O Diário de Uma Camareira com Léa Seydoux, a nova musa francesa, e Vincent Lindon, o ator mau encarado, competindo pelo Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim tem de tudo para ser um bom filme - é preciso, a escolha da luz nas cenas é excelente, mostra uma perfeição exigente típica francesa, os atores são ótimos, não se trata de um remake de Renoir e Buñuel, mas falta alguma coisa, aquela coisa capaz de tornar um filme bom melhor que os outros.
Um filme bom, bem trabalhado até mesmo burilado, bem filmado, mas mesmo assim um tanto desdenhado pela crítica que lhe negou aplausos. Não era certamente o melhor dia para o cineasta Benoit Jacquod, pois seus atores não puderem comparecer na coletiva com a crítica.
Talvez o charme um tanto frio de Lea Seydoux pudesse amenizar o clima. Sem ela, as perguntas foram se transformando numa interpretação sóciopolítica do livro inspirador do filme, de Octave Mirbeau, publicado em 1900, e da prestação trabalhista da profissão feminina de camareira, há mais de cem anos, com reflexos na vida sexual das mulheres francesas, pioneiras na libertação sexual, e em termos de conquistas sociais.
A tal ponto que Benoit Jacquod, embora negando ser seu filme um panfleto social da época dos Anos Loucos, cita a frase de alguém, definindo o livro de Octave Mirbeau como "livro marxista-feminista". Sem esquecer de acrescentar as frases e o comportamento antisemita do servidor da casa normanda, onde trabalhava a camareira, como reveladores de que a agravação antisemita européia começou na França com o Caso Dreyfus. A partir dali, o antisemitismo latente veio a público nos jornais e entre os intelectuais, que não tiveram mais receio de mostrar suas tendências racistas. Lançada a semente na França, o antisemitismo se propagou por toda Europa com as consequências conhecidas.
Se no Brasil os filhos da burguesia tinham sua iniciação sexual com as empregadas domésticas, na França do fim do século XIX e começo do XX, as camareiras eram a compensação para os maridos frustrados por esposas frígidas. Isso gerava uma revolta introjetada nessas mulheres obrigadas a satisfazer o marido e sofrer as injúrias da esposa e de ter de dar sumiço à gravidez, pois na época não havia contraceptivos. Situação que, no pensar de Jacquot, apressou uma tomada de consciência e levou ao feminismo francês ao fim da Primeira Guerra.
Essa a versão áudio do diretor do filme, Benoit Jacquod, confirmando as imagens. Com efeito, Celestine, vivida por uma Léa Seydoux falsamente submissa, faz o trajeto habitual das camareiras, exploradas pela senhora patroa e levadas para a cama pelos discretos patrões. A exploração é um condimento importante para levar ao motim. No caso, Celestine, que nutre silenciosamente o desejo de escapar de sua vida sem futuro, vai se unir ao servidor da casa, Joseph, um misto de jardineiro e de faz de tudo.
Para Joseph, a revolta tinha levado à extrema-direita e ao antisemitismo, que Celestine contestava porque, dizia ela, suas patroas católicas ou judias eram iguais na exploração do seu trabalho. Essa divergência não impediu que Celestine participasse de um perfeito roubo dos patrões, única maneira de ambos deixarem a condição de empregados para montarem um bar, no qual Joseph gostaria de ser o gigolo de Celestine, servindo os clientes no balcão e na cama.
Por certo, Celestine imaginava encontrar uma maneira de se livrar de Joseph, diz o diretor do filme, mas talvez estivesse saindo do ruim para entrar no pior, ao tentar sua libertação.
Para quem lhe perguntou, talvez candidamente, a quem ele queria se referir, a Renoir ou Buñuel, o diretor respondeu francesamente que com sua experiência faz seus próprios filmes sem precisar se referir a ninguém e que sua intenção ao ler o livro foi de tirar da leitura uma versão diferentes, sua, própria.
Panfleto marxista-feminista, cartesiano, dialético, seja o que for, a crítica não se entusiasmou, mas é um belo filme.
Rui Martins
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