O agronegócio golpista da Argentina
Após 101 dias de locaute golpista, os barões do agronegócio da Argentina decidiram suspender, neste final de semana, o bloqueio às estradas e outras formas violentas de protesto que causaram grave desabastecimento no país e objetivaram desestabilizar o governo democraticamente eleito de Cristina Kirchner.
Segundo Alfredo Angeli, o capo da Federação Agrária Argentina, as velhas oligarquias latifundiárias, hoje travestidas de agrobusiness, deverão agora concentrar as energias na pressão aos parlamentares, que iniciam nesta semana a votação do projeto de lei dos impostos sobre exportação de grãos as chamadas retenções. Vamos acampar no Congresso, esbraveja.
O conflito agrário na nação vizinha, rico em lições para os brasileiros, reflete a radicalização da luta de classes na América Latina. De um lado, as quatro entidades ruralistas, com seus interesses distintos, que não aceitam pagar mais impostos, apesar da fortuna acumulada com a valorização do preço das commodities agrícolas e o acelerado crescimento da economia média anual de 8% nos últimos anos. O agronegócio tem força numa economia assentada no campo. A Argentina é o terceiro maior produtor mundial de soja quase toda transgênica , o que rendeu no ano passado US$ 13 milhões no mercado externo. Também é grande exportador de trigo e carne.
Mídia, generais, bispos e classe mérdia
Os ruralistas contam com o apoio escancarado da mídia hegemônica, com destaque para o abjeto jornal Clarín; de velhos generais golpistas, que não escondem sua face horrenda nos protestos da oposição; da hierarquia carcomida da Igreja Católica, saudosa da tortura na ditadura militar, e da chamada classe mérdia, com seus panelaços em bairros ricos de Buenos Aires, como Recoleta e Belgrano. Desde a eclosão do conflito, em 11 de marco, estes setores golpistas não escondem seu desejo de derrubar a presidente Cristina Kirchner. Os mais excitados chegam a pregar a volta da sanguinária ditadura militar, que seqüestrou e matou mais de 30 mil argentinos entre 1976/83.
Para viabilizar este projeto, os barões do agronegócio apostaram suas fichas no caos econômico. O criminoso bloqueio das estradas resultou no desabastecimento de alimentos e combustíveis em várias cidades, inclusive na capital. Indústrias aventaram a demissão de 50 mil trabalhadores em decorrência da falta de matérias-primas e energia. A União Industrial Argentina, maior entidade empresarial do país, alegou que o movimento estaria forçando as dispensas. Já a Associação de Supermercados publicou nota afirmando que os bloqueios de estradas afetaram o transporte de mercadorias em geral, não só de grãos para a exportação. Com o cruel locaute, que praticamente interrompeu a venda de grãos ao exterior, o governo perdeu US$ 1 bilhão de impostos ao mês.
O locaute dos generais da multimídia
Do outro lado, encontra-se o governo de Cristina Kirchner, com todas as suas ambigüidades. Ela e seu marido, Néstor, foram eleitos com o apoio de setores ruralistas e aplicaram uma política de estímulo ao agronegócio inclusive liberando totalmente os transgênicos. Como observa Miguel Croceri, professor da Universidade La Plata, os ruralistas sempre foram beneficiados pelo atual governo, obtendo níveis recordes de lucro e rendas fabulosas com a exportação. Com a volta da inflação dos alimentos, Cristina decidiu baixar decreto elevando o valor das retenções. Daí a dura reação do latifúndio. Até agora, apesar das vacilações, ela se mostra firme no seu propósito.
Num gesto corajoso, Cristina também procurou mobilizar e politizar a sociedade, participando de protestos públicos. Num deles, em abril último, ela advertiu para o risco de retrocesso político no país. Lembrou que o golpe militar de 24 de março de 1976 também foi precedido do locaute de latifundiários e nomeou lideranças golpistas daquele período que voltaram à ativa. O passado quer voltar, mas não vai conseguir, afirmou. Conforme ressaltou, o golpismo atual teria apenas uma marca distintiva. Desta vez, eles não vieram com os tanques, mas sim acompanhados por generais da multimídia que fizeram o locaute à informação, torcendo e tergiversando.
Intelectuais, artistas e movimentos sociais
Em apoio à decisão de elevar as retenções, mesmo que com críticas às ambigüidades do governo, estão várias centrais sindicais, a heróica Associação das Madres da Praça de Maio, a maior parte do movimento dos piqueteiros (desempregados) e alguns partidos de esquerda. Na manifestação de quarta-feira passada, que tomou a Praça de Maio com mais de 100 mil pessoas, os bancários paralisaram as agências de Buenos Aires e vários vôos foram atrasados ou cancelados. Conforme descreve a reportagem do jornal Brasil de Fato, a manifestação foi marcada pela pluralidade; artistas e intelectuais estiveram presentes ao lado de integrantes dos movimentos sociais.
Noutra edição, o jornal entrevista o dirigente da Federação de Terras e Vivendas, o ex-deputado Luis DElia, que acusa a mídia de querer desestabilizar a democracia e gerar condições para a destituição de Cristina. Hebe Bonafini, líder das Madres da Praça de Maio, conclama o povo a reforçar a luta em defesada democracia e da liberdade. Nenhum passo atrás. Um manifesto assinado por quase 900 intelectuais também critica o golpismo ruralista. E o filósofo Rubén Dri alerta que o golpe já está em curso. Frases de que estamos em guerra e isto é uma revolução alimentam a direita que sabe o que quer e a esquerda estúpida. A seção na Liga Internacional de Trabalhadores (LIT), matriz do PSTU brasileiro, deu apoio aberto ao bloqueio das estradas.
A verdadeira praga da agricultura
A suspensão temporária dos bloqueios não encerra os violentos conflitos de classes na Argentina. As retenções, que foram criadas em 1967, suspensas nos anos 90 pelo neoliberal Carlos Menem e retomadas em 2002, têm três objetivos básicos: redistribuir a renda extraordinária do setor gerada pelo boom das commodities rurais; garantir subsídios a insumos e combustíveis, que têm seus preços controlados pelo governo; e manter os preços dos grãos e seus derivados no mercado interno. Na violenta recessão do início deste século, este imposto foi um dos principais pilares da recuperação econômica do país, fazendo o caixa necessário para a moratória da dívida externa e para o fim da paridade dólar-peso. Atualmente, representa 13% da arrecadação fiscal da União.
Até economistas cúmplices do neoliberalismo reconhecem que esse imposto é indispensável ao país. Para Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro de FHC, as retenções estão absolutamente corretas e são responsáveis pelo notável crescimento recente da Argentina. Evitam que o país vire uma grande fazenda, permitindo a sua industrialização e uma melhor distribuição de renda. O economista brasileiro lembra que o Brasil também teve suas retenções, chamadas de confisco cambial, entre 1930/80, o que garantiu a industrialização nacional. O Brasil poderia crescer o dobro se aplicasse essa política, mas aqui ninguém tem coragem de mexer com o setor agrícola.
Com o seu locaute prolongado e radicalizado, os barões do agronegócio revelam que não têm qualquer compromisso com a nação ou com o seu povo. A exemplo dos ruralistas brasileiros, os argentinos visam apenas seus altos lucros. O discurso nacionalista, carregado de slogans sobre o progresso econômico, serve apenas de fachada para sua ambição capitalista. A postura golpista e preconceituosa também é a mesma. Nas eleições presidenciais brasileiras de 2006, muitos barões do agronegócio colaram em seus carrões adesivos com os dizeres: Lula, a praga da agricultura. Não dá para ter ilusões com a nata deste setor, que nunca abandonou o seu passado escravista.
Altamiro BORGES
http://altamiroborges.blogspot.com/2008/06/o-agronegcio-golpista-da-argentina.html
Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter