A preparação para a vida e para a morte, em A face serena, de Maria Valéria Rezende
Por Alexandra Vieira de Almeida
Como na experiência socrática, a vida sendo uma preparação para a morte, segundo Platão, Maria Valéria Rezende prepara seu leitor a percorrer o labirinto, cujo início é a vida (infância), o meio o caminho que nos abriga e nos impõe à luta (maturidade) e a morte (velhice). O livro de contos A face serena (Penalux, 2017) é um magistral apanhado de nossas fases ao longo do caminhar pelo mundo. Mas, com a argúcia desta autora excepcional, as três fases se mesclam, nos conduzindo pelos meandros da experiência poética, que não é nada mais do que uma preparação para a vida e para a morte. Nas três epígrafes da obra, percebemos este diálogo paradoxal entre energia e desfalecimento. Numa das epígrafes, de Georg Simmel, temos: "Esta vida que ao passar nos aproxima da morte, nós a passamos fugindo dela. Somos como homens andando sobre um barco no sentido oposto ao seu curso: avançamos para o sul, mas o lastro que pisamos é levado junto conosco para o norte". Essa coisa inescapável que é o fenecimento é a medida da arte. Escrever é morrer um pouco para aquilo que deixamos para trás, para que se descortine um novo caminho, um renascer. Este renascer aparece nos 37 contos de A face serena, que nos revela uma escritora renovada a exaurir de suas tintas o dom do ofício e da criatividade.
Ela mesma diz no conto "A crise" que o poeta não é inspirado. Não teríamos a ideia de Platão que no seu livro Ìon, o poeta é descrito por ele, como tomado por um deus. De acordo com Maria Valéria Rezende, a criação vem de um trabalho de esforço com a palavra. Nada é fácil neste terreno fértil da literatura, parece nos dizer a autora. Este fato me fez lembrar da concepção do poeta moderno Paul Valéry, que no seu texto, "Poesia e Pensamento abstrato", nos fala do trabalho difícil e penoso que é elaborar um texto literário. Rezende tem todo um trabalho de tecelagem poética, conduzindo seus contos com a densa artesania do trabalho bem elaborado com cuidado e inteligência. Seus contos são finas peças de tapeçaria, onde os fios são urdidos com esmero e atenção redobrada.
No conto que abre o livro, "Chuva", temos a bela imagem que revela o paroxismo da vida/morte, a chuva e a aridez, o filho ainda sem nome que nasce, para partir subitamente, assim como o marido de Maria do Desterro. Este conto me fez recordar de um texto maravilhoso de Guimarães Rosa, "Sinhá Secada", que nos conduz pelos caminhos da secura que a morte leva em meio à vida vibrante. A umidade está fora e está dentro do corpo indefeso desta mulher que busca o abrigo. A chuva é a imagem perfeita, o elo que representa a luta do pulsar biológico contra o fim de tudo. No Dicionário de símbolos, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant dizem sobre a chuva: "A chuva é universalmente considerada o símbolo das influências celestes recebidas pela terra. É um fato evidente o de que ela é o agente fecundador do solo, o qual obtém a sua fertilidade dela". A umidade poética de Desterro é a sua forma de se impor contra a morte na sua secura inicial. As ausências do filho e do marido são o motivo de sua dor que a torna esturricada como a pele seca da terra, naquele sertão árido, sem gente, sem nada. A sua sogra traz o tempo, a passagem das horas, a fiar o cordão umbilical que a liga ao céu e à terra, à chuva, à umidade dos olhos, a esperança.
No conto seguinte, "Monstro", a imagem da água novamente comparece a revelar uma criança híbrida, metade menino, metade menina. Tendo nascido "meio menino", a sabedoria da avó, com seu batismo de água, faz nascer na criança a outra metade, feminina: "Ela regando, o corte se abrindo, brotando, crescendo a outra metade. Metade de menina. Quando viram: bruxaria! disseram. A avó fugiu com a criança para o ermo mais distante. Ele-ela cresceu sem conhecer maldade. Até que o mundo os encontre." Maria Valéria Rezende, nos seus contos, nos fala de um acalanto, de uma esperança em meio á ferocidade. Na orelha de Sabrina Sedlmayer sobre o livro Estâncias, de Giorgio Agamben, esta teórica diz: "Agamben reclama aqui a definição da poesia como abrigo, cômodo que é capaz de guardar, pela falta e impossibilidade que constitui a palavra, a fugaz alegria do amor". Quanto de delicadeza e amor temos nesta avó que acolhe o pequeno "monstro". Agamben diz no mesmo livro: "...uma crítica que não consiste em reencontrar o próprio objeto, mas em garantir sua inacessibilidade". Em Maria Valéria Rezende, este valor inescapável que a filosofia crítica propõe é salva pela poesia, unindo o pensar e o poetizar, onde o amor, enfim, pode superar a morte pelo artefato da escrita. Escrever para Rezende é seu sopro de vida, o alento em meio ao caos e ao incompreensível, como um "monstro" que nos persegue.
Em "Conto de Natal", temos o mundo de desejos do personagem Nonato. Aqui é o prazer que vai superar a desesperança. Se arrumar todo e dar presentes aos sobrinhos é seu máximo de satisfação no Natal. Mas para isto ele tem que trabalhar em bicos para poder suprir seus sonhos. Assim, o universo dos sonhos e desejos perfura a realidade nua e crua. Enquanto seu irmão é bem sucedido, ele é um fracassado. Mas neste fracasso, ele encontra a alegria nas pequenas coisas da vida. O real é o que lhe escapa nas entrelinhas do texto. Nonato prefigura a representação do ânimo em meio ao seu caos pragmático. O sonho ultrapassa o real, a dureza e aridez da vida e, em alguns momentos, lhe traz a chuva para que ele consiga superar a falta de dinheiro a satisfazer suas ânsias. Esta esperança é a imagem perfeita da alegria, mesmo que ele precise se fantasiar de Papai Noel para agradar a família e aquilo que mais o acalenta, a infância talvez perdida?
Aliás, a espera é o que fecha tal livro com o conto admirável "A face serena". Este olhar da personagem sempre olhando para o futuro, algo que a aguarda e ela nem sabe o que é e o motivo é a incógnita de toda sua vida. Ela não olha para trás, como a mulher de Lot, para que não se petrifique. Ela é todo trânsito, passagem, tempo: "Sua capacidade de aguardar longa e teimosamente alguma coisa que nem sabia o que era acabou por tornar-se profissão". Ela se torna fotógrafa. A fotografia nos revela este olhar maduro, de expectativa. Vemos novamente aqui a passagem dos três tempos nesta personagem: a infância, a maturidade e a velhice. Mesmo que ela tenha envelhecido, ela continua com o brilho da busca, desta câmera que capta os mínimos instantes de espera e maturação. No final do conto, temos uma tacada surpreendente, revelando que estes contos de Maria Valéria Rezende não se pautam pela mesmice e pela circularidade, mas pelo improvável, imprevisível e inusitado.
Portanto, neste livro formidável de contos de Maria Valéria Rezende, temos o encontro do ser com a esperança. Um diálogo entre a vida e a morte, vizinhas e inimigas, diferentes e análogas, ao mesmo tempo. A poesia se casa com a filosofia, produzindo os mais belos contos que são verdadeiras análises líricas da vida. As três fases do nosso percurso se mesclam no novelo das palavras ricas e densas da autora que sabe tracejar com linhas de ouro as páginas brancas da expectativa. Pois o papel em branco do escritor é sua espera, a sua germinação, a face serena da criação.
"A face serena", contos. Autora: Maria Valéria Rezende, 158 págs., R$ 40,00, 2018.
Link para compra: http://loja.editorapenalux.com.br/a-face-serena
E-mail: [email protected]
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: "40 poemas" e "Painel". "Oferta" é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro "Dormindo no Verbo", pela Editora Penalux.
Sobre a autora:
Maria Valéria Rezende
Nasceu em 1942, em Santos, SP, onde viveu até os 18 anos. Formada e Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e mestre em Sociologia. Dedicou-se desde os anos 1960 à Educação Popular, em diferentes regiões do Brasil e no exterior, passando a trabalho por todos os continentes. Vive na Paraíba desde 1976. Às vésperas dos 60 anos, em 2001, começou a publicar literatura com a primeira versão do livro Vasto Mundo (Ed. Beca), re-editado em nova versão (2015, Alfaguara) traduzida e publicada na França em 2017 (Ed. Anacaona). Desde 2004 participa do Clube do Conto da Paraíba que a estimulou a continuar a escrever ficção. Seu romance O voo da guará vermelha (Objetiva, 2005) foi publicado em Portugal e França, além de receber duas edições na Espanha (espanhol e catalão). Ganhou um Jabuti em 2009, categoria infantil, com No risco do caracol (Autêntica, 2008) e em 2013, categoria juvenil, com o romance Ouro dentro da cabeça (Autêntica 2012). Escreve ficção, poesia e é também tradutora. Ganhou o Jabuti de melhor romance e livro do ano de ficção com Quarenta dias (Alfaguara, 2014). Em 2017, seu romance Outros Cantos ganhou o Prémio Casa de las Américas, Cuba, o Prêmio São Paulo e o prêmio Jabuti (3º Lugar). Participa do Movimento Mulherio das Letras.
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