Rifando as cidades norte-americanas - Diferentemente do governo federal dos EUA, a maioria das cidades e estados possuem constituições que previnem déficits orçamentários. Isso significa que ao suprimirem impostos sobre imóveis, as cidades e estados devem pegar dinheiro emprestado dos ricos ou cortar serviços públicos.
Publicado por Márcia Denser
Um excelente ensaio de Michael Hudson, professor de Economia na Universidade do Missouri, autor de The Bubble and Beyond, (leia resenha em português em: 3/9/2012, redecastorphoto: "Porque os credores públicos não podem - e não devem - ser pagos") obra que coloca os setores financeiro e imobiliário na raiz da crise fiscal urbana mundial, fornece os fundamentos deste nosso artigo. Segundo ele, A marcha de Wall Street contra os 99% está se acelerando. É a mesma filosofia de austeridade imposta à Grécia e à Espanha, e a mesma que leva o presidente Obama e Mitt Romney a insistirem na redução de custos com o Medicare (assistência de saúde pública) e com a Previdência Social.
Diferentemente do governo federal dos EUA, a maioria das cidades e estados possuem constituições que previnem déficits orçamentários. Isso significa que ao suprimirem impostos sobre imóveis, as cidades e estados devem pegar dinheiro emprestado dos ricos ou cortar serviços públicos.
Em tese.
Mas agora isso dançou e se tornou arriscado porque a economia afunda com a queda dos valores das dívidas. Da Califórnia ao Alabama, as cidades estão se tornando inadimplentes. Já não conseguem restabelecer impostos sobre proprietários sem causar mais inadimplência hipotecária e abandonos. Mas alguém tem que ceder. De forma que então as cidades reduzem gastos públicos, encolhem seus sistemas educacionais e forças policiais, e vendem seus ativos para pagar detentores de títulos.
E isto se tornou a causa principal do crescente desemprego nos Estados Unidos que, obviamente, diminui a demanda de consumo. É um pesadelo keynesiano. Menos óbvios são os cortes devastadores ocorrendo na saúde, no treinamento de mão-de-obra e outros serviços, enquanto taxas de matrícula para colégios públicos e as "taxas de participação" no ensino médio sobem. Sistemas escolares estão se desfazendo e professores são abandonados numa escala nunca vista desde a Grande Depressão.
Todavia, estrategistas de Wall Street enxergam essa situação e os "espremidos orçamentos locais" como dádivas. Como disse Rahm Emanuel (além, é claro, de Murdoch, Bush, Rumsfeld, Chaney, Soros & banqueiros ilimitados, aficcionados do Capitalismo de Desastre mixado ao Cassino) afinal, uma crise é uma oportunidade boa demais para se desperdiçar - e a crise fiscal alavanca os credores financeiramente para empurrarem políticas anti-trabalhistas e privatizações.
O terreno está sendo preparado para uma "cura" neoliberal: cortar pensões e assistência médica, negligenciar promessas de reformas trabalhistas e rifar o setor público, deixando os novos proprietários cobrarem pedágios sobre tudo, desde avenidas a escolas. O termo do momento é "extração de rendas". Tendo causado a crise financeira, o legado de décadas de cortes sobre a propriedade, financiado pelo endividamento sem limites, agora deve ser pago vendendo-se ativos públicos.
Chicago arrendou sua Skyway por 99 anos e seus estacionamentos por 75 anos. O prefeito Emanuel contratou os gerentes de ativos do JP Morgan para dar "conselhos" sobre como vender a privatizadores o direito de cobrar taxas sobre serviços que eram gratuitos (ou seja, como construir uma ratoeira mais eficiente).
Por retratar os servidores locais como inimigos públicos número 1, a crise urbana está fazendo com que a luta de classes volte à ordem do dia. O setor financeiro argumenta que pagar pensões (ou até um salário mínimo) absorve a receita a ser usada no pagamento de títulos podres. A cidade de Scranton na Pensilvânia reduziu os salários do setor público para o mínimo, enquanto outras procuram romper com planos de pensão e contratos salariais - e depois vão atrás de jogos de azar em Wall Street, numa tentativa desesperada de cobrir suas obrigações estimadas em 3 trilhões de dólares, mais 1 trilhão em cuidados de saúde.
Embora Wall Street tenha engendrado a economia-bolha cuja explosão engatilhou a crise fiscal urbana, seus lobistas e suas teorias econômicas absurdas não são responsabilizados. Melhor do que culpar os que cortaram impostos e deram uma herança inesperada aos banqueiros e aos magnatas do setor imobiliário, é obrigar professores e outros empregados do serviço público a devolverem seus salários e aposentadorias. Contudo, para os predadores financeiros não existem devoluções de espécie alguma, ao contrário.
Em vez disso, chegará o momento em que as cidades serão forçadas a fazer o que fez Nova Iorque para evitar a bancarrota em 1974: entregar a gestão para quem Wall Street determinar. Os políticos eleitos serão substituídos por "tecnocratas" que irão fazer o mesmo que Margaret Thatcher e Tony Blair fizeram na Inglaterra: vender o que resta do setor público e levar cada programa social para a mesa de "negociações".
O plano é atingir algumas metas. Como por exemplo, dar aos privatizadores o direito de cobrar pedágio sobre a infraestrutura pública. A ideia é forçar cidades a equilibrar o orçamento, arrendando ou vendendo suas avenidas e sistemas de transporte público, escolas e prisões. Isso promete criar um novo mercado para os bancos: empréstimos a abutres que comprarão os direitos de instalar pedágios na infraestrutura básica da economia. Como oficiais públicos eleitos não podem engajar-se em políticas tão predatórias e anti-trabalhistas, resta a "magia do mercado" para dissolver sindicatos, diminuir serviços públicos, taxar sistemas de água e esgoto, cortar linhas de ônibus e aumentar tarifas.
Para realizar esse plano financeiro, é necessário emoldurar o problema de tal maneira que as alternativas anti-sociais sejam excluídas. Como bem sabia Margaret Thatcher, deve-se pregar a falta de alternativas (there is no alternative ou TINA). Não há alternativas senão vender o transporte público, o setor imobiliário e até sistemas educacionais e prisões.
Para os neoliberais, a beleza disso tudo é que o rebaixamento da educação torna os cidadãos mais suscetíveis à falsa consciência do Tea Party. Esse é o significado de livre-mercado hoje: renda criada por investimentos no setor público "livre" para ser paga aos bancos como juros em vez de ser recuperada pelo governo. A maior parte da receita urbana são rodovias, escolas e sistemas de água e esgoto financiados pelo contribuinte.
O miolo da "falsa consciência" dos banqueiros - a matéria de capa com a qual os lobistas do Tea Party estão procurando doutrinar os eleitores norte-americanos - é que os impostos sobre a terra e os ativos financeiros punem os "criadores de emprego". Os beneficiários desse gasto público dizem que precisam ser mimados com preferências fiscais para investir e empregar, enquanto os 99% devem ser chutados e incitados a trabalhar mais por menores salários. Essa falsa narrativa ignora que os maiores períodos de crescimento norte-americano foram aqueles em que os impostos individuais e corporativos eram também maiores. O mesmo é verdadeiro na maioria dos países. O que está sufocando o crescimento econômico são as elevadas dívidas - devidas a 1% da população - e cortes de impostos sobre grandes riquezas.
O arrocho nas aposentadorias públicas é parte da crise geral. Aliás, Paul Ryan, candidato indicado a vice-presidente pelo Partido Republicano, e Rick Perry, governador do Texas, caracterizaram a Previdência Social norte-americana como um esquema a la Charles Ponzi do dias atuais.
O fato é que o sistema financeiro está podre. Isso transformou a atual luta de classes numa guerra financeira na qual o fator principal é moldar a forma como os eleitores enxergam o problema. O truque é fazê-los pensar que cortar impostos barateará o custo de vida e a habitação, quando o entendimento que deve ser propagado é o seguinte: cortar impostos só faz com que mais renda para empréstimos caia no colo dos banqueiros, o que afundará mais ainda a economia.
Políticos democratas ou republicanos não querem taxar mais as finanças, os seguros ou o setor imobiliário. A postura deles está alinhada com o que querem os financiadores de suas campanhas: deixar Wall Street mais rica. É o velho problema das prioridades. As dívidas não podem ser pagas e não serão pagas. Então, a questão é quem deve ser priorizado: o 1% ou o 99%? Insiste-se que a austeridade e a redução do Estado são inevitáveis, não uma escolha política que privilegia os credores públicos e o 1% aos 99%, ou uma retribuição do dinheiro gasto comprando políticos e fazendo eleitores acreditarem que "cortar impostos sobre a propriedade e sobre os ricos ajudará a economia".
Se os Estados Unidos continuarem a permitir que o 1% legisle e dê as cartas, a economia será esfacelada em pouco tempo. A era do crescimento ianque chegará ao fim. Mas, repetimos: alguém tem que ceder. Ou seja, é hora de dar calote. Caso contrário, Wall Street transformará os EUA na Grécia. Esse é o plano financeiro - a estratégia da atual guerra financeira contra a própria sociedade.
Um tiro, não no pé, mas no próprio coração do sistema.
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Foto: Márcia Denser
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