1822: a Independência dos Escravistas
Mário Maestri
Na Semana da Pátria, as escolas e a mídia celebram o 7 de setembro, data da independência do Brasil, a ser festejada por todos os brasileiros. As verbas federais para a saúde e educação foram cortadas na carne. Mas sobra dinheiro para festejar a dita festa magna da nacionalidade. Jair Bolsonaro, como Fernando Collor de Mello, pede a todos que saiam às ruas de verde e amarelo, as cores do Império fundado em 1822, herdadas pela República em 1889. Mas, afinal de contas, essa é uma festa da sofrida população e das mulheres e homens de bem do país? A resposta é: - Não! A independência do Brasil deu-se segundo as necessidades dos exploradores, contra os explorados. Suas sequelas nos perseguem até hoje.
O Brasil conheceu a independência mais retrógrada das Américas. Ela deu-se com a entronização do príncipe herdeiro da metrópole com a qual se rompia. Impôs uma ordem centralista e nulamente liberal. Manteve a despótica ordem escravista então vigente. Promoveu a régia indenização da coroa lusitana pela perda do país que explorava havia séculos. Meses após essa ruptura "gradual e segura", o imperador ignorante promoveu o primeiro golpe militar do Brasil e outorgou Constituição despótica que regeu o país até 1889. A seguir, afogou em banho de sangue a revolta liberal nordestina.
A América lusitana foi sempre um mosaico de regiões econômica e socialmente semi-autônomas, administradas pelo Estado colonial lusitano. Eram mais estreitos os contatos das diversas capitanias com Portugal e com a África que entre si. Elas produziam com o trabalho escravizado os produtos coloniais enviados para a Europa via Lisboa, de onde chegavam os manufaturados consumidos. Os trabalhadores os destruídos pelas duras condições de trabalho eram substituídos pelos chamados "escravos novos" arrancados das costas africanas.
Ninguém era brasileiro
Os senhores regionais exploravam duramente seus cativos e exportavam e importavam o que necessitavam pelos portos da costa - Belém, São Luís, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Rio Grande, etc. Não havia portos monopólicos, como Buenos Aires, no Prata. Quase não existia mercado interno. Portugal limitava os já escassos contatos entre as capitanias, onde as classes dominantes locais controlavam o essencial do poder econômica e social. Eles viviam submetidos ao Estado lusitano que os protegia dos estrangeiros e das revoltas dos explorados e subordinados.
As classes dominantes das capitanias sentiam-se membros do império português, possuíam laços identitários regionais e desconheciam sentimentos 'nacionais'. Eram, portanto, lusitanos e, ao mesmo tempo, pernambucanos, paulistas, mineiros, etc. O Estado-nação e a brasileiro e a identidade nacional foram produtos da Revolução de 1930. Aborrecia-as o fato da administração colonial e do comércio serem dominados sobretudo por lusitanos natos. O Brasil era uma mera entidade administrativa exterior, um pouco como a atual União Européia.
Em fins do século 18, a ordem colonial ibérica tornara-se um anacronismo. As potências capitalistas emergente contornavam o monopólio metropolitano com o contrabando e as classes dominantes regionais queriam comprar e vender sem intermediários. Elas desejavam assumir o controle político das regiões que dominavam social e economicamente. Anteriormente, haviam ocorrido ensaios de independência, regionalmente circunscritos, como a Inconfidência Mineira, em 1789, e a Revolta Baiana, em 1797.
Independência na América Espanhola
Devido às mesmas forças dispersivas regionais, a partir de 1810, os núcleos econômicos e sociais da América Espanhola explodiram em um rosário de repúblicas dominadas pelas oligarquias locais. Em algumas regiões, as oligarquias regionais conseguiram estender o seu raio de dominação, como na Argentina e no México. O sonho de pátria ibero-americana unificada naufragou contra os escolhos das condições materiais e imateriais objetivas.
As mesmas forças dispersivas agiam fortemente nas colônias luso-brasileiras, denominadas de províncias após a chegada da família real, em 1808. Em janeiro de 1821, no Rio Grande do Sul, Auguste de Saint-Hilaire anotava em seu diário que o Reino do Brasil podia explodir em nações independentes, "como as colônias espanholas", considerando-se a tamanha diferença entre as mesmas. "Sem falar do Pará e de Pernambuco, a capitania de Minas e do Rio Grande, já menos distanciadas, diferem mais entre si que a França da Inglaterra"
As oligarquias rio-grandenses, paulistas, mineiras, pernambucanas, etc. desejavam se separar de Portugal, nacionalizar o comércio lusitano, resistir às pressões inglesas pelo fim do tráfico transatlântico de cativos e reinar soberanas sobre suas regiões. Mesmo havendo sentimentos federalistas monárquicas ou republicanos, eram fortíssimas as tendências separatistas no Norte, Nordeste, Centro-Sul e Sul. Tudo apontava para o surgimento de constelação de nações falando a língua portuguesa.
Entretanto, em 1822, as classes dominantes regionais emergiram da crise colonial tendo como imperador um príncipe herdeiro português e sob o tacão centralista e despótico da Corte, no Rio de Janeiro. Os grandes proprietários provinciais sequer obtiveram uma assembléia provincial e o direito de eleger o presidente da província. À exceção da Assembléia Nacional, fechada e castrada por Pedro I em 1823, pouco se modificou em relação ao Brasil Reino Unido a Portugal, de dão João 6º.
Cabral descobre o Brasil
A historiografia brasileira apresenta como um paradoxo a independência unitária, centralista, anti-liberal, apesar das forças centrífugas provinciais. Em geral, se escamoteia essa contradição com leitura teleológica do passado, em que o Brasil surge já predestinado, já feito, todo pronto, como surgiu em 1822 e como segue hoje, desde que Cabral pisou nas areais então não poluídas do atual litoral baiano. A independência e o unitarismo brasileiros são filhos univitelinos da ordem escravista. Eles se deram para manter os trabalhadores escravizados na submissão e para que outros não deixassem de chegar, aos borbotões, para conhecerem a triste sina do trabalho cativo no Brasil.
Em 1820, quando a Revolução do Porto tentou seu projeto de recolonização, o Reino do Brasil seguia sendo a região americana mais acabadamente escravista. Ele importara o maior número de trabalhadores escravizados e produzia os mais variados gêneros com a mão de obra servil. Todas as suas regiões eram sustentadas pela escravidão, em forma mais ou menos intensiva. Para as classes dominantes de todas essas regiões colocava-se o problema de como realizar a independência sem ameaçar a ordem escravista.
A independência das principais províncias ensejaria forte guerra por limites. A República do Rio Grande do Sul se esforçaria em estender as fronteiras até São Paulo, que tinha também a intenção de engolir o Paraná e Santa Catarina. E aí por diante. Cativos seriam mobilizados para lutar nos exércitos das novas repúblicas. A guerra era dos exploradores, a morte, dos explorados. Os escravizados se aproveitariam da guerra para fugir e se sublevar, como haviam feito, no Haiti, em 1804, e quando da invasão holandesa do Nordeste, em 1630, que originara a confederação dos quilombos dos Palmares. Separadas, algumas pequenas nações seriam reconquistadas por Portugal. Outras se vergariam ao abolicionismo britânico do tráfico. As que abolissem a escravidão receberiam os cativos fugidos, como faziam já as repúblicas vizinhas.
A Independência unitária, monárquica, autoritária, centralizadora deu-se sob a batuta conservadora dos grandes plantadores e comerciantes de escravos. Os ideários republicano, separatista e federalista provinciais foram reprimidos. Os grandes escravistas romperam com a coroa e com o absolutismo lusitano e entronizaram o autoritário herdeiro do reino português, assegurando os interesses da casa dos Braganças e dos comerciantes lusitanos radicados no Brasil. Mantiveram-se unidos para garantir o abastecimento farto e a exploração dura dos escravizados.
Promessa não cumprida
As forças liberais e federalistas regionais receberam a promessa que se discutiria a autonomia provincial quando de Assembléia Constituinte, convocada antes mesmo da Independência. Porém, em novembro de 1823, dom Pedro pôs fim ao regime constitucional e às esperanças federalistas e liberais, através do golpe de Estado militar do Brasil. As privíncias passaram a conhecer o tacão do Rio de Janeiro. Em 1824, o Imperador afogou no sangue a revolta liberal e separatista pernambucana, executando suas lideranças sem o julgamento. Os líderes da Confederação do Equador jamais propuseram a abolição da escravatura.
A Constituição autoritária e centralista imposta por Pedro I interpretava os anseios dos grandes escravistas de todas as províncias, que não queriam o liberalismo nem democracia restrita aos ricos. Aceitavam o tacão do imperador, desde que fossem senhores de baraço e cutelo de seus trabalhadores. Em 7 de setembro de 1822, nascia uma nação onde a escravidão se manteria até 1888. O Brasil foi a última nação no mundo a abolir a escravidão colonial. Em 1822, proclamou-se a independência dos escravizadores contra os escravizados. O Brasil espera ainda uma emancipação promovida pelos trabalhadores, assalariados e homens e mulheres de bem, em que finalmente a nação não seja madrasta terrível de seus filhos. [Comentário 5 de setembro. Duplo Expresso]
Mário Maestri, 71, historiador, é autor de Revolução e contra: revolução no Brasil. 1530-2018. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil#.XW2RdS3Oogt
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Foto: Por Desconhecido - In: Horace Waller: The last journals of David Livingstone in Central Africa, from 1865 to his death. London, 1874. Virgina.edu (dead link) NYPL, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=1785701
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