Postulações sobre a categoria modo de produção

Para Tito, amigo que partiu cedo.

Iraci del Nero da Costa*

Neste texto trato de duas formulações sobre os modos de produção identificados por Marx. Na primeira afirmo que tais categorias devem ser vistas como integrantes de um continuum histórico-lógico próprio da Europa ocidental; a segunda refere-se à minha postura segundo a qual é impossível emparelharmos os distintos modos de produção como se eles apresentassem estruturas simétricas.

Segundo penso, dizer que os modos de produção integram um continuum significa afirmar que um decorreu do outro, que se acham entranhados, imbricados; tudo se passa como se considerássemos a mesma pessoa em momentos distintos de sua vida de tal sorte que, embora sendo a mesma pessoa, ela se apresentasse em cada um daqueles momentos como um todo uno e único, substantivamente distinto do que foi e do que será, mas, ao mesmo tempo, definindo-se como "resultante" (ou fruto) do que foi e "fundador" (ou embrião) do que será.

Os modos de produção apresentar-se-iam, pois, como integrantes de um todo que vai além de cada um deles tomado isoladamente, que vai além de uma mera justaposição, donde ser impossível destacá-los deste todo e colocá-los "um ao lado do outro" a fim de confrontá-los, vale dizer, estabelecer comparações entre coisas que seriam constituídas de substâncias idênticas ou equivalentes e que, em última instância e excluído o plano formal, apresentariam estruturas similares. Não, tal operação é-nos defesa, pois, aceitar o pretendido continuum, implica, logicamente, aceitar que os modos de produção não podem ser emparelhados, não se ombreiam, não apresentam o mesmo status, não são equivalentes, significa acatar, como fato, não estarmos em face de uma categoria, fundamento ou conteúdo denominado modo de produção que, no plano empírico, apresentar-se-ia sob várias formas (escravista, feudal etc.). Enfim, significa abonar a idéia de que cada modo de produção representa, do ponto de vista teórico, um corte lógico num processo histórico concreto, contínuo e solidário. Já do ponto de vista empírico, acrescento eu, cada modo de produção favorece em maior ou menor grau o processo de desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital. Deixemos esta última idéia para mais adiante e centremo-nos em outras implicações que decorreriam do fato de tomarmos como verossímil o aludido continuum.

Assim, aceito tal continuum, a gênese de cada modo de produção pode ser única, específica, sendo impossível, portanto, confundir os constituintes genéticos - elementos constitutivos bem como as inter-relações que os vinculam - de um modo de produção com os de outro. Ademais, na medida em que não tem de haver, necessariamente, apenas um padrão genético, torna-se impossível o estabelecimento de uma lei, ou conjunto de regularidades, que explique, de maneira abrangente e genérica, a passagem de um para outro modo de produção, ou seja, é impossível formular-se uma teoria geral das revoluções. Além disto, o próprio funcionamento interno bem como a eventual "dinâmica" ou "rigidez" de cada modo de produção não são passíveis de equacionamento único, pois poderão ser peculiares a cada um deles. Logo, tanto pela sua gênese como pelo seu "funcionamento", os modos de produção podem diferir entre si. Disto se conclui que eles não são isonômicos, vale dizer, não existe um conjunto único de leis ou regularidades que os reja.

Mas não lhes falta só a isonomia, pois, entre os modos de produção, também não existe homologia. Ao dizê-los não homólogos estamos a afirmar que não tem de haver, necessariamente, correspondência entre todos e cada um dos elementos constitutivos dos diversos modos de produção. Além disto, muitos de tais elementos não se repetem em modos de produção diferentes: uns por serem específicos de dado modo de produção, outros porque, embora aparentemente iguais, desempenham funções e/ou papéis únicos em cada um dos diferentes modos de produção.

Assim, como sabido, não existe no escravismo ou no feudalismo um sucedâneo da "lei do valor" vigente no capitalismo (ou seja, a determinação da magnitude do valor de um bem pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-lo).

Da mesma sorte, enquanto no capitalismo a concorrência econômica leva ao revolucionamento das técnicas e se define como um elemento endógeno desse modo de produção, no feudalismo, no que diz respeito ao relacionamento entre senhores, ela não se fazia presente e o "desenvolvimento das forças produtivas" dava-se independentemente do funcionamento do modo de produção, definindo-se, segundo alguns, como elemento exógeno, estranho ao feudalismo.

Como exemplo de elemento presente em todos modos de produção mas a desempenhar papéis absolutamente distintos podemos tomar os bens pertencentes ao trabalhador direto: o escravo - ele próprio uma propriedade de terceiros - detinha uns poucos bens pessoais e, eventualmente, um pecúlio, muitas vezes não reconhecido legalmente; já o servo, além do conjunto de bens pessoais, era proprietário, excluída a terra, dos meios de produção básicos necessários à sua manutenção e à reprodução de suas condições de trabalho estando-lhe aberta, ainda, a possibilidade de acumular como anotou Marx nos capítulos de O Capital, dedicados à discussão da renda da terra; o proletário moderno, por seu turno, além de possuir bens pessoais detém a propriedade plena de sua força de trabalho. A simples listagem aqui efetuada basta para evidenciar quão distintas são as funções desempenhadas pelos bens possuídos pelo trabalhador direto em distintos modos de produção, patenteando-se, pois, palmarmente, a pretendida ausência de homologia.

A esta altura parece-me oportuna a consideração de duas idéias que nos propiciarão explicitar, em sequência, algumas características fundamentais do modo de produção capitalista. A primeira acha-se logo acima: "do ponto de vista empírico cada modo de produção favorece em maior ou menor grau o processo de desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital." Já a segunda reza, segundo penso, que os distintos modos de produção identificados por Marx devem ser entendidos como um continuum do qual o capitalismo é o ponto culminante, e o é porque, a partir de sua efetivação, a história, além de se fazer universal, conheceu uma mudança qualitativa, de sorte que se tornou impossível dissociar as distintas sociedades ou áreas do planeta - a solidariedade que as une é dada e explicada pelo capital e pelo capitalismo e só será superada quando o for o próprio capitalismo. Vejamos, pois, como se relacionam estas duas proposições.

Consideremos, inicialmente, a afirmação "o capitalismo é o ponto culminante..."; dela podemos derivar duas vertentes, a primeira aponta, sobretudo, para o "passado" - o que teria levado o capitalismo a aparecer como ponto culminante? -, a segunda dirige-se ao "futuro": é possível "observar" este ponto culminante a partir do que dele decorreu? Para responder a estas questões servir-me-ei de recortes que efetuo em artigos já publicados.

Quanto ao "passado" temos: "O capitalismo é a forma superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana. Superior porque nele as formas mercadoria, dinheiro e capital chegam ao seu pleno desenvolvimento; os homens definem-se como simples portadores de relações: o capitalista personifica o capital, o trabalhador a força de trabalho reduzida à condição de mercadoria. O capital, por seu turno, traz implícitos os pressupostos de sua re-produção e acumulação: assim, enquanto os homens se sujeitarem à condição de portadores de relações, o modo de produção capitalista recolocar-se-á automática e autonomamente. Natural porque até então os homens restringiram-se, tão somente, a acomodar-se e amoldar-se às circunstâncias dadas. Neste sentido pode-se dizer que a história fez-se por e mediante eles, mas não foi posta pelos homens, não podendo, pois, ser considerada como criação efetivamente humana, vale dizer, como produto resultante da ação consciente do homem. Segundo a perspectiva marxista, tal forma de existência só será superada pela ação do espírito, da consciência, votada à negação da propriedade privada sobre os meios de produção, base objetiva sobre a qual se assenta aquela forma de sociabilidade." (MOTTA, José Flávio & COSTA, Iraci del Nero da. O fim da história, o início da história. Informações FIPE. São Paulo, n. 172, p. 20-23, janeiro de 1995). E mais: "Longo período da vida econômica da humanidade pode ser entendido, também, como a história do desenvolvimento das formas mercadoria, dinheiro e capital. Esse desenvolvimento nada mais é que o processo do qual resulta a universalização das ditas formas. Mercadoria, dinheiro e capital, relações sociais que são, chegam à sua culminância, vale dizer, universalizam-se, objetiva e absolutamente, com a emergência da mercadoria força de trabalho enquanto propriedade absoluta do trabalhador direto (...) Em suma, a emergência da mercadoria força de trabalho funda o modo de produção capitalista, possibilitando a transformação do trabalhador livre em assalariado, do dinheiro em capital industrial e do detentor dos meios de produção - e/ou da capacidade de mobilizá-los, mediante a propriedade de dinheiro ou outros haveres - em capitalista. (COSTA, Iraci del Nero da & MOTTA, José Flávio. A emergência da mercadoria força de trabalho: algumas implicações, Pravda.ru online, 6 de setembro de 2011).

Com respeito ao "futuro" é preciso considerar que, depois de estabelecido em um espaço geográfico considerável, o modo de produção capitalista - diferentemente do que se dá no âmbito do escravismo e do feudalismo - passa a expandir-se "exportando-se" a si mesmo (assim como "exporta" as distintas formas de capital), moldando, destarte, segundo sua natureza interna, o "mundo" (e aqui falamos efetivamente de todo o planeta) com o qual se defronta; na verdade, ele re-põe, re-cria, as várias economias, sociedades, comunidades e áreas com as quais se depara, as quais, embora não assumam, imediatamente, feição estritamente capitalista, ver-se-ão, em escala crescente, condicionadas e determinadas pelo capital e pelo capitalismo. Daí haver eu afirmado acima que: "...o capitalismo é o ponto culminante, e o é porque, a partir de sua efetivação, a história, além de se fazer universal, conheceu uma mudança qualitativa, de sorte que se tornou impossível dissociar as distintas sociedades ou áreas do planeta - a solidariedade que as une é dada e explicada pelo capital e pelo capitalismo". Cumpre notar, por fim, que, a meu juízo, "tal solidariedade só será superada quando o for o próprio capitalismo" porque: "enquanto os homens se sujeitarem à condição de portadores de relações, o modo de produção capitalista recolocar-se-á automática e autonomamente. (...) tal forma de existência [o capitalismo] só será superada pela ação do espírito, da consciência, votada à negação da propriedade privada sobre os meios de produção, base objetiva sobre a qual se assenta aquela forma de sociabilidade [o capitalismo]." Cf. citação acima.

Como se observa, ser-me-ia impossível admitir a existência de modos de produção coloniais. Segundo penso, tendo em vista o caráter imanentemente expansionista e subordinador do capitalismo não nos parece incorreto concluir que nossa história moderna (a história do Brasil a contar de 1500) define-se como um demorado processo de adequação desta parte do planeta ao capital e ao capitalismo. Nossa sociedade, posta pelo capital, empreendeu, pois, desde seu nascedouro, um longo percurso do qual resultou, inexoravelmente, o pleno estabelecimento do modo de produção capitalista no Brasil. Evidentemente, este processo não se deu de maneira linear, assumiu, sim, formas contraditórias, por vezes inacabadas e com contornos indefinidos -  verdadeiras aberrações para quem as analisar a partir dos modelos que se apresentaram em toda sua inteireza apenas em alguns países da Europa ocidental. A nosso juízo, só há uma maneira de apreender tal processo: cumpre assimilá-lo enquanto tal, vale dizer, como processo histórico concretamente dado; é preciso descrever como se deu o processo de formação, incorporação e adequação da sociedade brasileira ao modo de produção capitalista. Das ponderações colocadas acima infere-se a impertinência de "procurarmos" novos modos de produção depois de fundada, pelo capitalismo, a história universal. Posta esta e, correlatamente, o mercado mundial, persiste, apenas, o modo de produção capitalista - que a tudo ilumina, parafraseando a imagem clássica. Segundo nossa leitura de Marx, a superação "deste" modo de produção significa a superação da própria categoria, a pré-história devirá história; o homem, até então pressuposto, devirá sujeito.

Ao dizer que restará superada a "própria categoria" e ao propor que o homem "devirá sujeito" estou a apontar uma outra distinção entre os modos de produção, qual seja, a do papel da "consciência" na gênese de cada um deles. Esta distinção foi avançada em citação colocada acima, retornemos a ela: "O capitalismo é a forma superior e derradeira da existência natural da sociabilidade humana. Superior porque (...) Natural porque até então os homens restringiram-se, tão somente, a acomodar-se e amoldar-se às circunstâncias dadas. Neste sentido pode-se dizer que a história fez-se por e mediante eles, mas não foi posta pelos homens, não podendo, pois, ser considerada como criação efetivamente humana, vale dizer, como produto resultante da ação consciente do homem. Segundo a perspectiva marxista, tal forma de existência só será superada pela ação do espírito, da consciência..." (MOTTA & COSTA, 1995, p. 20). Além de remeter o leitor para o artigo ora citado, transcrevo abaixo um longo trecho colhido em G. Lukács no qual o autor - a meu ver em termos definitivos - trata da questão aqui aventada: "Pues las clases que en anteriores sociedades se vieron llamadas al dominio y, por lo tanto, fueron capaces de realizar revoluciones victoriosas, se encontraron subjetivamente ante una tarea mucho más fácil, a causa precisamente de la inadecuación de su consciencia de clase respecto de la estructura económica objetiva, o sea, a causa de su inconsciencia respecto de su propia función en el proceso del desarrollo social. Les bastó con imponer sus intereses inmediatos mediante la fuerza de que disponían, y el sentido social de sus acciones les quedó siempre oculto, entregado a la 'astucia de la razón' en el proceso social determinado. Pero como el proletariado se encuentra en la historia con la tarea de una transformación consciente de la sociedad, tiene que producirse en su consciencia de clase la contradicción dialéctica entre el insterés inmediato y la meta última, entre el momento singular y el todo. Pues el momento singular del proceso, la situación concreta con sus concretas exigencias, es por su naturaleza inmanente a la actual sociedad, a la sociedade capitalista, se encuentra sometida a sus leyes y a su estructura económica. Y no se hace revolucionaria más que si se inserta en la concepción total del proceso, cuando se introduce con referencia al objetivo último, remitiendo concreta y conscientemente más allá de la sociedad capitalista. Pero eso significa, subjetivamente considerado, para la consciencia de clase del proletariado, que la relación dialética entre el interés inmediato y la acción objetiva orientada al todo de la sociedad queda situada en la consciencia del proletariado mismo, en vez de desarrollarse, como ocurrió con todas las clases anteriores, más allá de la consciencia (atribuible), como proceso puramente objetivo. La victoria revolucionaria del proletariado no es pues, como para las demás clases anteriores, la realización inmediata del ser socialmente dado de la clase, sino - como ya lo vio y formuló agudamente el joven Marx - la autosuperación de la clase. El Manifiesto Comunista formula esa diferencia del siguiente modo: 'Todas las clases anteriores que conquistaron para sí el dominio intentaron asegurar la posición que ja havian logrado en la vida sometiendo la sociedad entera a las condiciones de su logro. Los proletarios no pueden conquistar para sí las fuerzas sociales de producción más que suprimiendo su propio anterior modo de apropiación y, con ello, todo modo de apropiación existido hasta ahora. (Cursiva mía G.L.) Esta dialéctica interna de la situación de clase dificulta, por un lado, el desarrollo de la consciencia de clase proletaria a diferencia del caso de la burguesía, que en el despliegue de su consciencia de clase pudo quedarse en la superficie de los fenómenos, detenida en la empiria más abstracta y grosera, mientras que para el proletariao, y ya en estadios muy primitivos de su desarrollo, el rebasiamiento de lo inmediatamente dado fue una imposición básica de su lucha de clases." (LUKÁCS, Georg. Historia y consciencia de clase. Barcelona, Editorial Grijalbo, 1975, p. 77-78).

Aí ficam, pois, algumas opiniões sobre a categoria em tela. Não tenho dúvidas, em breve o conjunto da obra de Hegel e Marx voltará a ser objeto de intenso debate, devemos estar preparados para ele tentando armar-nos, também, com nossa imaginação e espírito inventivo, pois, se muito resta por aprender com esses mestres, muito ainda terá de ser feito no plano da criação teórica.

* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey