Eliane Cantanhêde e Uribe, tudo a ver

ALTAMIRO BORGES

Uma das colunistas prediletas da famíglia Frias, Eliane Cantanhêde não esconde as suas opções políticas. No artigo “Chávez e Farc, tudo a ver”, publicado na Folha de S.Paulo, ela bombardeou as negociações encabeçadas pelo presidente da Venezuela, que resultaram na libertação de Clara Rojas e Consuelo González, seqüestradas há muitos anos pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. A jornalista acusou Hugo Chávez de ser um “aliado das Farc”, que “agem fora da lei, seqüestram e matam”. No velho estilo das intrigas midiáticas, bem ao gosto do “eixo do mal” do carrasco George Bush, ainda insinuou que o governo Lula é cúmplice do abjeto “terrorismo”.

“Por mais que o Brasil se esforce para minimizar as pretensões de Chávez, dizendo que ele foi só mediador e negando qualquer aliança entre ele e as Farc, é o próprio Chávez quem faz questão de mostrar as garras, dizendo que foi, sim, aliado, falando de igual para igual com as Farc. Há uma guerra na Colômbia e ele tem um lado... O Brasil dá tratos à bola para entender as Farc. Seria mais pertinente se tentasse de fato entender Chávez e, principalmente, aonde ele quer chegar. A bomba não está apenas sobre a cabeça de Álvaro Uribe, mas de toda a região”. Para Cantanhêde, influenciada pelos agouros da CIA, o presidente da Venezuela é um risco para a América Latina.

Os sabotadores da paz

Na prática, a colunista da Folha – assim como boa parte da mídia – torceu pelo fracasso da ação humanitária que resultou na libertação das duas colombianas. Ela sequer condenou as agressivas manobras militares do governo Uribe, confirmadas até pelas duas reféns, que quase abortaram as negociações no final de 2007. Agora, Cantanhêde se alia ao governo paramilitar e narcotraficante de Álvaro Uribe e ao presidente-torturador George Bush para rejeitar a proposta de Hugo Chávez de que as Farc e a ELN (Exército de Libertação Nacional) sejam consideradas forças insurgentes e não grupos terroristas, como forma de facilitar o processo de paz neste ensangüentado país.

Mas, como pondera o líder venezuelano, esta é a única forma de se tentar solucionar um conflito armado que já dura quatro décadas. “Ainda que a proposta possa irritar alguns, as Farc e o ELN não são terroristas. São verdadeiros exércitos que ocupam espaços na Colômbia. Há que lhes dar reconhecimento, porque são forças insurgentes”, insiste Chávez, mesmo condenando os métodos usados pela guerrilha. Até o truculento Uribe, acuado pelos familiares dos seqüestrados, admitiu recentemente tal possibilidade. “O governo colombiano, no momento em que avançar a paz com as Farc, seria o primeiro que deixaria de chamá-los de terroristas e o primeiro que pediria ao mundo que, como contribuição à paz, não os chame mais de terroristas”, encenou.

Violência, cocaína e poder

Bem diferente da visão tacanha e partidista de Cantanhêde, que prefere adjetivar de terroristas as forças guerrilheiras, o conflito armado no país vizinho tem causas profundas. Como relata Alon Feuerwerker, bem mais ético no ofício de jornalista, “a violência moderna nasceu das refregas entre liberais e conservadores. Mais especificamente, destes últimos terem abortado em meados do século passado a ascensão política das massas populares urbanas... Na Colômbia, a falta de um ambiente de convivência democrática decorre de um sistema político historicamente elitista e oligárquico, no qual a violência foi institucionalizada por décadas como método preferido para resolver as disputas pelo poder. Não foram as Farc nem o ELN que inventaram a guerra civil”.

A ausência de canais democráticos se expressa, por exemplo, no fato do país ser hoje o recordista mundial em assassinatos de líderes sindicais. De janeiro de 1991 a dezembro de 2006, ocorreram 2.245 mortes e 138 desaparições de sindicalistas, segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho. A violência se agrava devido à influência do narcotráfico no país. Cantanhêde, que se alia a Uribe, nada fala sobre seus notórios vínculos com a máfia da cocaína. Numa entrevista a Cesar Tralli, da TV Globo – que hoje trata as Farc de “narcoterrorista” –, a famosa apresentadora de televisão e modelo colombiana, Virgínia Vallejo, ex-amante de Pablo Escobar, dá detalhes sobre as intensas relações do maior e mais violento traficante do país com o seu atual presidente.

Autora do livro “Amando Pablo, odiando Escobar”, ela lembra que Álvaro Uribe, quando dirigiu o Departamento de Aviação Civil da Colômbia (1980/82), facilitou o tráfico de drogas aos EUA. “Pablo dizia que se não fosse por esse ‘rapaz bendito’ ele ainda estaria transportando cocaína em porta-malas de carros e nadando até Miami para levar a cocaína para os gringos... Os aviões do narcotráfico podiam aterrissar e levantar vôo diretamente para Bahamas de suas próprias pistas. Uribe tinha dado licença para as pistas e também para toda sua frota de aviões e helicópteros”. A ex-amante, que hoje reside nos EUA, afirma ter provas de que o violento contrabandista “era íntimo da família do atual presidente colombiano”. Quando seu pai, que chegou a ser processado por tráfico, foi assassinado, “Pablo lhe emprestou o helicóptero e ficou triste por vários dias”.

Temores de Uribe, Bush... e Cantanhêde

Além das causas históricas, o conflito interfere no rumo político do país e tem forte impacto na região. Uribe e os EUA tentaram sabotar as negociações humanitárias porque temerem os seus efeitos. Para o sociólogo Emir Sader, Uribe “depende da diabolização das Farc, que lhe permite aparecer como homem da ‘ordem’. Quando se reelegeu, teve como principal opositor a Carlos Gaviria, do Pólo Democrático, de esquerda, que desbancou o partido Liberal e Conservador. Nas eleições municipais de outubro, o governo perdeu nas principais cidades, como Bogotá, Medellín e Cali, para candidatos de esquerda. Revela-se assim que ele não tem apoio popular, precisando da polarização com as guerrilhas para tentar se perpetuar na presidência. Uribe nasceu da violência e sabe que sua sobrevivência política depende de que a violência não termine”.

Já no caso dos EUA, a paz negociada com as guerrilhas diminuiria ainda mais sua ingerência no continente. Atualmente, o presidente-terrorista George Bush conta com mais de 800 “consultores militares” dando ordens às forças armadas colombianas. O nefasto “Plano Colômbia”, com seus bilhões de dólares, serve para manter ocupado este sofrido país – rico em petróleo e estratégico na geopolítica hemisférica. Além disso, esta prolongada guerra afeta toda a região, ameaçando a sua segurança. Além do interesse humanitário, o empenho de Chávez na solução deste conflito tem o objetivo de evitar que o país sirva de trampolim para novas aventuras militares dos EUA.

Tucana mal informada?

Apesar destes fatos inquestionáveis, Eliane Cantanhêde e a mídia venal – tão covardes diante das agressões do “império do mal” – esbravejam valentia contra forças insurgentes caçadas na selva. Além de temerem os resultados da paz negociada, aproveitam a ocasião para fustigar o governo Lula. Exigem que este aceite as imposições dos EUA e qualifique a guerrilha de terrorista. Nem sequer o governo de FHC, tão servil ao império, tratou as Farc desta forma. Esta chegou a ter um escritório político em Brasília, que só foi fechado após os atentados de 11 de setembro. Por suas íntimas ligações com os cardeais tucanos – “Cantanhêde é mulher de Gilnei Rampazzo, um dos donos da GW, a produtora que cuidou das últimas campanhas eleitorais de Geraldo Alckmin e de José Serra”, dedurou Diogo Mainardi, outro famoso direitista –, ela devia ser mais equilibrada.

A diplomacia exige razão e não atitudes rancorosas e partidistas. Como argumenta o jornalista Max Altman, da secretaria de relações internacionais do PT, “IRA da Irlanda, ETA da Espanha, FMLN de El Salvador e a OLP de Arafat foram, ao seu tempo, qualificados de terroristas e nem por isso deixaram de sentar-se às mesas de negociação... O conflito armado colombiano, que já dura 44 anos, não terá solução no campo bélico e muitos anos mais – e muitos seqüestros, assassinatos, atentados e violações de direitos humanos, de lado a lado – se passarão sem que ele tenha fim... Se a proposta de Chávez não teve outro mérito, foi capaz de abrir a caixa de Pandora. Antes se falava apenas da guerra na Colômbia, hoje se discute a necessidade da paz”.

Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Venezuela: originalidade e ousadia” (Editora Anita Garibaldi).

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