A “missão francesa” em pratos limpos

Adelto Gonçalves (*)

I

Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830) foi um pintor francês acadêmico que gostava de pintar paisagens, mas que, obrigado pelas circunstâncias, teve de compor quadros históricos e morar por cinco anos na acanhada e ingênua Rio de Janeiro do início do século 19, a uma época em que a cidade teve de se inventar a si mesma para receber uma corte que, se não se comparava em luxo e riqueza às das grandes nações européias, tinha lá os seus encantos.

Mas, ao contrário do que se lê numa historiografia mais antiga e oficialesca, nem Taunay nem os demais artistas franceses que o acompanharam na travessia pelo Atlântico, formando o que se convencionou chamar de “missão francesa”, vieram a convite do príncípe regente d.João (1767-1826). Vieram mesmo de oferecidos, liderados por Joachim Lebreton (1760-1819), secretário da classe de belas-artes do Instituto de França. Até porque d.João não seria tão parvo a ponto de chamar exatamente artistas que tanto haviam louvaminhado o inimigo francês, que em 1807 forçara a sua vinda para o Brasil.

É o que mostra Lilia Moritz Schwarcz (1957), professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP), em seu novo livro, O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d.João, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, com apresentação do poeta e africanista Alberto da Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras e ex-embaixador do Brasil em Portugal.

De fato, os artistas franceses que aportaram no Brasil em 1816 -- Taunay, entre eles --, depois de exaltar os feitos de Napoleão Bonaparte (1769-1821) e seu império, vinham descrentes nos destinos da Revolução e desapontados com as oportunidades profissionais que então se apresentavam em Paris. Fugiam, isso sim, da Restauração dos Bourbons, das guerras, das suas desavenças particulares e de uma França que não existia mais.

Vinham por iniciativa própria e dispostos a criar no Rio de Janeiro uma Academia igual à que já existia no México. E, naturalmente, de olho nas burras dos nobres portugueses e grandes comerciantes negreiros cariocas que pudessem pagar por sua arte. Mas só quando já estavam no Rio de Janeiro é que Antônio de Araújo e Azevedo (1754-1817), o conde da Barca, ministro de d.João, animou-se com a idéia de criar no país uma academia semelhante à francesa.

Considerado o membro mais importante do grupo, Taunay pensava mais alto e trazia na bagagem a intenção de se transformar em pintor do rei. Mas, ao contrário do que imaginavam, nem Taunay nem outros artistas que o acompanhavam, como Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e Grandjean de Montigny (1776-1850), tiveram vida fácil no Brasil. O que os arquivos mostram é que Taunay escreveu a d.João uma carta oferecendo seus serviços, fosse na qualidade de professor de desenho dos príncipes ou das princesas, fosse no cargo de conservador de seus quadros e estátuas.

Como era comum à época, o pintor humilhou-se e bajulou o quanto pôde o monarca que, como não dispunha de muitas opções, acabou por aceitar a oferta. E, assim, Taunay acabou contratado pelo prazo de seis anos com um vencimento de 800 mil réis, a mesma quantia de seu colega Debret. Mas não se pode dizer que tenha “feito a América”.

De fato, o destino seria bem diferente daquele que Taunay traçara para si antes de deixar a França: sem muito espaço na corte de d.João, o artista iria se refugiar numa propriedade que haveria de adquirir perto de uma cascata -- e que imortalizaria num de seus quadros -- na Floresta da Tijuca. E, mesmo depois da morte de Lebreton em 1819, nunca alcançou no Brasil uma posição de grande prestígio. Cinco anos depois, decidiu retornar a França, com a situação financeira bastante abalada. Morreu em 1830. Mas, a exemplo de Debret, deixaria muitos quadros sem os quais, hoje, conheceríamos bem menos costumes e aspectos do Brasil, principalmente, do Rio de Janeiro daquele tempo.

II

Diz a investigadora que o ato de misericórdia nas aspirações do grupo francês no Rio de Janeiro foi a criação da Academia Real de Belas Artes em 1820, cujos cargos principais os artistas franceses esperavam que lhes fossem destinados. Mas o pintor Henrique José da Silva (1772-1834) foi mais ágil e habilidoso nos conchavos de bastidores no paço real.

Segundo Lilia Moritz Schwarcz, Henrique da Silva era um “professor e artista português pouco conhecido, bastante desprezado pelos franceses e recém-chegado ao Brasil”, mas foi ele quem ficou com o cargo de diretor da Academia, com um ordenado um pouco superior ao de Taunay, nomeado lente de pintura de paisagem. Teria sido por causa dele que Taunay refez as malas de retorno a França.

Já o padre Luís Rafael Soyé (1760-1831), que também viera para o Rio de Janeiro depois da mudança da corte, ficaria como secretário da Academia e Escola Real, o que irritaria ainda mais os franceses. Debret, por exemplo, chamava os portugueses de “intrusos”, enquanto para os demais integrantes da nova escola os franceses é que eram “estrangeiros intrusos”. Para Debret, Henrique da Silva era “um pintor medíocre e pai de numerosa família” que “vegetava em Lisboa”.

Se alguma informação se pode acrescentar a esse livro, é para dizer que esse Henrique José da Silva foiomesmo que, em 1804 ou no começo de 1805, subiu os degraus do prédio de nº 11 do Beco de André Valente, no Bairro Alto de Lisboa, para pintar o retrato do poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805). Não se pode dizer que seria um artista de poucas qualidades, pois o quadro que fez de Bocage não fica em nada a dever a tantos quantos Taunay pintou de outras personagens da época. Mas, claro, em paisagens, Taunay era um artista como poucos. E Debret não lhe ficava atrás, embora sua fama tenha mesmo se restringido ao Brasil.

De Bocage como pagamento, o que Henrique José da Silva recebeu foi um soneto em que o poeta lhe agradeceu “o primoroso desempenho” com que o retratou. Mas, depois, é de supor que Henrique da Silva tenha levantado um bom dinheiro graças à fama do poeta, pois chegou a um acordo com o famoso gravador florentino Francesco Giuseppe Eligio Bartolozzi, que viera para Lisboa em 1802, este sim, a convite do príncipe regente para atuar como mestre de gravura na Impressão Régia. Bartolozzi fez uma estampa com base no retrato produzido por Henrique da Silva e, um mês depois da morte de Bocage, abriu subscrição pública para a venda de gravuras com a efígie do poeta.

Como se lê na Gazeta de Lisboa de 21/1/1806, as gravuras foram vendidas a 800 mil réis na Casa da Gazeta, ao Terreiro do Paço, e no café de José Pedro (das Luminárias), ao Rossio. Quatro anos depois, os dois artistas continuavam ganhando dinheiro com as estampas de Bocage. Dos papéis da irmã de Bocage, Maria Francisca, que repousam no Arquivo Distrital de Setúbal, porém, não há registro de que, algum dia, tenha recebido algum tostão por essa iniciativa da dupla.

III

Mas não era só de Henrique da Silva e de Soyé que os franceses se queixavam. Também reclamavam da perseguição de Maler, cônsul francês no Rio de Janeiro, que, obviamente, não podia ver com bons olhos a presença de bonapartistas em solo brasileiro e não perdia oportunidade para insinuar que seriam perigosos conspiradores dispostos a botar fogo no Brasil com seus ideais de revolução.

Fosse como fosse, desiludido, Taunay, o mais velho e graduado dos artistas franceses, percebeu que não teria mesmo muito futuro no Brasil e convenceu-se de que estava mais do que na hora de voltar a Paris, onde, prudentemente, deixara aberta a possibilidade de retornar ao Instituto de França, do qual apenas se licenciara. Lembra a autora que, enquanto permaneceu no Brasil, Taunay seguiu sua “missão particular”, registrando os “seus trópicos”, enquanto Debret se mantinha fiel à tradição de Jacques-Louis David (1748-1825), o pintor preferido de Napoelão Bonaparte, e “procuraria no passado uma solução para o presente”.

Como iluminista, Taunay sempre se sentiu incomodado num país em que os escravos serviam para tudo: até como meio de transporte para que as damas não molhassem os pés, como se pode ver em quadro do artista. E os pintou como figuras extremamente diminutas, como se fossem borrões na tela, talvez para que passassem despercebidos em meio à exuberância da paisagem tropical. Como diz Lilia Moritz Schwarcz, Taunay sempre reclamou da luz excessivamente brilhante da América, dos verdes "excessivos" das florestas e do céu do Rio de Janeiro, que considerava absolutamente "exagerado".

IV

Quem colocou a andar a versão de que d.João teria mandado contratar os artistas franceses foi Hippolyte, único filho de Taunay que retornou com o pai para a França, já que os demais permaneceram no Rio de Janeiro. De sua estada no Brasil, Hippolyte Taunay escreveu, em co-autoria com Ferdinand Denis, Le Brésil ou histoire, moeurs, usages et coutumes des habitants de ce roiyaume (1822), que, além de importante fonte para a compreensão daquele período, fornece uma versão bem parcial da história do pai.

Também o historiador Afonso de Escragnole Taunay (1876-1958), bisneto de Nicolas-Antoine, em A missão artística de 1816 (Brasília, Universidade de Brasília, 1983), iria reforçar a versão de que d.João, influenciado pelo conde da Barca, entre as medidas que imaginara para arrancar o Rio de Janeiro de um atraso secular, mandara buscar artistas na França.

Foi esse Taunay quem idealizou o termo “missão” para o que antes era conhecido como “colônia francesa” ou “colônia Lebreton”. Segundo Taunay, esses artistas seriam “abnegados, apaixonados pela arte, valentes trabalhadores” que teriam vindo ao Brasil para arrancar a colônia “da modorra secular”.

Laudelino Freire (1873-1937), em Um século de pintura -- apontamentos para a história da pintura no Brasil: de 1816 a 1916 (Rio de Janeiro, Tipografia Rohe, 1916), recuperou argumentos utilizados por Henrique José da Silva para mostrar que os artistas franceses haviam chegado ao Rio de Janeiro sem que tivessem sido oficialmente convidados. E o fez com base num texto publicado no Diário Fluminense, de 12 de janeiro de 1828, de autoria anônima, mas redigido evidentemente por partidários do pintor português. Tudo isso contrariou não só Afonso de Escragnole Taunay como o historiador Adolfo Morales de los Rios Filho (1887-1973) que, em 1942, voltou a defender a interpretação hegemônica de que teria havido uma “missão francesa” no Brasil , procurando corrigir o que lhe parecia ser “uma espécie de má fé”.

Fartamente ilustrado, com 103 imagens em preto-e-branco e mais dois cadernos coloridos com 45 telas que Taunay realizou na Europa e no Brasil, O sol do Brasil, além de colocar no lugar muitos fatos da História brasileira do começo do século 19, chega no momento em que ocorrerão duas grandes exposições internacionais sobre a obra do artista: no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro (de maio a junho de 2008) e na Pinacoteca de São Paulo (de julho a setembro de 2008), ambas com curadoria da historiadora.

Entre outros livros excepcionais, Lilia Moritz Schwarcz é autora de Retrato em branco e negro (1987), O espetáculo das raças (1993), As barbas do imperador (1998) e A longa viagem da biblioteca dos reis (em co-autoria com Paulo Azevedo, 2002), todos publicados pela Companhia das Letras. O espetáculo das raças e As barbas do imperador (Prêmio Jabuti/Livro do Ano) também foram publicados pela Farrar, Straus & Giroux Publishers, de Nova York, em 1999 e 2004, respectivamente.

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SOL DO BRASIL: NICOLAS-ANTOINE TAUNAY E AS DESVENTURAS DOS ARTISTAS FRANCESES NA CORTE DE D. JOÃO

, de Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, 412 págs., R$ 43,60. E-mail: [email protected]

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey