AIDS, vida e vergonha

AIDS (SIDA) tirou a vida de uma pessoa, a vergonha tirou a vida de um homem, meu amigo. Que sirva de lição para aqueles que vivem com esta doença, que sirva de lição para aqueles que descobrem a sua sexualidade e que sirva de lição para ninguém ter preconceitos, este conto de Domingo, para reflexão.

O meu amigo João, heterossexual, morreu na sexta-feira e foi enterrado ontem. Digo heterossexual porque tinha muita importância para ele. Sendo jornalista, filtro o que escrevo, nunca caindo na tentação de colocar peças “pirosas” e pessoais.

No entanto, chega um dia em que todos nós, jornalistas ou não, sentimos a necessidade de dizer algo, de disseminar uma mensagem que achamos importante e de interesse geral. É o caso do meu amigo João.

João, cabo-verdeano, da Ilha de Santo Antão. Sabia ler letras e palavras, talvez não um texto e de certeza nunca um livro. Saiu da sua ilha árida, sem chuva, paupérrima, para buscar uma vida melhor no então império português, chegando a Angola, onde se tornou capataz de uma fazenda grande. “Mandava” em centenas de trabalhadores, de forma justa mas rigorosa e era respeitado por todos, trabalhadores angolanos e patrões portugueses.

Da pobreza ao sucesso, uma vida tranquila

Por pouco tempo. Em 25 de Abril de 1974, aconteceu a Revolução dos Cravos em Portugal, uma vitória para a humanidade mas um desastre para um milhão de seres humanos apanhados entre o passado e o presente, o caso dos “retornados” portugueses residentes numa África que já não lhes queria. João e sua esposa figuraram entre eles.

O João conseguiu trazer sua mulher, cabo-verdeana, para Portugal e conseguiu também a nacionalidade portuguesa para os dois. Empregou-se nas obras públicas, já não como capataz, mas como marteleiro (“deitar isso tudo abaixo” nas palavras dele), conseguiu arranjar uma casa nos arredores de Lisboa, na margem sul, e a seguir a família aumentou: duas filhas e um filho.

Durou talvez 10 anos a felicidade no terceiro país que o acolheu, até que a esposa, trabalhadora, mãe dedicada, faleceu com cancro de mama (e depois do pulmão). No hospital de São José, Lisboa, arranjaram três cadeiras para as três crianças verem os últimos suspiros da mãe. Assustados, mas com os olhos a registarem tudo. As últimas palavras, a última gota da vida. Durante o período em que a esposa estava internada, o João não falhou uma única visita, apesar de estar a viver num país e num regime que pouco flexível era quando se trata de faltar horas de trabalho.

A esposa morreu. O João ficou com os três filhos, e desdobrou-se nos horários, para compensar a falta da mulher. Exigia sempre que os filhos estudassem até ao último grau da escola, exigia sempre que “falassem direito”, o que significava falar com acento português, país de residência, e não cabo-verdeano (sem qualquer desrespeito pela terra natal).

Para criar três filhos (num pequeno apartamento), o João teve de trabalhar todas as horas e turnos disponíveis e teve de fazer uma horta numa área desusada perto de onde vivia. A sua horta, o seu trabalho e a sua dedicação, criou aquelas crianças com batatas, milho, couve, feijão, alface, tomate e servia de ponto de encontro entre a comunidade que o João criou.

Não se limitava nos seus contactos à comunidade cabo-verdeana (conservadora) da sua família, mas falava com todos, portugueses, estrangeiros, brancos, negros, africanos, europeus, asiáticos, criando bom ambiente, rindo e sorrindo, ensinando sempre enquanto aprendia, observando e divulgando acontecimentos insólitos, sempre enriquecendo quem estava ao seu lado. Ensinava crioulo, dizia que em país (tal) faziam (tal) mas sempre de forma a partilhar, nunca humilhar. O prazer de partilhar, ponto final.

Devido ao excesso de trabalho, durante longos anos, a saúde do João foi abaixo, com um estado reumático que lhe tirou a mobilidade. Conseguiu uma pequena reforma mas nunca o suficiente para criar a família e continuava a trabalhar, andando com bengala e sempre com muitas dores, a guardar obras de construção civil em Lisboa.

Quando as filhas foram crescidas, compraram uma casa e o João ficou com o filho, mais novo. Enfrentando dores cada vez que mexia os membros, continuou a trabalhar para o criar, mas já sem a presença das irmãs, este filho (vítima de um caso de eczema muito aguda) retraiu-se, não acabou os estudos. Começaram os roubos nas hortas e o João começou a passar lá todo o tempo, dia e noite, para proteger suas culturas. Começaram a entrar no bairro onde vivia pessoas que traficavam drogas, que ofereceram fortunas para os passadores e o filho caiu no canto da sereia.

O sistema caiu sobre ele de forma violenta (é negro) e enviou-o para a prisão. Mais uma vez, o João não faltou qualquer visita, sempre aconselhando o filho para se portar “direito” e quando este saiu, fez tudo para a sociedade o aceitar de volta.

Não aconteceu. João, sozinho, orgulhoso e solitário, sentia a falta de contacto humano e de vez em quando usava prostitutas, sem protecção. Sempre acontece aos outros, mas aconteceu ao João.

AIDS (SIDA) seguiu.

Quando lhe disseram o que tinha, entrou em pânico e durante anos viveu com a doença e a estigma, sozinho e solitário, escondido, humilhado, envergonhado, triste, pois a sua cultura pessoal lhe dizia que a AIDS era doença de homossexuais. Para nós, e depois? Para ele, um drama. Como para tantos outros.

Pela última vez, perto do Hospital onde estava a ser tratado como doente ambulatório, há poucos meses, vi o João, homem que me ensinou algumas palavras em Crioulo de Cabo Verde, homem que me lançou na senda de estudar e tentar alargar a questão da Lusofonia, homem que me ensinou a jogar a Sueca, homem que me ensinou as palavras que sei em Umbundo (do sul de Angola), homem que me ensinou a fazer grogue, que

me ensinou a ter respeito por todas as culturas sem as julgar.

Viu-me e fugiu. Com vergonha que tinha esta doença, AIDS, com vergonha daquilo que eu pensaria se eu soubesse. Posteriormente, eu soube. Estava ele já em fase terminal porque se recusava a tomar o medicamento, pois sentia-se mal. E principalmente, estava farto do estigma que carregava com ele. Sozinho e solitário.

A passagem do João para a vida além da nossa era inevitável desde o dia em que ele nasceu. No entanto, partilho estes meus pensamentos convosco no sentido de tentar criar uma sensibilização pública relativamente à sua condição.

Doente com AIDS, mas um ser humano. Doente com AIDS, envergonhado. Doente com AIDS, que se fechou da sociedade e dos amigos.

João, africano, grande Homem, trabalhador, dedicado à família, tinha a missão de criar os seus filhos como portugueses. E conseguiu. Só baixou os braços porque a Vida não lhe retornou aquilo que ele tinha investido, mas sempre sem qualquer rancor; no entanto, a sua passagem entre nós vale a pena ser recordada por vários motivos.

Ao João, um último abraço forte e sentido, um último apertar de mão, um último olhar para teus olhos, um olhar seguro de amigo para amigo, de homem para homem, de ser humano para ser humano. O AIDS pode ter tirado a tua vida, mas nunca vai colocar em questão a tua condição de homem.

Tu que me revelaste a sodade, dapandula, João!

Timothy BANCROFT-HINCHEY

PRAVDA.Ru

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey