O hogar das dívidas

Mirando a distância, a meia leitura do poema, indago-lhe - existe livro que não é Ilha? Mesmo na estante preenchida por livros, mesmo na voluntad da criança curiosa que os põe abertos uns sobre os outros, incerta do que ler primeiro... Não está presente ali, ainda assim, a cúspide de um inescutável, lato oceano que a todos separa?

     Unidade é aquilo que pedimos ferventemente - mas que dói tanto. Deparar-me com um livro uno, úmido de coesão, como é o de Reina María Rodríguez, é experiência desprotegida de encontro e desilusão. Pois a unidade, única força capaz de encher de lágrima os dutos da linguagem, é também a que se revela - e a cada um de nós - como Ilha. Diz a poeta em uma de suas linhas: O aqui que o confronta é sempre o mesmo: um hiato perfeito.

     Reina, que acabou de me ensinar isso em seus escritos, parece olhar para sua poesia (para o mundo) com uma ternura furtiva, idioma que só ela conhece. Poesia que tenta crescer para além das paredes dos versos. Que abre o manto e descobre que, qual seja a direção tomada, chegará a mar. Que fará? Dará a volta ao redor de sua impossibilidade? Ou esperará, entregue ao ofício de existir? Vivi quase meio século com vocês (ali, quietinha).

     Das agruras de se nascer numa ilha, poder ser machucada é uma delas. Os limites, por mais que tentem, não podem impedir os cortes. É-se descartada, embrutecida, paralisada. Retorna-se diferente, com manchas do tempo, para, no presente (no passante), conjugar o passado. E podia tocar gritando / o que agora não posso / por ser decente, velha / machucada. A música ecoa a culpa, nascente, de se tocar o piano com tanta dor.

     O chão pode parecer pouco, e a intempérie não faz calar, mas construir é tão parte do destino quanto qualquer outro verbo. A pequenez só escancara que existe algo a se perder. Só há dívida... se há algo a se perder. Como relatam as vigas do lar, existir é suportar o desalento do peso. E o peso do desalento, acrescentariam os humanos. Mas alguém já perguntou se podem as vigas sustentar... um peso que está abaixo delas? Como o título sustenta / o peso do poema?

     Remorsos para um cordeiro branco é antologia da materialidade do que ninguém acredita, assim como o limite é a pele do ser.

     Resiste, na poeta, a força para vociferar: Fora, marcas. Endivida-se para botá-las pr'além do umbral. Olhe de soslaio quem nunca foi acometido pelo arroubo de expulsar as marcas que o mundo escreve em nossos corpos. No fundo, é um pedido. A necessidade humana que toda Ilha tem de transformar em cais o seu hogar.

 

- João V. L. França, psicólogo e escritor.

 

 

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