Providencial Desabafo de Mano Brown sobre Sociedade Brasileira
"Vi população virar as costas pra Dilma. Aí, falei: já que o povo escolheu isso, que assim seja. Daqui para frente fechou um ciclo na minha carreira e na minha vida. Se o povo decidiu derrubar um governo, que assim seja. Daqui para frente é cada um, cada um".
Edu Montesanti
O rapper Mano Brown, dos Racionais MC's, afirmou no discurso em seu espetáculo no último dia 20 no Rio de Janeiro, que "fechou um ciclo" em sua vida e na carreira depois que viu "a população virar as costas pra Dilma"... e depois de constatar "o poder que a população tem num país de terceiro mundo".
"Eu vi a população virar as costas pra Dilma. E eu vi o que é o poder da televisão em um país de terceiro mundo, o que é um país de terceiro mundo se informar. Onde a televisão elege e derruba quem eles querem. Aí eu falei: já que o povo escolheu isso, que assim seja. Daqui para frente, fechou um ciclo na minha carreira e na minha vida. Se o povo decidiu derrubar um governo, que assim seja. Daqui para frente é cada um, cada um. Não siga o Mano Brown que você pode tombar do precipício [decepcionar-se]. Papo reto [sincero]", disse, indignado, o músico.
Nestes sombrios tempos de irracionalidade e ódio em que a sociedade brasileira se polariza cada vez mais entre "nós" e "eles", tornando impossível o diálogo, a análise sóbria sobre a fase histórica do país e um meio termo entre tanto radicalismo, as palavras de Mano Brown, ratificando aquilo que este autor tem defendido nestas páginas, trazem luz a uma realidade histórica bastante triste deste país, último em abolir a escravidão (a lápis) no continente (deixando os novos indivíduos "livres" sem trabalho, sem casa e sem direito a voto), onde a proclamação da dita "República" se deu entre a elite sem nenhuma participação popular (da classe média às mais inferiores, não se tinha a menor noção do que ocorria), em que o golpe militar foi aplicado em meio a ruas desertas com cidadãos devidamente dentro de suas casas, e que um impedimento (mais tarde provado como ilegal) contra Fernando Collor apoiou-se nas velhas massas de manobras da mídia travestidos de "caras pintadas".
Isto apenas para citar alguns exemplos, por mais impopulares que sejam. Porém, se não se passar pela dura tarefa da autoanálise agora (amarguradamente, não há nenhum sinal de que se passará por essa tarefa no Brasil hoje), o retrocesso ainda mais grave que aquele sentenciado pela Câmara dos Deputados no último dia 17 acometerá, inevitavelmente, a passiva sociedade brasileira.
O colunista português Miguel Souza Tavares do jornal Expresso, em coro com a mídia internacional, sem exceção, observou logo após a votação dos deputados brasileiros pelo impedimento da presidente Dilma Rousseff:
Não sei se os brasileiros terão a noção do que as oito horas de votação na Câmara de Deputados para destituir Dilma Rousseff tiveram de demolidor para a imagem do Brasil no mundo. Entre os povos livres e civilizados, a ideia que passou é que o Brasil é mesmo um país do Terceiro Mundo, onde a democracia é uma farsa e a classe política um grupo de malfeitores de onde está ausente qualquer vestígio de serviço público. Entre os países do verdadeiro Terceiro Mundo, alguns dos quais bastante mais bem governados do que o Brasil, a ideia do país como potencial líder do grupo dos emergentes caiu por terra com estrondo: perante aquele indecoroso espectáculo transmitido em directo para o país e para o mundo, as hipóteses de o Brasil alcançar o ambicionado lugar de membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas só podem ter sido seriamente comprometidas.
De um lado setores societários ecoando o discurso governista que se limita ao "golpismo", incapazes de apresentar efetivo poder e reação e mais ainda, de se fazer mea culpa (para a qual há inúmeros motivos). Esboçou-se mobilização no sentido de se "interditar" o país, caso o impedimento fosse aprovado no último dia 17 de outro: não passava de mais um blefe, mais uma impulsividade limitada ás teorias que varreu tais personagens aos seus gabinetes e redes sociais a fim de discutir filosofia política ou, na falta de condição intelectual para isso, esbanjar (na melhor das hipóteses) verborragia.
Estes segmentos passaram mais 14 anos, desde que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência em 2003, acusando de radicais aqueles que diziam, ao longo destes anos, que não se podia permanecer, impunemente, no último lugar da lista mundial em gastos proporcionais do PIB em educação em nome da "revolução social"; que não se podia virar as costas às massas de trabalhadores aliando-se indiscriminadamente ao velho coronelismo político, ao agronegócio, aos latifundiários, aos banqueiros, ao oligopólio midiático enquanto promove, ainda que modesta e em muitos casos demagogicamente, investimentos sociais e o próprio discurso popular.
Do outro lado, estão milhões e milhões de indivíduos sem o menor senso cidadão, democrático, constitucional exigindo a cabeça de uma presidente que, com todas os equívocos políticos e econômicos, é uma das poucas contra a qual nenhuma acusação por corrupção foi apresentada até agora. Antes de mais nada, uma cidadã, mãe e avó que merece, no mínimo, tanto respeito quanto qualquer outro cidadão que hoje diz lutar por respeito, justiça e demais valores.
Dentre eles, aqueles das classes mais vulneráveis que, se já estão descontentes hoje, ignoram os mares agitados que lhes aguardam. Dentre as classes dominantes, que qualificam qualquer um que não compactue com a ruptura com o Estado de direito agora de "os mortadela" [sic], é desnecessário dizer o que pensam e todo a sorte de palavras de baixo calão direcionada àqueles que têm exercido oposição progressista ao atual governo federal.
Voz no Deserto
Pois a grande ironia deste melancólico capítulo da história brasileira, em meio à avalanche de ironias no Brasil hoje, é que se ainda há alguma chance de a democracia ser salva, ela reside no fato de que não apenas aquilo que os "radicais", os "ultra" têm defendido deve urgentemente ser implantado, como neles se encontra a remotíssima possibilidade de alguns setores da sociedade serem minimamente politizados e se tornarem sóbrios, racionais o suficiente a fim de compreender que defender a Constituição e a democracia, não significa, necessariamente, defender o governo federal. De entender que o que se apresenta como "alternativa" é comprovadamente mergulhado em corrupção e essencialmente elitista.
Tarefa inglória entre o agressivo fogo cruzado, cuja confusão psíquico-social chama a atenção de todo o mundo, negativamente. É triste, mas não foi desta vez que o gigante despertou. E nem foi agora que o primeiro segmento deu o braço a torcer a fim de perceber que no grito perderá e já perdeu, mesmo com todo o desespero que lhe acomete diante da iminência da perda dos privilégios do poder.
Mais uma vez, a história precisará aplicar amargas lições - e é altamente provável que nem isso seja suficiente.
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