por Ivan Pinheiro [*]
Temos que tirar o chapéu. O imperialismo norteamericano, envolvido ativamente antes, durante e depois do golpe de Estado em Honduras, fez agora uma jogada esperta, passando à opinião pública mundial a impressão de campeão da paz e da democracia, exatamente no momento em que a imagem de Obama se desgasta, por prosseguir a política belicista de Bush e estar à beira de uma derrota militar no Afeganistão e talvez no Iraque.
Roubando a cena da novela de mau gosto da volta de Zelaya, em que já brilharam, pela ordem, a Venezuela e o Brasil, o governo Obama dá um jeito de ficar com os louros de uma aparente conciliação para o impasse institucional hondurenho como se não tivesse nada a ver com o golpe.
Se a resistência popular tivesse arrefecido e optado por disputar e legitimar as eleições e se não tivesse ocorrido a surpreendente volta de Zelaya ao país, abrigado pelo governo brasileiro em nossa embaixada, o governo dos EUA não teria movido um músculo para alterar o quadro, como fez durante todos os quatro meses de crise.
O mais incrível é que, longe de anular os efeitos do golpe, com a volta incondicional de Zelaya ao governo e a devolução dos mais de quatro meses de mandato roubado, a solução imposta pelos EUA consolida os efeitos do golpe e legitima a transição para um governo burguês conservador.
Afinal de contas, os golpes são um meio e não um fim. Os fins foram alcançados: a inviabilização da Constituinte, o afastamento do país da ALBA e possivelmente um novo governo, à direita de Zelaya. O resultado do trabalho da missão estadunidense foi tão hábil que confundiu setores progressistas, que ingenuamente ainda festejam como vitória a "volta de Zelaya à Presidência".
Em primeiro lugar, o acordo não assegura automaticamente a volta do Presidente legítimo ao governo. Esta decisão ficou a critério do parlamento, que analisará um parecer da Corte Suprema, repetindo um ritual que já se deu há três meses. Baseado em decisão da Corte Suprema, que considerou que não houve golpe, mas uma "sucessão constitucional", este mesmo parlamento já havia abençoado Micheletti como presidente.
Que fique claro. O único objetivo da recente intervenção do governo Obama neste caso é dar legitimidade às espúrias eleições de 29 de novembro, em que o candidato da grande burguesia local associada ao imperialismo, Porfírio "Pepe" Lobo, é disparado o grande favorito. Ele é candidato do Partido Nacional, mais à direita que o Partido Liberal, de Zelaya e do próprio Micheletti. Além da campanha milionária na televisão e outros meios, este candidato usa a seu favor a esperteza política de se colocar como o candidato da "união nacional", acima do confronto entre os dois "liberais", cujo partido se dividiu e se desgastou.
O resultado da votação no parlamento é imprevisível. Apesar de não contar com maioria parlamentar nem no Partido Liberal, Zelaya pode se beneficiar dos votos do Partido Nacional, que detém quase 40% das cadeiras, interessado apenas em legitimar nacional e internacionalmente a previsível vitória eleitoral de seu candidato.
Esta talvez seja a melhor opção institucional burguesa para legitimar as eleições, um prêmio de consolação para Zelaya e a resistência popular, além de uma satisfação para a opinião púbica mundial. Zelaya assume como Rainha da Inglaterra, de mãos atadas, com um ministério de "união nacional", prestando-se a passar a faixa presidencial para um sucessor que fará um governo oposto ao dele, rompendo com a ALBA, paralisando o tímido processo de mudanças, mantendo incólume a constituição conservadora e alinhando-se incondicionalmente aos Estados Unidos, inclusive para o país voltar a ser, através da base de Sotto Cano, a principal plataforma para desestabilizar os governos progressistas dos dois países vizinhos: El Salvador e Nicarágua.
Para imaginar este cenário é importante ler a íntegra do acordo assinado pelas partes, que publico abaixo deste texto.
A cláusula 1, que trata do "Governo de Unidade e Reconciliação Nacional" determina que, seja quem for o titular da Presidência decidido pelo parlamento, o Ministério e o Secretariado serão integrados por "representantes dos diversos partidos políticos e organizações", a serem escolhidos por uma "Comissão de Verificação" (cláusula 6), composta por dois membros estrangeiros escolhidos a dedo pelo imperialismo, sob a fachada da OEA (Ricardo Lagos, ex-presidente do Chile, e a atual Secretária de Trabalho de Obama) e dois hondurenhos, escolhidos cada um por um lado.
Mas o núcleo duro da burguesia hondurenha pode não querer dar esta vitória simbólica à resistência popular e a Zelaya. Neste caso, se o Parlamento decidir nomear um tertius, para parecer um empate, ou mesmo se mantiver Micheletti (o que é mais improvável, por parecer rendição), Zelaya também estará de mãos atadas. Na cláusula 5, que trata do "Poder Executivo", ou seja, exatamente da Presidência da República, as partes se comprometem, em nome da "reconciliação e da democracia", a acatar qualquer decisão que venha a adotar o Congresso Nacional, reconhecido por ambos como "a expressão institucional da soberania popular".
Ou seja, se Zelaya não é restituído no cargo, a luta pela sua recondução à presidência perde bastante força e até mesmo sentido, já que ele próprio não a pode mais postular, pois concordou previamente com as regras de um jogo de cartas marcadas. Esta cláusula contém uma declaração pomposa, para deixar claro que as partes dão um cheque em branco ao parlamento unicameral: "A decisão que adote o Congresso Nacional deverá assentar as bases para alcançar a paz social, a tranqüilidade política e a governabilidade democrática que a sociedade exige e o país necessita".
Há outros itens do chamado "Acordo Tegucigalpa/San José" que mostram que o documento está mais para rendição do que para acordo. Um deles é a cláusula 2, em que Zelaya renuncia não apenas a convocar a Constituinte, mas também "a não defendê-la, de forma direta ou indireta, nem a promover ou apoiar qualquer consulta popular com o fim de contrariar qualquer dos artigos pétreos da Constituição".
A cláusula 3 é um chamamento público ao povo hondurenho para participar "pacificamente nas próximas eleições e evitar manifestações que se oponham às eleições e a seu resultado". Aqui, Zelaya abre mão da maior arma da resistência, ou seja, o boicote às eleições convocadas pelos golpistas e a seu resultado. Para a resistência popular, fica um dilema dramático, que pode inclusive trazer divisões: perder as eleições, legitimando-as, ou boicotá-las em oposição à postura de Zelaya.
Na cláusula 7 do documento, Zelaya desata outro nó que asfixiava os golpistas, além da incrível e heróica resistência popular. Antes mesmo do resultado da votação no Congresso Nacional, que já prometera acatar, assina com Micheletti um apelo mundial para a imediata revogação das sanções adotadas bilateral ou multilateralmente contra Honduras e a reativação dos projetos de cooperação com o país.
As declarações finais do "acordo" são patéticas. Em nome da "reconciliação nacional", elogiam-se as partes mutuamente pelo "seu espírito patriótico"; jactam-se da "consciência cívica" que revelam nesta "demonstração de unidade e paz".
Mas na cláusula 11 finalmente aparece o DNA dos autores do golpe de mestre. As partes fazem um "agradecimento" aos bons ofícios da comunidade internacional para resolver a questão, destacando, "em especial", além da OEA e do presidente de Costa Rica, "o governo dos Estados Unidos, seu presidente Barack Obama e sua Secretária de Estado, Hillary Clinton".
O texto chega ao cinismo de, além de elogiar o papel dos Estados Unidos, repudiar a "ingerência de outros países nos assuntos hondurenhos", numa clara insinuação em relação à Venezuela e até mesmo, nas entrelinhas, ao Brasil.
Apesar de difícil, ainda há tempo de Zelaya denunciar e romper o acordo, alegando alguma transgressão a seus termos. A novela ainda não acabou. Mas pessoalmente acredito que o "acordo" será mantido. Digo isso sem qualquer sentimento de traição de Zelaya à resistência popular. Em textos anteriores, deixei claro que ele representava setores não hegemônicos da burguesia hondurenha, cujo interesse na aproximação com a ALBA não tinha um sentido de transição ao socialismo, mas de fazer crescer o mercado interno e ter acesso a mercados de outros países da ALBA. Já em agosto deste ano denunciei as manobras que visavam a "comprometer ou neutralizar Zelaya com acordos rebaixados e criar as condições para um pacto de elites, um governo de "união nacional", que exclua os setores populares e garanta os privilégios da classe dominante e do imperialismo. O objetivo principal desta tática é a eleição de um "tertius" de consenso das elites, para "unir o país" e legitimar o golpe. A tarefa de realizar as eleições pode ser cumprida pelo próprio Zelaya, sem direito à reeleição e à Constituinte".
Em verdade, se consumar sua rendição ao pacto de elites, Zelaya estará sendo fiel à sua própria classe. Ou seja, se o "acordo" prevalecer, será sinal de que o imperialismo e a burguesia hondurenha recompuseram sua unidade, frente ao risco do crescimento da organização e da mobilização popular.
Mas, sem baluartismo e sem deixar de reconhecer que os inimigos alcançaram seus principais objetivos táticos nesta batalha, o indomável povo hondurenho de impressionante combatividade, coragem e determinação tem vitórias a comemorar, lições para tirar e grandes lutas para travar.
Graças à sua incansável luta, o golpe teve enormes dificuldades para se implantar, o que representa uma grande vitória, pois o imperialismo terá que pensar muitas vezes antes de tentar repetir esta fórmula em outros países.
A grande lição a extrair deste episódio é a de que os proletários só podem contar com eles próprios, sem ilusões em alianças com a burguesia nem em mudanças nos marcos da institucionalidade burguesa.
Em Honduras, nada será como antes. Uma vanguarda forjada na luta certamente aprofundará a organização e mobilização popular e não arriará a bandeira da Constituinte Soberana, com ou sem Zelaya, e de uma sociedade socialmente justa.
Íntegra do acordo assinado por Manuel Zelaya e Roberto Micheletti:
1. Sobre o Governo de unidade e reconciliação Nacional
Para conseguir a reconciliação e fortalecer a democracia, conformaremos um Governo de Unidade e Reconciliação Nacional integrado por representantes dos diversos partidos políticos e organizações sociais, reconhecidos pela sua capacidade, honra, idoneidade e vontade para dialogar, que ocuparão os diferentes Ministérios e Secretarias assim como outras dependências do estado.
2. Sobre a renúncia de se convocar uma Assembléia Nacional constituinte ou reformar a Constituição no irreformável.
Reiteramos nosso respeito à Constituição e às leis de nosso país, abstendo-nos de fazer uma convocatória para uma Assembléia Nacional Constituinte, de forma direta ou indireta, e renunciando também a promover ou apoiar qualquer consulta popular com o objetivo de reformar a Constituição para permitir a reeleição presidencial, modificar a forma de Governo ou ir de encontro a qualquer dos artigos irreformáveis da nossa Carta Magna.
3. Sobre as eleições e a transição do Governo
Fazemos um chamado ao povo hondurenho para que participe pacificamente nas próximas eleições e evite todo tipo de manifestação que se oponha às eleições ou ao seu resultado.
Pedimos ao Tribunal Superior Eleitoral que autorize e credencie a presença de missões internacionais.
4. Sobre as Forças Armadas e a Policia Nacional
Ratificamos nossa vontade de acatar em todos os seus extremos o artigo 272 da Constituição da República de Honduras, conforme o qual as Forças Armadas ficam à disposição do Tribunal Superior Eleitoral um mês antes das eleições gerais.
5. Do poder executivo
Para conseguir a reconciliação e fortalecer a democracia, no espírito dos temas da proposta do Acordo de San José, ambas as comissões negociadoras decidiram, respeitosamente, que o Congresso Nacional, como uma expressão institucional da soberania popular, no uso de suas faculdades, em consulta com as instâncias que considere pertinentes, como a Corte Suprema de Justiça e conforme a lei, resolva no procedente a respeito de "retroagir a titularidade do Poder Executivo a seu estado prévio a 28 de junho até a conclusão do atual período governamental, 27 de janeiro de 2010".
A decisão que adote o Congresso Nacional deverá assentar as bases para alcançar a paz social, a tranqüilidade política e a governabilidade democrática que a sociedade demanda e o país necessita.
6. Sobre a comissão de verificação e a comissão da verdade
Para conseguir a reconciliação e fortalecer a democracia, criamos uma Comissão de Verificação dos compromissos assumidos neste Acordo, e os que dele se derivem, coordenada pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Tal Comissão estará integrada por dois membros da comunidade internacional e dois membros da comunidade nacional, estes últimos escolhidos um por cada uma das partes.
A Comissão de Verificação será a encarregada de dar fé ao estrito cumprimento de todos os pontos deste Acordo, e receberá para isso a plena cooperação das instituições públicas hondurenhas. Com o objetivo de esclarecer os fatos ocorridos antes e depois do dia 28 de junho de 2009, será criada também uma Comissão da Verdade que identifique os atos que conduziram à situação atual, e proporcione ao povo de Honduras elementos para evitar que estes fatos se repitam no futuro.
Esta Comissão de Diálogo recomenda que o próximo Governo, no marco de um consenso nacional, constitua dita Comissão da Verdade no primeiro semestre do ano de 2010.
7. Sobre a normalização das relações da República de Honduras com a Comunidade Internacional.
Ao comprometermo-nos em cumprir fielmente os compromissos assumidos no presente Acordo, solicitamos respeitosamente a imediata revogação das medidas ou sansões adotadas em nível bilateral ou multilateral, que de alguma maneira afetam a reinserção e participação plena da República de Honduras na comunidade internacional, e seu acesso a todas as formas de cooperação.
Conclamamos a comunidade internacional para que reative o quanto antes, possíveis projetos vigentes de cooperação com a República de Honduras, e continue com as negociações futuras.
Em particular, insistimos que, através da solicitação das autoridades competentes, se faça efetiva a cooperação internacional que resulte necessária e oportuna para que a Comissão de Verificação e a futura Comissão da Verdade garantam o fiel cumprimento e continuidade dos compromissos assumidos neste Acordo.
8. Disposições finais
Toda diferença de interpretação ou aplicação do presente Acordo será submetida à Comissão de Verificação, a qual determinará, em conformidade com a Constituição da República de Honduras e a legislação vigente, e mediante uma interpretação autêntica do presente Acordo, a solução que corresponda.
Levando-se em conta que o presente Acordo é produto do entendimento e da fraternidade entre hondurenhos e hondurenhas, solicitamos veementemente à comunidade internacional que respeite a soberania da República de Honduras, e observe plenamente o princípio consagrado na Carta das Nações Unidas de não ingerência nos assuntos internos de outros Estados.
9. Calendário de cumprimento dos acordos.
Dada a entrada em vigor imediata deste Acordo, a partir da data de assinatura, e com o objetivo de aclarar os tempos de cumprimento e de continuidade dos compromissos assumidos para alcançar a reconciliação nacional, nos convém o seguinte calendário de cumprimento:
30 de outubro de 2009, assinatura e entrada em vigor do Acordo.
Entrega formal do Acordo ao Congresso para os efeitos do Ponto 5. "Do Poder Executivo". Dia 2 de novembro de 2009
Formação da Comissão de Verificação. A partir da assinatura do presente Acordo e no mais tardar dia 5 de novembro.
27 de janeiro de 2010, celebração da transferência do governo.
10. Declaração final
Em nome da reconciliação e do espírito patriótico que nos convocou ante a mesa de dialogo, nos comprometemos a cumprir de boa fé o presente Acordo, e o que dele se derive.
O mundo é testemunha desta demonstração de unidade e paz, à qual nos compromete nossa consciência cívica e devoção patriótica. Juntos, saberemos demonstrar nosso valor e decisão para fortalecer o Estado de direito e construir uma sociedade tolerante, pluralista e democrática. Assinamos o presente Acordo na cidade de Tegucigalpa, Honduras, no dia 30 de outubro de 2009.
11. Agradecimentos
Aproveitamos a ocasião para agradecer o acompanhamento e o bom trabalho da comunidade internacional, em especial à Organização dos Estados Americanos e seu secretario geral, José Miguel Insulza; às missões de Chanceleres do hemisfério, ao presidente da Costa Rica, Oscar Arias Sánchez; ao Governo dos Estados Unidos, seu presidente Barack Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton.
12. Sobre a entrada em vigor do acordo Tegucigalpa/San José
Para efeitos internos, o Acordo tem plena vigência a partir da sua assinatura. Para efeitos de protocolo e cerimoniais, se levará adiante um ato público de assinatura no dia 2 de novembro.
[*] Secretário Geral do PCB
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