Estamos na reta final. A militância não pode arrefecer o ânimo ou baixar a guarda. É agora ou nunca. Um relatório do BID mostrou que a América Latina encerrou os anos 1990 com a terceira pior renda per capita do mundo. Segundo o Banco Mundial, a região, após ajustes importadores, amplas liberalizações financeiras, privatizações e fraturas produtivas, abriga 200 milhões de pobres e pouco mais de 100 milhões de miseráveis. Eis o saldo de quase 20 anos de aplicação do receituário neoliberal.
E é nesse cenário de terra arrasada que ressurge, com vigor, o sonho da Grande Pátria de Simón Bolívar. Uma integração regional que não se limite a zonas de livre-comércio e redes de infra-estrutura física. Mas que, incorporando as novas multidões latino-americanas, contemple dimensões históricas, políticas e culturais comuns. Uma empreitada que torne a cooperação indissociável da reinvenção democrática. Que aproveite a complementaridade das diferentes economias, superando assimetrias através da concretização de propostas como as da criação de um Banco do Sul.
Alckmin é a aceitação de um novo estatuto colonial. A volta da Alca como confirmação perversa da velha Teoria da Dependência. O legado teórico-político segundo o qual a otimização dos interesses de nossas elites não comportam um projeto de país. O ex-governador paulista candidata-se não à Presidência, mas, como destacamos em artigo anterior, ao posto de Vice-Rei, encarregado de administrar os interesses estadunidenses em sua dependência ultramarina.
Não é sem fundamento o receio das principais lideranças latino-americanas com a possibilidade de um retorno do liberalismo-conservador ao poder. Com as singularidades de cada formação social, países como Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia, além do Peru e da Venezuela, todos vizinhos e parceiros comerciais do Brasil, já sinalizaram a importância da continuação do presidente à frente da condução do país.
Em quatro anos, as exportações do Brasil para a região já são maiores que as vendas externas para os Estados Unidos, ainda o maior mercado individual para produtos brasileiros. Projetos de cooperação em andamento e a facilidade de diálogo regional consolidam uma percepção positiva do presidente. Além disso, Lula é visto como estadista moderador das tensões entre as novas tendências de esquerda surgidas no continente latino-americano e o governo estadunidense. Algo totalmente distinto do projeto tucano, que não esconde de ninguém a opção preferencial pelo reforço de laços com o México, Colômbia e Chile em parcerias formatadas a partir das exigências de Washington. Um arranjo subalterno de tal monta que levou o presidente Hugo Chávez, em discurso na última reunião de cúpula do Mercosul, a reforçar a urgência histórica do segundo mandato: ganha Lula, ganha Lula!, bradou o líder venezuelano, sob aplausos dos demais presidentes.
Onde havia indiferença entre parcela expressiva da América Hispânica e o Brasil temos obtido avanços significativos Mas o desconhecimento de identidades fundamentais entre o Brasil e seus vizinhos ainda requer uma nova ordem informativa no subcontinente. Nesse sentido, o projeto de um canal de TV Telesul, multiestatal administrada pela Venezuela, Argentina e Uruguai cumprirá efetivo papel contra-hegemônico ao assegurar veiculação de conteúdo para diversos movimentos sociais latino-americanos.
Somemos ainda a proposta construção de um gasoduto sul-americano e a criação do Conselho de Defesa para aquilatarmos o tamanho do passo dado. A não-reeleição de Lula é a pavimentação de um retrocesso que não comporta sonhos de soberania. O que dá mais sustentação a um projeto estratégico regional é justamente aquilo que setores conservadores, dentro de um viés funcionalista, têm chamado de crise política. Ou ''retórica nacionalista imprecisa''. Trata-se, na verdade, do amadurecimento de forças historicamente marginalizadas. Novos sujeitos de direito dispostos a interpelar o cenário político e as várias democracias pactuais existentes. O que presenciamos, principalmente na Bolívia e no Equador, é a transição de regimes oligárquicos para democracias fortalecidas pela lutas populares.
A rigor, nem mesmo direitos assegurados por uma institucionalidade formal, liberal, sobreviverão sem que avancemos para democracias que sejam caminhos de uma maior redistribuição de poder, ampliação do acesso ao debate público e controle crescente sobre a esfera pública. Nosso rosto na história deve conjugar representação com participação, jogo parlamentar com movimentos sociais, de tal forma que os sistemas políticos deixem de ser arranjos onde o que vale é o veto do mercado.
A tomada de consciência popular é ferramenta indispensável num palco em que propostas de integração são eminentemente intergovernamentais. Ou para redefinir projetos, tais como o Mercosul, que surgiram com recorte marcadamente comercial, mas podem se transformar em pólo real de integração. O Estado, tal como destaca Mônica Bruckmán ''continuará sendo o principal fator de estruturação da economia e da sociedade, assim como base institucional para articulação dos processos de integração regional''.
O governo Lula tem uma política externa que fortalece o Itamaraty e aposta no Mercosul como futuro espaço de integração. Sabe que toda movimentação regional está sob a espada de Dâmocles do Império e suas 22 bases militares na região. A oposição, ao contrário, defende uma integração subalterna, controlada por megacorporações. Em 29 de outubro, estaremos, entre outras coisas, definindo o rumo do bolivarianismo no continente. A derrota do atual governo será a vitória do nunca. Latinos e caribenhos precisamos de um segundo mandato de Lula. Dele, nesta primavera, depende a construção de uma nova rota que suture nossas veias abertas e leve luz a nossas vielas sujas.
Lula é a nossa fala. Com ele, nós e nosotros vamos a platicar nuestra lucha. Tupac Amaru e Zumbi estão em compasso de espera. Ou vencemos agora ou deixaremos às futuras gerações a vida inteira que poderia ter sido e que não foi. Por mais belos que sejam os versos de Bandeira, nossa trama não pode confirmá-los mais uma vez. Ousar com Lula é reinventar nossa poética.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil, Observatório da Imprensa e La Insignia.
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