa vida interior, mas ao mesmo tempo enriquecida por todo o acontecer humano e social da Ilha, suas viagens, seus encontros e desencontros". Nesta dimensão do espaço de dentro e de fora, encontramos uma galáxia poética que instaura um aparecimento-desaparecimento do eu, que mergulha e se levanta nos mares enigmáticos do real. Rodríguez não utiliza palavras em vão. Tudo é medido, perfeito e fundamental na sua poesia. A sua poética é feita de uma necessária liberdade das palavras: "queria escrever hoje o que me falta/não gastar as horas/nem jogar palavras no abismo". Todo verso em seus textos é essencial, nada está fora do lugar, revelando uma poesia simbiótica em sua tangibilidade com o que nos circunda.
Os objetos, pessoas, animais e lugares, passeiam nas suas sensações. Sua poesia tem uma forte sedução singularíssima, a personificar as coisas à sua volta. Em "Poema para a sexualidade da madeira", temos a humanização e erotismo da madeira, que adquire a nervura das pessoas em sua erotização. O poeta e crítico mexicano Octavio Paz já nos tinha dito que a poesia "é erotização da linguagem". Uma linguagem que se personifica, que se individualiza na poética desta autora magistral, Reina María Rodríguez. Uma escrita que explode por seu transbordamento enigmático. Caudalosa como um rio, é a conquista das águas profundas do novo e original. Esta escritora cubana sabe dosar com teclas alternadas do claro e do escuro dos pianos um universo todo seu. Ela cria uma mitopoética especial a revelar uma grandiosidade deste universo circundante. Mito e história não se bifurcam em sua poesia, mas se abraçam como as águas de mares distantes. Uma tessitura poética que é feita dos fios da vida e da morte, de descobrimentos e segredos que tecem o cotidiano com seus percalços de forma admirável. Reina tira de seu peito a costura das coisas que são importantes para serem ditas. E a poesia é a chave para os seus espantos. Aquilo que a amedronta por dentro consegue atingir a imensidão dos tapetes aquáticos, e o medo é substituído pela ressurreição de um ser renovado, mas, ao mesmo tempo inacabado, pois novos remorsos geram novas ressurreições que espantam o que não é mais válido na sua escrita labiríntica e totalizante a traçar uma abertura para o reino utópico da poiesis.
O conhecimento de Reina é vasto. Ela circula belamente pelos escritores consagrados, pelos músicos famosos, pelos cineastas, pelos pintores, e, também, tem a sabedoria minuciosa sobre os objetos, comidas, animais, pessoas e lugares. A solidão, por outro lado, apesar de toda a sua familiaridade e simbiose, comparece em sua poesia. A solidão de um mar intrínseco que a corrói por dentro, deixa-a navegar neste líquido feito de remorsos por algo que ela quer desvendar através da força de seus versos. Remorsos do que ela não pode realizar, mas que pelas possibilidades da poesia, conforta-a, trazendo a lume, o encanto do poético pelo dom de tocar as coisas com as mãos de um mágico. Em "Corpo a corpo", temos: "Quando toco uma tecla,/raspo com o dedo um som/- íntima ressonância do que querendo tocar/não toquei -". A vítima sacrificial se interpõe na realidade ácida que a envolve. Resta à poesia o dom de criar a ressurreição do ser, um mergulho no mar batismal da palavra, que é água e fogo, duas possibilidades que se negam, mas que pela palavra inaugural dançam na circularidade dos textos.
Os efeitos, os impactos da phisys, fazem de sua escrita uma poesia do mundo e para o mundo. Este cabe dentro do pequeno espaço do seu coração. E é a partir das recordações que se costuram os fios desta trama. Um drama que se enovela pela joia da escritura. As palavras percorrem os espaços brancos do seu ser e se mancham, na verdade, da tinta vermelha de seu sangue, vida e morte que descortinam a aurora brilhante dos gritos do espaço interior. Portanto, sua poesia é o encontro entre o mar de dentro e o mar de fora, aquilo que se estampa como claridade do real e do eu lírico, mas que esconde sombras e segredos numa poética que tem muito do confessional e do subjetivo. Este é verdadeiramente um livro de extrema beleza, que só os grandes poetas sabem produzir, como Reina María Rodríquez, nos brindando com esta análise profunda sobre o eu e o real.
"Recomosos para um cordeiro branco", poesia cubana. Autora: Reina María Rodrígues, 132 págs., R$ 35,00, 2018.
Link para compra: http://editorapenalux.com.br/loja/remorsos-para-um-cordeiro-branco
E-mail: [email protected]
SOBRE A RESENHISTA
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: "40 poemas" e "Painel". "Oferta" é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro "Dormindo no Verbo", pela Editora Penalux.
SOBRE A AUTORA
Reina María Rodríguez nasceu em Havana em 1952. É formada em Licenciatura e Literatura Hispano-americana e em Museologia. Poeta e narradora, tem mais de vinte livros publicados. Foi traduzida em diversas línguas, como o inglês, o italiano, o francês, o alemão, o russo, o árabe, o vietnamita, entre outras. Deu cursos e palestras nos Estados Unidos e na Europa. Recebeu muitos prêmios importantes, entre eles o Casa de las Américas de 1984; o Prêmio Nacional de Cuba de 2013; o Pablo Neruda do Chile, em 2014. Vive em Havana, na cidade velha, próximo ao Malecón, bem perto do mar.
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