Em nenhum outro país latino-americano a democracia vem sendo testada de forma tão dramática quanto no Chile, onde, há cinco meses, o debate político acontece sob um clima tenso e contaminado por bombas de gás, tropa de choque, choros, gritos, sirenes, prisões e pancadaria, no que pode ser interpretado, ao mesmo tempo, como um sinal de vitalidade e de intolerância. Tudo isso, em torno de um tema central: a educação.
Desde maio, 109 gigantescas marchas sacudiram Santiago. As maiores delas chegam a reunir 200 mil pessoas - mais que a capacidade somada dos estádios do Maracanã e do Morumbi. Nestes cinco meses de protestos, quase 1.800 manifestantes foram detidos pela polícia chilena e 12 jornalistas de agências internacionais de notícias foram agredidos e detidos por forças do Estado quando estavam simplesmente realizando o trabalho de fotografar os acontecimentos.
Muitos falam na pior crise no Chile desde a redemocratização. A aprovação do governo nunca esteve tão baixa. Apenas 22% dos chilenos respaldam o presidente Sebastián Piñera - o primeiro líder de direita, ou de centro-direita, a chegar ao poder no país democraticamente nos últimos 50 anos. Diante de tanta rejeição, a saída da direita tem sido a de apertar a repressão e aumentar os decibéis do discurso da ordem pública, numa tentativa de, pelo menos, restabelecer os 40% de apoio que este setor político consegue angariar no país tradicionalmente.
Num sistema político fossilizado desde o fim da ditadura Pinochet, em 1990 - onde direita e esquerda ainda aparecem como setores mortalmente divididos como nos tempos da Guerra Fria - qualquer intento de controlar protestos com o uso da força desata imediatamente uma guerra de ressentimentos antigos na sociedade.
Polícia incontrolável
O Chile não superou a cultura policialesca e controladora do passado, mesmo tendo vivido os últimos 20 anos sob o governo de uma grande coalizão de centro-esquerda, a Concertação (ou Concertación, em espanhol), em tese, sensível a este assunto. Um dos fatores determinantes para a persistência desta cultura repressiva é o fato de que a polícia chilena parece ser um órgão apartado de qualquer controle civil. Embora, na teoria dos organogramas, tudo pareça bem encaixado, a verdade é que os Carabineros são uma instituição tão sólida e particular no Chile que nenhum ministro de Interior tem, de fato, controle absoluto sobre a cultural policial.
Olhando de fora, os Carabineros são impecáveis. Mostram um espírito de corpo, organização, hierarquia, limpeza, presteza, educação, vocação de serviço e outros altos valores como talvez nenhuma outra polícia da América Latina tenha. Mas esta mesma atitude aguda, altiva, franca, direta, torna os Carabineros arrogantes a ponto de repelir com rudeza qualquer crítica, controle ou correção que venha do mundo exterior.
Na semana passada, a Comissão Internamericana de Direitos Humanos disse que tratará do caso chileno em sua próxima sessão, em São José da Costa Rica. O relator da ONU para Liberdade de Expressão, Frank La Rue, pediu acesso ao país, na última vez que esteve em Santiago, há duas semanas. E uma missão do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) espera estreitar o diálogo com a polícia chilena ainda este mês, sobre os estandares de legalidade que uma instituição como esta deve cumprir.
Somados, estes são sinais de que o mundo normal vê excessos na polícia chilena. Talvez, alguns até prefiram dizer que os excessos respondem a uma ordem superior, a uma intenção do governo. É verdade, em parte. Mas é uma verdade ainda mais complexa a de que um país como o Chile tenha uma polícia incontrolável.
Esta contradição entre o Chile democrático e o Chile autoritário encontra-se hoje num momento histórico, agudo. O exemplo mais triste é o dos 12 jornalistas capturados pela polícia, que relatam agressões inacreditáveis em tempos de democracia.
Num dos casos mais graves, o fotógrafo Fernando Fiedler, na agência de notícias italiana IPS (International Press Service) moveu há 10 dias o primeiro processo por sequestro de um jornalista por forças do Estado desde o fim da ditadura. Tremendo passo atrás para um governo que se apresentava como a nova direita.
Ameaças à autonomia do Poder Judiciário
O ministro da Secretaria Geral de Governo, Andrés Chadwick, mostrou, na semana passada, num café da manhã com correspondentes estrangeiros, no qual o Opera Mundi esteve presente, grande irritação com o fato de que as quase 1.800 detenções realizadas nos últimos 5 meses não tenham se convertido em prisões definitivas. Ou seja, jovens capturados nas marchas não ficam presos. São libertados por decisão da Justiça. Para Chadwick, é preciso que os tribunais de garantia mantenham estes jovens presos.
A posição de Chadwick - um linha dura num governo de linha duras - não é, como pode parecer, uma posição excêntrica e particular. Ela reflete a grande aposta do governo Piñera, que dá mostras seguidas de que pretende abreviar a solução dos conflitos sociais pela via policial e jurídica.
O presidente da Associação Nacional dos Magistrados, Leopoldo Llanos, denunciou uma "pressão ou, diretamente, uma intimidação para que os juízes se guiem por critérios do Executivo" em suas decisões. O governo tem ameaçado interferir na promoção de juízes que tomem decisões favoráveis aos manifestantes.
"Em nenhuma outra época da história do Poder Judiciário chileno, nem mesmo durante a ditadura, sofremos esse tipo de ameaça", disse Llanos.
Lei de Segurança Nacional
O assédio legal aos movimentos sociais foi explicitado no dia 18 de outubro, quando o governo invocou a Lei de Segurança Nacional, do tempo da ditadura, para punir manifestantes violentos. A iniciativa foi anunciada depois de o Ministério do Interior já ter enviado ao Parlamento um Projeto de Lei que pune com três anos de cadeia quem, em protestos, ocupe colégios ou edifícios públicos, desvie o trânsito ou desacate a polícia. O projeto de lei também determina que fotógrafos e cinegrafistas devem entregar à polícia imagens captadas nas manifestações, quando solicitado.
Por alguma razão, estes tensos espasmos da democracia chilena não chamam a mesma atenção dos meios de comunicação, comparando com acontecimentos mais ou menos semelhantes na Venezuela, na Bolívia, no Equador ou mesmo no Peru. Há uma sorte de incredulidade na opinião pública quando se trata de admitir que um governo não indígena, de direita, controlado por um empresário bem sucedido, que faz um lindo país nevado crescer 6% ano, não consegue se manter dentro das raias da democracia em seu estado mais vigoroso e livre.
*Artigo orinalmente publicado no Última Instância
Fonte: Opera Mundi
http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=6a0724f1d3e80fd5f761cacb7efe8593&cod=8798
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