Os EUA borbadeiam hospital administrado pela Médicos Sem Fronteiras
por Gianni Carta — Carta Capital
Cinco dias. Eis o tempo que Barack Obama levou para pedir desculpas a Joanne Liu, presidente da Médicos Sem Fronteiras (MSF) pelo bombardeio de um hospital da ONG em Kunduz, nordeste do Afeganistão, com saldo de 22 mortos e 37 feridos graves.
Erro de um caça norte-americano, segundo os militares dos Estados Unidos. Opinião diferente daquela da organização atingida. Segundo a MSF, tratou-se de uma carnificina, um crime de guerra. Mais: uma violação das leis internacionais de relações de conflitos armados.
Após várias versões de oficiais norte-americanos sobre as supostas razões do ataque ao hospital no sábado 3, Washington chegou à conclusão do “erro”. Mas o hospital era conhecido e existia faz tempo. E a ONG francesa havia dado novamente, em 29 e 30 de setembro, a localização do sistema de posicionamento global do prédio para os ministérios da Defesa dos EUA e do Afeganistão.
O caça norte-americano responsável pelo bombardeio mortífero, um AC-130, voa a baixas altitudes e é pilotado por humanos. Os disparos foram direcionados. Repetidos. Uma hora para destruir o enorme hospital.
Vale repetir: dez pacientes morreram incendiados sobre suas camas, entre eles três crianças. Doze médicos da ONG francesa perderam a vida. Os feridos gravemente somam 37. Foi a maior perda de pacientes e médicos causada em um ataque contra a MSF desde a sua criação, em 1971.
Exatos cinco dias antes do bombardeio ao hospital em Kunduz, o Talebã havia tomado a cidade das forças afegãs. Como diz, no diário Libération, o cientista político Gilles Dorronsoro, “a queda de Kunduz foi um choque maior para Cabul”.
Dorronsoro emenda: “A fraqueza das Forças Armadas afegãs forçou os Estados Unidos a reinvestirem em um conflito do qual Obama queria se desvencilhar”. Um conflito, diga-se, de 14 anos, iniciado pelo ex-presidente George W. Bush, o líder norte-americano que provocou o maior pandemônio na história recente no Oriente Médio.
Em um primeiro momento, Washington culpou o hospital de Kunduz por não ter fornecido suas coordenadas às autoridades militares. Essa hipótese, como visto acima, não passa de falácia. Houve uma segunda explicação: terroristas do Talebã atacariam os soldados do exército regular a partir do hospital.
Testemunhas do MSF negaram, no entanto, essa versão. John Campbell, general responsável pela defesa dos soldados norte-americanos, sustentou que os militares afegãos pediram apoio para defendê-los de ataques oriundos do hospital. Finalmente, o militar assumiu que o alvo foi “erroneamente” atingido pelas forças de seu país.
Campbell é um general peculiar, para não dizer inconfiável, ou, talvez, normal para os parâmetros dos Estados Unidos. Na verdade, lembra seus pares apenas interessados em mostrar que Washington age eticamente. Não parece ser o caso. O que podemos intuir de um general que muda suas versões de um evento trágico, com 22 mortos?
Obama levou cinco dias para admitir a falha e se desculpar / Crédito: Kevin Lamarque/Reuters/Latinstock
E como Obama, um presidente com algum crédito doméstico, mas vencido no Oriente Médio, onde foi dominado pelo premier israelense Benjamin Netanyahu, pode assegurar que os EUA tentam fazer algo pelo mundo? Absolutamente, nada.
Dorronsoro alega que o hospital em Kunduz foi bombardeado pelo fato de atender integrantes do Talebã. De fato, houve incidentes em julho deste ano, quando soldados norte-americanos entraram no hospital e alegaram que a Médicos Sem Fronteiras tratava insurgentes. O cientista político diz, não sem razão, que o incidente remonta ao “bushismo”, que rompe “com a tradição jurídica e humanitária ocidental, de um século.
Em suma: “Não há mais espaço neutro humanitário protegido pelas leis internacionais”. Jornalistas internacionais, diga-se, fazem parte dessa nova linha contra a visão norte-americana do Oriente Médio, quando, em certos casos, atacam Washington.
Mas Washington erra? Segundo Bernard Kouchner, fundador da MSF e ex-ministro do Exterior da França, não parece ser uma análise correta neste caso. Em entrevista ao diário italiano La Repubblica, ele disse: “Um erro não é possível, salvo se os pilotos não olharam o mapa”. Kouchner faz uma pergunta incisiva: quem preparou e ordenou o bombardeio?
De qualquer modo, um hospital, diz Kouchner, tem de atender todos, inclusive integrantes do Talebã. “Trata-se de um princípio moral. A verdade é necessária para salvar a honra do Exército norte-americano. O massacre de Kunduz é um escândalo.”
Kouchner está coberto de razão. Fala-se em “fog of war”, névoa de guerra, expressão criada por Carl von Clausewitz em seu livro Sobre a Guerra (1832), no qual as ambiguidades de um conflito são um fenômeno natural. Isto é, há fatores que a distorcem, como a visibilidade e o clima.
Dorronsoro fala, porém, em um “crime de guerra”, conforme as “práticas norte-americanas, e, em especial, de uma guerra que ciminaliza a ação humanitária”. Paolo Flores d’Arcais, colunista do diário italiano La Repubblica, argumenta que, em um primeiro momento, Obama, sugeriu a intenção de realizar uma investigação para verificar os “danos colaterais”. Mas usou o termo “incidente”.
Ou seja, conclui Flores d’Arcais, o presidente dos Estados Unidos não queria comprometer seu Exército. A MSF não recebeu nenhuma notificação de que seria atacado pelos EUA, em Kunduz. As regras de guerra foram quebradas.
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