No caso do cigarro as transnacionais do fumo devem largamente à mídia a façanha inacreditável de ocultar a verdade durante décadas desde os anos 1940, quando já havia nos laboratórios da indústria provas conclusivas sobre os efeitos devastadores de seu produto. Assim, toda a culpa da indústria tem de ser estendida à mídia, sua cúmplice (com as agências de propaganda), por se vender a ela. A mídia não mudou mas hoje é cúmplice envergonhada. A análise é de Argemiro Ferreira.
Desculpem a desagradável imagem acima, alusiva à data de 31 de maio - declarada em 1987, pela Organização Mundial de Saúde, o Dia Mundial Sem Tabaco. A ilustração tem sua razão. Pesquisas mostraram que imagens como essa, já tornadas obrigatórias em alguns países nos próprios maços de cigarro, são eficazes para desencorajar o fumo e pressionar fumantes a abandonar o vício.
Há outras, menos agressivas, mas sem a mesma força dissuasiva. Daí a indústria de cigarro, ao negociar acordos extra-judiciais (já firmados nos EUA com Procuradores Gerais de 46 estados), ter concordado com o pagamento de bilhões de dólares em indenização pelo custo das doenças causadas pelo fumo mas ir a extremos contra imagens nos maços para expor o efeito destruidor de seu produto.
As imagens são a verdade que a indústria obstina-se em esconder. No passado graças à cumplicidade das agências de propaganda e, em especial, da mídia elas eram substituídas na tela da TV e nas páginas dos jornais e revistas pelos anúncios mentirosos segundo os quais o cigarro, além de saudável, é a receita do sucesso e traz iates, mulheres, carros de luxo, etc.
A mídia não mudou mas hoje é cúmplice envergonhada. Nem por isso a do Brasil deu qualquer atenção à data anti-fumo que nos EUA levou o New York Times a publicar editorial vigoroso contra a ação fraudulenta da indústria, ainda obcecada em contornar proibições legais. A exceção no Brasil foi um texto do Valor Econômico a 29 de abril, traduzido de Business Week. Mostrava como a Philip Morris amplia a venda de cigarros em outros países, para compensar a perda nos EUA.
Quando a saúde está em questão
Muita gente costuma recordar até a data em que decidiu abandonar o cigarro. Para uns, claro, é bem mais difícil do que para outros. Comigo aconteceu há 40 anos, quando era editor internacional da revista Fatos e Fotos, na editora Bloch. Éramos uma equipe pequena na cozinha da redação: Cláudio Mello e Souza (diretor), Leo Schlafman, Sérgio Augusto, Paulo Perdigão, Luis Lara Resende.
Na outra sala ficava a reportagem, chefiada por Ney Bianchi. Difícil lembrar todos os nomes, mas Carlos Castilho, Hedyl Valle Júnior, José Paulo Kupfer e Margarida Autran estavam entre eles. Na redação talvez todos fumassem. Parei de fumar depois de reportagem na TV Tupi. Ali um médico pesquisador fora convincente sobre os efeitos do cigarro (podia ser só recado da emissora, então em declínio, à indústria, para ter mais anúncios. Hollywood, o sucesso era uma das campanhas na TV, rádio, jornais, outdoors, contra-capas de revistas (como Fatos e Fotos), etc.
Como estudioso da mídia, sempre me indignou suas relações promíscuas com o anunciante. Às vezes, como no episódio da vacina obrigatória no Brasil, a mídia é leviana também por motivação política (de baixo nível), indiferente à saúde das pessoas. Naquela cobertura aliara-se ao obscurantismo, insuflando uma revolta popular, quando devia no mínimo ser informativa, esclarecedora e responsável.
A Nestlé e a ameaça aos bebês
No caso do cigarro as transnacionais do fumo devem largamente à mídia a façanha inacreditável de ocultar a verdade durante décadas desde os anos 1940, quando já havia nos laboratórios da indústria provas conclusivas sobre os efeitos devastadores de seu produto. Assim, toda a culpa da indústria tem de ser estendida à mídia, sua cúmplice (com as agências de propaganda), por se vender a ela.
É semelhante, na história recente, o caso da cumplicidade da mídia com a Nestlé e outras corporações do mesmo ramo, empenhadas durante décadas e para tanto, investindo fortunas incalculáveis em campanhas enganosas de propaganda para forçar mães no mundo inteiro a trocar a amamentação dos filhos por seus produtos prejudiciais à saúde dos bebês, já que enfraqueciam as defesas deles.
A vitória da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do Unicef (Fundo das Nações Unidas para as Crianças) contra a Nestlé e o lobby mundial do leite em pó também foi dificultada por causa das relações promíscuas da mídia com as corporações afetadas em troca das verbas da propaganda. Só a duras penas a Nestlé, alvo principal, recuou e admitiu mudar ao menos o caráter de seus anúncios nocivos.
Como as duas organizações do sistema da ONU são de governos (sensíveis a pressão), foi necessário ainda grande esforço de grupos não governamentais, como Save the Children e International Baby Food Action Network, alertando para o risco da troca da amamentação pela infant formula da Nestlé, que prejudica os bebês, ampliando a mortalidade infantil nos países mais pobres.
Do boicote à liberdade individual
A idéia de um boicote mundial contra produtos da Nestlé foi lançada primeiro em 1974, com um panfleto na Inglaterra (título: The Baby Killer, o assassino de bebês). A Nestlé ganhou, após dois anos, um processo de injúria e difamação contra os responsáveis. Mas a vitória moral foi dos réus: tanto pela pena, uma multa irrisória, como pela afirmação do próprio juiz de que a Nestlé devia, sim, mudar sua propaganda.
Depois do processo veio um grande boicote, iniciado em cinco países. Em 1978 o Senado dos EUA abriu investigação e no ano seguinte Unicef e OMS iniciaram o debate de um código com restrições à comercialização e à propaganda do leite em pó. Suspenso em 1988, quando a Nestlé aceitou relutantemente o código, o boicote foi reativado depois, devido a violações da empresa. Até hoje persiste em alguns países.
Tanto em relação à Nestlé como ao cigarro, a cumplicidade da mídia é garantida pelas relações promíscuas da indústria com veículos. Além de embolsar milhões com a propaganda, os veículos ainda suprimem notícias contrárias aos interesses da indústria. E esta, ao se estender a outra área, de alimentos, não deixa de premiar com anúncios destes a mídia compreensiva com o cigarro, proibido de anunciar.
Provado em definitivo o efeito devastador do cigarro, que leva até à morte, advogados da indústria tiraram outro coelho da cartola. Criaram grupos de defesa da liberdade individual: nasceu assim a imagem do fumante como suposto libertário em luta contra o Estado opressor, que reprime seu direito de fumar (e morrer) sem se dar conta, claro, de estar servindo aos que faturam com seu vício, nunca à liberdade.
Blog de Argemiro Ferreira
Texto: Argemiro Ferreira
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