O recrudescimento dos movimentos anti-racistas no mundo inteiro, principalmente nos Estados Unidos, é apenas um aspecto das lutas de classe que a crise geral do capitalismo vai tornar cada vez mais comum.
O preconceito contra o negro é a faceta mais visível do preconceito que a sociedade baseada na valorização do enriquecimento dos indivíduos como bem maior, tem pela maioria que não pode, ou não quer perseguir esse objetivo.
A cor da pele ajuda a identificar os que são vistos como perdedores e que por isso não merecem que tenham acesso aos bens que a humanidade construiu ao longo dos séculos.
Hoje, são os negros, mas já foram os índios, os judeus, os amarelos, os ciganos, os velhos e ainda em muitos países, as mulheres.
O episódio de Minneapolis, no ano passado, quando um policial branco sufocou até à morte o negro George Floyd, sob os olhares indiferentes de outros policiais, é revelador da indiferença que a dor dos oprimidos tem para um sistema que precisa da polícia para se manter.
É sintomática a defesa que o então presidente Trump fez da necessidade de se manter a ordem e a importância das forças policiais têm nessa tarefa.
A reação contra esse racismo explícito é maior nos Estados Unidos porque esse país ainda é o centro do capitalismo mundial e porque tem, na longa história da sua construção, os mais monstruosos exemplos de exploração dos segmentos não brancos da população.
Foi assim com o genocídio dos indígenas americanos, uma população que em poucos anos foi reduzida de 20 milhões para menos de 2 milhões; dos negros africanos escravizados nas plantações de algodão do Sul e mais tarde dos latinos, tratados como sub humanos.
O filme de Spike Lee, Destacamento Blood ( Da 5 Blood), exibido no Netflix, tenta instrumentalizar a revolta desses negros através de uma série de discursos históricos que antecedem o desenrolar da trama de ficção do filme.
São mostrados o discurso de Muhammad Ali (Cassius Clay - 1942/2016) , se recusando a combater no Vietname ("Por que me pedem para vestir um uniforme e me deslocar 10.000 milhas para lançar bombas e balas no povo do Vietname, enquanto os negros de Louisville são tratados como cachorros, sendo-lhes negados os mais elementares direitos humanos? Não, não vou viajar 10.000 milhas para ajudar a assassinar e queimar outra nação pobre para que simplesmente continue a dominação dos senhores brancos sobre os povos de cor mais escura mundo afora. É hora de tais males chegarem ao fim"); de Martin Luther King (1929/1968), em agosto de 1963, em Washington ("Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo poderoso, nós somos livres afinal." EU TENHO UM SONHO) e de Malcon X (1925/1065) " Eu não vejo nenhum Sonho Americano, eu vejo um Pesadelo Americano).
Depois, quando a ação no filme de Spike Lee se transfere para o Vietname, onde os soldados que lutaram na guerra, voltam para tentar recuperar um tesouro que esconderam na selva, os discursos têm agora outra direção.
Enquanto três dos quatro sobreviventes celebram o fato de que afinal vão ser recompensados pelas discriminações que sofreram e parecem, de alguma forma, ainda acreditar no sonho americano, Paul (Del Roy Lindo), ironicamente quase em estado de demência, parece ser o mais lúcido de todos, porque percebe que fará sempre parte do lado dos vencidos.
Spike Lee mostra o revoltado soldado Roy usando, para o deboche dos seus companheiros, um boné da campanha presidencial de Donald Trump.
Como aqui no Brasil, os que não conseguem dirigir sua revolta contra os alvos certos e se transformaram em eleitores do Bolsonaro, lá nos Estados Unidos, os negros como Roy, cansados da opressão e também dos falsos discursos dos democratas de ocasião, se transformaram em eleitores do Trump. Vamos saudar a luta dos negros americanos contra o racismo; vamos saudar os discursos que Spike Lee ajuda a divulgar, mas vamos entender que, enquanto essas lutas forem apenas identitárias, como são as lutas contra o racismo e a favor da ecologia e do feminismo, elas pouco abalarão o sistema que as faz existirem,
Numa sociedade de classes com interesses opostos, elas sempre existirão, de uma forma ou outra, porque elas servem para tirar dos oprimidos o que deveria ser o foco fundamental de suas lutas.
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS
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