Que venham os Vândalos

Que venham os Vândalos

Na semana passada, em Brasília, quando a polícia bateu a valer nos manifestantes que protestavam contra as medidas do governo de engessar os investimentos na saúde e na educação por vinte anos, no canal alternativo de notícias da Globo, que cobria as manifestações, a apresentadora Leilane Neubarth (que um gaúcho definiria como aquela mulher que chia mais do que chaleira com água fervendo), classificou várias vezes os manifestantes de Vândalos.

Coitado dos Vândalos, são sempre citados em qualquer manifestação pública que escape, em algum momento, ao que é o sonho dos conservadores: passeatas que comecem na hora certa, que não prejudiquem o trânsito, que sejam quase um desfile escolar e terminem na hora certa para não prejudicar o happy end.

Será que a Leilane sabe quem foram os Vândalos e será que eles foram vândalos, no sentido de que a mídia atribui aos manifestantes que não seguem o manual de como devem se comportar numa passeata?

Os Vândalos formaram um grupo originário do centro da Europa, da tribo germânica, que como todos os outros grupos que não fossem romanos, eram chamados de bárbaros. No século V eles criaram um estado no norte da África, ocupando a cidade de Cartago.

Roma, já decadente na época e dividida em dois impérios, o do Ocidente e do Oriente, vivia seu período de decadência e aumentava sua pressão sobre os povos limítrofes para que pagassem mais impostos, necessários à manutenção das mordomias do império.

Fazia o que os países colonialistas (França e Inglaterra principalmente) fizeram depois com suas colônias na África e na Ásia e o que os Estados Unidos fazem hoje com os chamados países em desenvolvimento, caso do Brasil: explorava suas riquezas.

Como toda a exploração tem um limite, um dia os Vândalos, atravessaram o Mediterrâneo e saquearam Roma, em 455.

Possivelmente daí que veio essa fama de gente rude, que não respeita a propriedade privada, ainda que ela tenha sido construída com o seu sangue.

Na Revolução Francesa, em 1789, eles tiveram outro nome. Eram chamados de "sans culottes (culote era uma espécie de bermuda que os nobres usavam), mas repetiram tudo que os Vândalos fizeram no passado, inclusive pondo a baixo a Fortaleza da Bastilha.

Na época, eles eram desprezados pelos nobres, mas como ganharam a batalha, seu momento de glória, o 14 de julho, virou data nacional da França.

 

 Em maio de 1968, na França, os operários fecharam as fábricas e os estudantes saíram às ruas para enfrentar os gendarmes usando como armas as pedras arrancadas do calçamento das ruas.

Eram os novos Vândalos chamados então de comunistas e anarquistas.

Hoje, historiadores e filósofos consideram que este foi o movimento popular mais importante do século XX e que deixou como lembranças algumas frases que foram repetidas durante anos: "O sonho é realidade"; "As reservas impostas ao prazer excitam o prazer de viver sem reservas"; "Sejamos cruéis&rdq uo;; "Todo o poder abusa. O poder absoluto abusa absolutamente"; "Não me libertem, eu encarrego-me disso".

De todas elas, a mais política de todas talvez seja essa: "A nossa esperança não pode vir senão dos desesperados". (Notre espoir ne peut venir que des sans-espoir) Em 1917, quando soldados e camponeses tomaram o Palácio de Inverno em São Petersburgo, os novos Vândalos foram chamados de comunistas e bolcheviques, mas iniciaram uma experiência única na história de um regime socialista, que, apesar de tudo, duraria 70 anos

Quem sabe o que o Brasil não precisa hoje de mais e mais Vândalos?

De uma gente rude, de maus hábitos que sacuda a passividade do povo, que está aceitando ser roubado em seus direitos e pior, está concordando ver o futuro de seus filhos ser abocanhado por um grupo que se apossou do poder em Brasília para legislar ao seu favor.

Certamente, apesar da Globo e da Leilane falarem mal deles, precisamos de novos Vândalos que ponham a correr estes "romanos" modernos.

Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 

 

Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter

Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey