Ainda não consegui dormir e sinto-me triste como poucas vezes havia me sentido nestes meus cinquenta e tantos anos de vida. E o motivo é muito simples, humano e compreensível. Ontem perdi um baita amigo e, na verdade, mesmo sabendo que sua morte é real e irreversível ainda não consigo "acreditar".
por João Baptista Pimentel Neto*
Infelizmente, porém, desta vez, não tem mesmo jeito, é irreversível. E é mesmo verdade. Morreu Carlos Reichenbach ou, simplesmente, o Carlão, pois era assim que ele gostava de ser tratado pelos amigos. Sem muita frescura e sem muita cerimônia, mas sempre com muito respeito, generosidade e solidariedade, que graças a Deus e refletindo sobre o nosso fragmentado relacionamento, sempre foram mútuos.
Morreu o Carlão. E o cinema e o cineclubismo brasileiros amanheceram tristes e, certamente, muito menores. E, para aplacar a dor, resolvi escrever e registrar nesta Marv@da C@rne alguns pequenos e poucos momentos que marcaram nossa longa amizade.
Começo rememorando onde, quando e como tudo começou.
Conheci o Carlão, ainda, na década dos anos de 1980, no famoso Restaurante Soberano localizado na Rua do Triunfo, em pleno coração da não menos (mal) afamada Boca do Lixo de São Paulo.
Na época, enquanto o Carlão já era um dos melhores fotógrafos de cinema do Brasil e exercia sua liderança dentro da cena do cinema marginal que, na época, movimentava a Boca do Lixo, eu, era apenas mais "um rapaz latino americano sem dinheiro no bolso e vindo do interior" que dava seus primeiros passos no movimento cineclubista e se deslumbrava com a Paulicéia desvairada e com os até então desconhecidos bastidores do mundo do cinema, do qual, como mero expectador, era um apaixonado desde a mais tenra idade.
Foi assim que, apesar nossas diferenças, conheci o Carlão e que, ali no Soberano, selamos para sempre a nossa amizade. Sim, foi "amor à primeira vista". Foi de pronto e naquele longo primeiro papo que selamos uma amizade que, mesmo tendo sido várias vezes, interrompida, durante os períodos de meus afastamentos e reaproximações com o mundo do cinema, resistiu e se fortaleceu ao longo de mais de duas décadas.
Foi, também, naquela primeira tarde chuvosa que passamos juntos no Soberano, que o Carlão, ao saber de minha origem, se empolgou e passou horas me relatando suas peripécias de adolescente como interno do Colégio Koelle, na minha querida Rio Claro. Um assunto que, a partir daí, sempre voltaria a baila quando dos nossos encontros e reencontros.
Foi, também, ali que ao me relatar de suas escapadas para assistir a sessões realizadas nos Cines Variedades, Excelsior e, especialmente, no Tabajara - que segundo ele, naquela época, era uma das maiores e mais modernas salas de cinema do país - que, ao ver seus poderosos olhos amplificados brilharem por detrás das grossas lentes de seus inesquecíveis óculos, descobri o que viria a nos unir para todo o sempre. Assim, como eu, o genial cineasta, também tinha uma alma cineclubista.
Foi, ainda já neste primeiro encontro, que descobrimos outro laço comum entre nós e que marcaria para sempre a nossa amizade: Dois Córregos. Uma cidadezinha também do interior paulista, que é título de uma de suas obras mais introspectivas e delicadas. Mas, sobre esta história, prefiro hoje calar, já que traz também as marcas de outra tragédia: a morte do pai do Carlão.
E foi assim, que de tempos em tempos, nos encontramos e reencontramos e que, apesar de nunca termos gozado de uma grande intimidade, fomos cultivando e fortalecendo nossa amizade, respeito e admiração mútuos.
Nossas conversas, invariavelmente, sempre se iniciavam abordando novos detalhes e confissões de suas peripécias rio-clarenses. Passavam por uma formidável troca de ideias sobre cinema e música - outra grande paixão do Carlão - e se encerravam abordando os temas relacionados ao movimento cineclubista. Como por exemplo, questões sobre direitos autorais, sobre o qual, aliás, as ideias defendidas pelo Carlão deveriam servir de exemplo para a grande maioria dos realizadores brasileiros, muitos dos quais, ainda, hoje, nutrem opiniões retrógradas, marcadas por grande dose de egoísmo.
E, novamente, foi sua alma cineclubista o que nos proporcionou nosso último e formidável encontro presencial, quando, por ocasião da realização da sexta edição do FAIA / Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual, finalmente o CNC / Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros, lhe prestou uma última e justa homenagem, entregando-lhe o Troféu Paulo Emílio Salles Gomes (foto). Uma premiação reservada pelo movimento cineclubista brasileiro, apenas, para aqueles que, reconhecidamente, como o Carlão tenham uma alma verdadeiramente cineclubista,
Sobre esta ocasião, faço ainda um último, derradeiro e, para mim, alegre registro. Mais do que a honra e a alegria de poder homenagear o velho amigo e companheiro, foi ali em Atibaia que consegui, finalmente, consolidar e estreitar ainda mais nossa amizade, ao convencê-lo a aceitar a ocupar um acento dentro do Conselho Consultivo do CBC / Congresso Brasileiro de Cinema, e, com seu apoio, eleger-me para presidir a entidade.
E foi a partir daí, que pude finalmente reconhecê-lo, não apenas como um dos mais geniais cineastas brasileiros, nem apenas como um dos melhores amigos que já tive na minha vida, nem apenas como o cineasta de alma cineclubista, mas, finalmente, reconhecê-lo como aquilo que, na verdade, ele sempre foi para mim, enquanto vivo. Um leal e formidável conselheiro.
Descanse em paz, caro amigo, e leve consigo toda esta imensa dor e tristeza, que hoje invadiu esta minha alma, também, cineclubista.
* João Baptista Pimentel Neto é jornalista, cineclubista, gestor e produtor cultural, presidente do CBC / Congresso Brasileiro de Cinema e neste dia, especialmente, amigo do Carlão.
** Foto de Calebe Augusto Pimentel
Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter