Embora deplorável, a crise de proporções cataclísmicas que se abate sobre o Senado é, como ensina a antiga sabedoria chinesa, sinônimo de oportunidade. O seu longo desenrolar tem proporcionado uma visão panorâmica do caráter de boa parte dos atores desse festival de horrores que monopoliza as atenções daqueles que ainda têm estômago para assistir a tantas cenas tão degradantes.
Deflagrada a partir da eleição de José Sarney para a presidência da Casa, sob o patrocínio do presidente Lula, a guerra parlamentar tem a inestimável serventia de escancarar de maneira insofismável até aos seus mais entusiasmados admiradores a dimensão do desprezo presidencial pelos limites que o exercício do cargo lhe impõe. Entre eles, a reverência às demais instituições, o respeito à inteligência alheia Não votei no Sarney para a presidência do Senado e, se não for pedir demais, um átimo que seja de circunspecção.
O conflito descortinou a carência de personalidade de um Partido dos Trabalhadores vassalo de Lula e o comportamento ciclotímico do senador Aluízio Mercadante (PT-SP), cujas declarações contra ou a favor de Sarney oscilavam entre a submissão ao humor presidencial e a reprovação ouvida nas ruas.
E por falar em partidos, foi providencial a declaração do presidente licenciado do PMDB, Michel Temer, ora no comando da Câmara dos Deputados, convidando os dissidentes a deixarem a agremiação, com direito a uma espécie de waiver (perdão), a garantia da manutenção dos mandatos se aceitarem a generosa sugestão. Na tentativa de defender a imagem do PMDB, manchada pelo comportamento da maioria de seus integrantes, Temer mostra um viés intolerante ao pregar a proscrição dos que ousaram apontar mazelas que, afinal, já eram sobejamente conhecidas.
A sociedade teve a rara oportunidade de ver um facho de luz lançado sobre os herméticos subterrâneos da administração do Senado, onde se escondiam, às pencas, funcionários fantasmas, atos secretos, e até ultrassecretos; assistência médica vitalícia para senadores e ex-senadores, privilégios inaceitáveis.
Pôde-se conhecer a face autoritária, até então inimaginável, do ex-presidente da República elogiado pela condução da transição democrática, quando ele endossou a censura que seu filho conseguiu impor a um jornal, além de incontáveis outras transgressões éticas, morais e legais do ora presidente do Congresso.
Não foi lá grande surpresa saber que mais de dois terços dos membros do recém-instalado Conselho de Ética do Senado têm contas pendentes com a Justiça, praticaram nepotismo, assinaram ou se beneficiaram de atos secretos, mas certamente terá sido útil conhecer-lhes os nomes.
E o que dizer da seletividade dos senadores da tropa de choque, que ameaçam levar ao Conselho de Ética apenas os colegas que não rezam pela cartilha oficial? Aqui, é necessário um reparo: parte dos que defendem a renúncia de Sarney não o fazem por convicção, mas por mero cálculo político, temerosos da ira dos eleitores cujas memórias, por fracas que sejam, podem muito bem conservar até 2010 os nomes dos adeptos do mau combate.
Receio que não aflige senadores cujos mandatos não expiram ano que vem, como o destemido Fernando Collor (PTB-AL), recém-louvado pelo presidente Lula. Em sessão de baixaria explícita na volta do recesso, o chefe da inesquecível República de Alagoas mandou o senador Pedro Simon, critico de Sarney, engolir suas palavras.
A exposição escancarada das vísceras do Senado, que permite à Câmara ocultar as suas, pode não ser lá muito animadora, mas vale por um tratado a respeito da degradação institucional que acomete o Legislativo.
Luiz Leitão
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