Ao final de 1797, por empenho do intendente de Polícia, Pina Manique, os poetas da Nova Arcádia que, ao contrário do que se imaginava, não fechou as portas depois que Bocage a ridicularizara participaram de uma sessão acadêmica na grande sala da Real Casa Pia, no Castelo de São Jorge, em Lisboa. Foi presidente da sessão o doutor Manuel Bernardo de Sousa e Melo, que havia sido alvo de ataques de Bocage três anos antes.
Sousa e Melo, a quem Bocage chamava de O Nênias, lúgubre vampiro em razão de sua poesia repleta de cenários fúnebres, era também pensador de méritos, ainda que afinado com o poder régio. À sessão acadêmica compareceu o príncipe regente dom João e foi a Sousa e Melo que coube a honra de fazer o discurso de saudação. Em seu discurso, que consta de um códice sem cota da Biblioteca-Museu da Casa Pia de Lisboa, o acadêmico fez a defesa da política do Estado contra os inimigos da ordem.
Disse o doutor Nênias: Os homens não nascem bons e, por isso, onde quer que vão levam consigo a depravação de origem. Portanto, os homens levarão consigo a ira, a soberba, a ambição, o ódio, a sensualidade, o ciúme, a vingança; enfim, levarão as paixões, estes ímpetos precipitados do nosso ânimo, estes monstros domésticos do nosso coração, mais indomáveis que as feras exteriores, pois, desenfreados e livres, não respeitam outro direito mais que o da força nem conhecem outras virtudes mais que as suas mesmas satisfações.
É claro que esse foi um discurso de encomenda, feito na medida dos interesses de quem promovia a sessão, o intendente, que, a essa altura, já não detinha o imenso poder de antes, quando se achava no direito até de espionar magistrados. Aquelas palavras eram tudo o que o intendente queria que o príncipe regente ouvisse para justificar mais repressão e, por conseqüência, a utilização de seus serviços.
Mais de dois séculos depois, esse discurso, é claro, está superado porque o que traz no seu bojo é a defesa de uma tirania sem medidas. Se o homem não é bom por natureza, ao contrário do que dizia Jean-Jacques Rousseau, só pode mesmo viver debaixo das botas de uma ditadura é o que se conclui dali.
Mas não é bem assim. Olhando sob a perspectiva deste início do século XXI, o discurso do Nênias não está tão errado assim, pois o homem continua vítima das paixões, como dizia Descartes. E, portanto, é preciso cercá-lo, levantar obstáculos que possam impedi-lo de dar vazão aos ímpetos precipitados de seu ânimo.
Só que o homem que deve ser vigiado não é mais o popular, o sujeito das ruas, mas sim aqueles que chegam ao poder pelo voto ou pela carreira no funcionalismo público. Afinal, depois do nazismo, do fascismo e das ditaduras que infernizaram o século XX, o regime democrático, tal como o conhecemos hoje, parece cada vez mais consolidado.
Portanto, o que urge fazer daqui para frente é tratar de seu aperfeiçoamento com o estabelecimento de mecanismos que possam evitar o assalto aos cofres públicos. Afinal, se o homem leva consigo a depravação de origem, quando chega a uma posição de mando, dificilmente, passa imune às paixões. Pelo contrário. Este é o momento propício para que se extravasem.
Essas idéias vieram a propósito da leitura de Declínio e queda do Império Romano, do historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794), que acaba de sair em edição abreviada e de bolso pela Companhia das Letras, de São Paulo, com organização e introdução de Dero A. Saunders, prefácio de Charles Alexander Robinson e tradução de José Paulo Paes. Ali se percebe que o irracional é o que marca a história humana, desde tempos imemoriais. É impossível resumir em poucas palavras o que Gibbon escreveu em seis volumes, publicados inicialmente entre 1776 1778, mas, a princípio, pode-se dizer que o livro mostra como o cristianismo dobrou a espinha dorsal da Roma guerreira.
Gibbon estudou o Império Romano do segundo século da era cristã até 1453, ano em que Constantinopla caiu em mãos dos turcos. Para o historiador, ao aceitar a filosofia cristã, os guerreiros romanos se enfraqueceram, pois teriam passado a dar a outra face, a amar os inimigos, a acreditar na vida eterna, o que mostraria a inutilidade que é ajuntar tesouros na terra. Será?
É claro que estas são idéias do século XVIII, pois, sem querer menosprezar a importância do cristianismo, a própria leitura do livro de Gibbon mostra que o homem é o mesmo há dois mil anos. O Bush filho de hoje não é pior nem melhor do que César ou Calígula.
No Brasil de hoje, por exemplo, o ódio aos políticos é tanto que não são poucos aqueles que, quando obrigados a cumprimentar um, correm logo ao primeiro banheiro para desinfetar as mãos. Essa gente, quando chega ao poder, leva consigo a depravação de origem que começa com a nomeação de parentes e acaba com o chafurdamento na lama da corrupção. Tinha, portanto, razão o doutor Nênias, por sinal, contemporâneo de Gibbon.
Hoje, no Brasil, deputados governistas brigam para nomear apadrinhados para empresas estatais. Como tem mostrado incansavelmente o trabalho das comissões parlamentares de inquérito, esses altos funcionários de empresas estatais, em retribuição, sempre encontram um jeito de pagar por serviços nunca prestados, drenando, assim, o dinheiro público que não só vai financiar campanhas eleitorais como alimentar contas em paraísos fiscais e enriquecer a corja dos políticos.
O que fazer? Como se sabe que, dificilmente, alguém consegue domar os monstros de seu coração a ânsia pela riqueza fácil , a sociedade civil só tem uma saída: organizar-se para impedir que esses ladrões continuem a dilapidar os cofres públicos. Uma saída é a privatização: quanto menos empresas públicas existirem, menores as possibilidades de ataques aos cofres públicos. E se a falcatrua e o roubo à propriedade pública são inevitáveis, que ocorram apenas uma vez, na hora do processo de privatização.
É claro que nem no tempo de Gibbon nem na época romana que ele tanto estudou nada disso existia, mas a depravação era a mesma: para chegar ao poder, valia tudo. Dos dezenove tiranos que começaram com o reinado de Galieno, lá por meados do segundo século da era cristã, não houve um só que tivesse desfrutado uma vida de paz ou sofrido uma morte natural. Tão logo eram investidos na púrpura sanguinária, inspiravam a seus partidários os mesmos temores e ambição que ocasionara a revolta destes, escreve Gibbon.
Alguma diferença com os tempos de hoje? Apenas na maneira como chegam ao poder: aqueles pela força, os de hoje pela lábia, pelas campanhas financiadas por quem está de olho nas verbas gordas do futuro governo, mas, mal chegam ao poder, logo dissensões se abrem e os amigos de ontem tornam-se imediatamente os inimigos de hoje.
Que não tenhamos tido, no século XVIII, um historiador da estirpe de Edward Gibbon serve para mostrar o tamanho do fosso que nos separa da cultura anglo-saxônica. O doutor Nênias esteve longe de significar para o mundo português o que Gibbon representou para a sociedade inglesa de seu tempo, mas não era bobo: como Gibbon, conhecia bem a matéria de que é feita a espécie humana. Talvez surja demasiadamente governista aos olhos de hoje, mas, em meio a um discurso extremamente palavroso, pensava com acuidade.
Bocage o decompôs o quanto pôde à época da guerra dos vates, mas, pouco antes de morrer em 1805, por ocasião do seu falecimento, escreveu dois poemas em que o chamava pelo nome arcádico de Mirtilo o que à época soava como uma deferência , tratando-o com a ternura que só se pode oferecer a um amigo.
Talvez houvesse nisso alguma forma de reconhecimento de seu valor intelectual. Isso, porém, só saberemos quando algum estudioso se dispuser a recuperar os seus discursos esquecidos em arquivos e bibliotecas, já que a sua poesia funérea Bocage tinha razão não há de servir para muita coisa. Alguém se habilita?
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*Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Bocage o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]
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