Um olhar crítico sobre o livro de Padura
Convidado pelo professor Mário Maestri, participei de um debate com a professora Nara Machado sobre o livro do Leonardo Padura, O Homem que Amava os Cachorros, na Livraria Ladeira.
Minha preocupação inicial foi chamar a atenção para o jogo que o Padura faz com seus leitores mais politizados, misturando fatos e personagens históricos com outros imaginários e com a mais pura ficção.
Nada contra, ressaltei, mas nada original.
Lembrei que Norman Mailer fez isso várias vezes. No livro Marilyn, ele diz que a CIA tramou a morte da atriz famosa para evitar que seu romance com Robert Kennedy pudesse por em risco alguns segredos do governo americano; em Uma Casa na Floresta, ele afirma que o pai de Hitler era seu avô; em Lee Osvald, ele também mistura a vida do presumível assassino de John Kennedy com grandes tramas envolvendo a máfia.
Mas não foi só Normal Mailler. Phillip Roth transformou Charles Lindbergh, a Águia Solitária, o grande herói americano e admirador dos nazistas, em presidente dos Estados Unidos,derrotando Roosevelt em 1942, no livro Complô Contra a América.
José Saramago recontou a história de Cristo numa visão de esquerda em o Evangelho Segundo Jesus Cristo.
No clássico Les Thibault, de Roger Martin du Gard, o personagem principal, Jacque Thibault se envolve em reuniões com dirigentes socialistas reais na luta para impedir a Primeira Grande Guerra.
Mais recentemente, em seu livro Submissão, Michel Houellebeck, descreve como um islâmico .ainda que não radical, se torna presidente da França em 2022, numa aliança com a esquerda para evitar a vitória da extrema direita e começa a desmontar as conquistas sociais da sociedade laica francesa.
Puxando a brasa para o meu assado, conto que fiz algo parecido com meu livro Tudo Começou em1964, que só existe como e-book da Amazon, misturando a vida de um jornalista boêmio de Porto Alegre, na década de 60, com ações políticas de Leonel Brizola e dos eventos relacionados com a Legalidade.
Mas, o que estava adjacente à discussão sobre o livro do Padura e que interessava a platéia eram fundamentalmente os comportamentos deTrotsky e Stalin.
Como todos sabem, o homem que amava os cachorros, que dá título ao livro, é Ramon Mercader, ou Jacques Monard ou ainda Frank Jacson, enviado por Stalin para assassinar Trotsky em Coyocan, o que se consumou no dia 20 de agosto de 1940.
Mercader ficaria preso no México durante 20 anos e depois de libertado, dividiria seu restante tempo de vida entre Moscou e Havana, onde acaba por se tornar o personagem principal de Padura.
Até o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Josef Stalin, que comandou a URSS durante mais de 30 anos, até sua morte em 1953,era chamado o Guia Genial dos Povos.
No dia 25 de fevereiro de 1955, tudo começou a mudar, quando Nikita Kruchiov, que havia sido seu fiel seguidor durante muitos anos, leu perante os membros mais importantes do partido, o seu relatório secreto, apontando os crimes de Stalin, principalmente os decorrentes dos julgamentos de 1937, da coletivização forçada agricultura e do processo acelerado de industrialização do país.
A partir daí, a imagem de Stálin se transformou de herói em vilão enquanto que a de Trotsky, o criador do Exército Vermelho, depois exilado e mais tarde assassinado a mando de Stalin, cresceu entre grupos comunistas do mundo inteiro, embora ele nunca tenha sido reabilitado até o fim da União Soviética.
Duas ou três questões, levantadas pelos presentes, mostraram logo que havia quase uma unanimidade na platéia: Stalin era um criminoso e Trotsky um herói.
Como todo o pensamento maniqueísta, esse olhar sobre a história da revolução russa, me pareceu equivocado.
A realidade mostra que durante os longos anos da ditadura de Stalin, a Rússia se transformou na república líder da União Soviética, e o país foi arrancado do estado quase feudal em que vivia para se transformar numa grande potência mundial.
Seu povo, quase analfabeto antes, teve acesso à educação e à saúde e viveu sempre numa sociedade onde o pleno emprego era a regra.
Mais adiante, a partir do início da Segunda Guerra Mundial, foi sob a liderança de Stalin, ou apesar dele, como querem seus críticos, que a mais poderosa máquina de guerra até então montada, a Wehrmacht, o exército nazista, foi derrotada pelo Exército Vermelho e o mundo escapou de viver sob o tacão de Hitler.
Lembrei para os presentes que hoje, a partir dos documentos liberados com o fim da União Soviética, é possível se avaliar melhor o papel desses dois grandes nomes da revolução soviética, Stalin e Trotsky.
Para as pessoas presentes e para os meus possíveis leitores recomendo o livro do historiador italiano Domenico Losurdo, Stalin, a História de uma Lenda Negra, que tenta analisar o que aconteceu na URSS durante os longos anos do governo de Stalin, da forma mais isenta possível.
Para os que já optaram por Stalin e querem novos argumentos para a defesa que possam fazer dele, nada melhor que a obra do belga Ludo Martens, Stalin,Um Novo Olhar .
É dele a linha imaginária que mostra os agentes da destruição da experiência socialista russa. Ela começa com Trotsky, segue com Kruchiov, Brejnev, e termina com Gorbachov.
Marino Boeira é jornalista,formado em História pela UFRGS
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