Sem Gullar, o país ficou mais pobre

Perdemos Ferreira Gullar. Crítico de arte, contista, cronista, tradutor, artista plástico, jornalista, radialista, locutor, dramaturgo, biógrafo e, acima de tudo, poeta, profundamente poeta, José Ribamar Ferreira deixou a sua marca em nossas terras. Absolutamente plural em suas áreas de atuação, Gullar foi um dos nossos gênios, ao lado de Oscar Niemeyer, Graciliano Ramos, Nelson Pereira dos Santos, Portinari e tantos outros grandes nomes que ajudaram a fazer este país, todos eles membros do velho Partido Comunista Brasileiro, que reuniu algumas das melhores cabeças do país. Como bem me disse o historiador Ivan Alves Filho, o poeta Ferreira Gullar, em sua grandeza e pluralidade, foi uma espécie de Mário de Andrade da segunda metade do século XX.

O seu grande poema de exílio, "Poema Sujo", chegou às mãos do editor brasileiro Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, através de Vinícius de Moraes. Gullar o escreveu no período em que esteve na Argentina, em meados de 1975, quando vivia em Buenos Aires. Eram letras de morte, derradeiras; foi escrito para ser o seu último poema. Àquela altura da repressão, com tanta gente desaparecendo, pensou que seria assassinado. Sentou-se frente à máquina de escrever e bateu as primeiras linhas ("turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro..."), que não faziam sentido algum, como ele mesmo dizia, mas que deram início ao trabalho. Foi possuído pelo poema, e onde quer que fosse os versos estavam em sua cabeça, brotando, nascendo, furiosos e altivos. Escreveu, escreveu sem parar, por meses, vomitando seus versos, até que cólera poética foi embora antes que pudesse terminar a sua obra. Queria enfiar o dedo na garganta da palavra a fim de vomitar o restante do poema, dizia, mas não era possível -- a palavra não tinha garganta. Lembrou-se de um livro de Lênin em que o revolucionário, citando Hegel, dizia que o homem está na cidade como uma coisa está em outra, e daí partiu o insight dos versos finais do Poema Sujo: o homem está na cidade / como uma coisa está em outra / e a cidade está no homem / que está em outra cidade etc. Tive o prazer de ouvir essa história sendo contada pelo próprio Ferreira Gullar.

Foi homem de coragem, das coragens, física e política. Enfrentou a ditadura militar e pagou caro por isso. Militante do antigo Partidão, passou pelo Chile, Argentina, Peru e União Soviética, antes de finalmente voltar de novo ao Brasil, à sua terra de Joãos e Franciscos, Ribamares. Nunca teve medo de expôr as suas opiniões, das polêmicas, tanto em relação à política quanto também das questões da estética e da arte. Manteve-se independente de amarras ideológicas até o fim de seus dias, sempre coerente em sua vida e sua obra, sempre surpreendente.

Chegou ao Rio de Janeiro e ficou apaixonado, dizia que o Maranhão lhe doía o peito. Viveu por mais de três décadas no mesmo endereço, a formosa rua Duvivier, em Copacabana. Ao fim da vida, pediu à sua filha Luciana que o levasse a Ipanema, queria entrar no mar e ir embora. Era uma despedida, assim como este meu texto também é uma carta de adeus ao poeta que por tantas vezes ocupou as minhas leituras e as discussões em que eu me meti, cujos versos animou tanto as conversas entre a roda de amigos que se juntavam para conversar sobre literatura.

A sua poesia, como ele próprio dizia, chegou sem respeitar nada, nem pai nem mãe, subversiva; incendiou o país. Sem Ferreira Gullar o Brasil ficou mais pobre. Adeus, poeta.

 

* André Rosa é tradutor.

 

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey