Disque-denúncia: eu sei quem matou Matheus Matheusa
por José Ribamar Bessa Freire(*)
- Alô! Alô! É do Disque-Denúncia?
- Positivo e operante!
- Sou professor da UERJ. Tenho informações que podem esclarecer a morte de Matheus Matheusa, de 21 anos, estudante de Artes Visuais na minha universidade, executada no Rio, no Morro do Dezoito, Zona Norte, domingo, 29 de abril.
- O senhor conhecia a vítima? Não precisa se identificar, estamos gravando.
- Não conheci pessoalmente Matheus Passarelli Simões Vieira, era com esse nome que estava matriculado na universidade. Theusa, como gostava de ser chamada, circulava no 11º andar, enquanto eu trabalho no 12º andar, na Faculdade de Educação. Podemos até ter esbarrado ocasionalmente nos corredores, na cantina, no elevador, na xerox, mas não lembro. No entanto, conheço muito bem a quadrilha a qual pertencem os cinco assassinos. Convivo com eles diariamente.
- Pode falar. Preservamos o anonimato.
Casal assassino
- O nome do chefe da quadrilha é Preconceito Vaz Aguiar Passos. Ele é ignorante, desinformado, perigoso, bolsonaramente burro e truculento e trabalha em parceria com sua mulher, dona Discriminação Caminha Amin, com quem teve filhos trigêmeos - o Racismo, a Homofobia e a Intolerância. Todos eles assassinaram Theusa, que realizava tatuagens com a técnica chamada "handpoked" com agulha e tinta, sem máquina, e havia recebido convite para tatuar uma amiga que festejava o aniversário, na Rua Cruz e Souza, no bairro do Encantado. Depois do evento, desapareceu.
- Até aí morreu Neves. A Polícia sabe que o elemento Matheus saiu da festa, caminhou dois quilômetros até o Morro do Dezoito, já surtado, já sem roupa, já não falando coisa com coisa, como os drogados, e que foi assassinado na favela, porque não soube explicar ao "tribunal do tráfico" o que estava fazendo ali. Fortes indícios revelam que seu corpo foi queimado por traficantes. A delegada Ellen Souto, da Delegacia de Paradeiros, ouviu moradores e deu entrevista ao RJ-TV. Queremos ir além disso.
- É o que estou tentando fazer aqui. Informo que quem presidia tal "tribunal" era o "jurista" Preconceito Aguiar Passos, que está camuflado, presente em todos os lugares, nas favelas, nos bairros ricos, no Congresso Nacional, no Judiciário, em certas igrejas e partidos políticos, enterrado no coração das pessoas, embora quase sempre passe despercebido. Ele despreza tudo aquilo que contraria suas crenças, que não se enquadra no comportamento considerado "normal". Odeia o outro, o diferente e guia os passos de sua mulher Discriminação e de seus filhos para segregar os "anormais".
Bicha travesti
- Qual a participação dos demais elementos da quadrilha familiar?
- A Homofobia, cão hidrófobo transmissor da raiva, açulada por seus pais, atacou Matheusa, transexual não-binária, que não se identifica com nenhum gênero e transita na fronteira entre o masculino e o feminino, como sua irmã Gabe Passarelli, de 23 anos, batizada como Gabriel. Desde crianças as duas enfrentaram uma tensão "por não se encaixarem no que as pessoas entendem como corpos de menino e de menina" e na adolescência trocaram confidências descobrindo que ambas compartilhavam uma identidade de "bicha travesti", quando então adotaram um visual com marcas femininas.
- A vítima trocou de sexo?
- Mais do que mudança de sexo, se trata de uma questão de comportamento, de acabar com o "ele" e o "ela", segundo afirmou Gabe à BBC Brasil. As duas irmãs/irmãos eram militantes e participavam de dois coletivos performáticos LGBTs: o "Seus Putos", criado na Uerj e o Xica Manicongo, ambos dedicados a questionar os conceitos de gênero e a combater os padrões normativos dominantes. Isso foi o suficiente para atrair o ódio visceral da Homofobia, embora, até então "nunca tivéssemos sofrido agressão física, mas o olhar mata também, a violência verbal, o modo como alguém se aproxima de outro corpo. Sofremos sempre vários tipos de violência" - diz Gabe.
Bicha Preta
Qual a participação do outro irmão no crime?
- Quem, o Racismo? Ele perseguia Matheusa, que gostava de dizer que era uma "bicha preta e pobre". As duas irmãs negras são filhas de uma frentista e de um despachante de ônibus na rodoviária de Rio Bonito, cidade com 55 mil habitantes. Saíram de lá para estudar na capital. Gabe cursa Terapia Ocupacional na Federal (UFRJ). Theusa está na UERJ desde 2015, interessada em arte e moda, estagiou no Museu do Amanhã e até participou da Feira SP-Arte e de um desfile de modas em São Paulo, como modelo, usando um vestido preto transparente com uma tanga fio-dental visível por baixo. Sua pesquisa era sobre "performance e linguagem queer".
- Mas o elemento não se drogou antes de entrar na favela?
- Segundo Gabe, sua irmã "não se drogou voluntariamente na festa. Isso foi algo que todas as pessoas presentes testemunharam. Podem ter colocado algo na bebida dela, que não tinha um histórico de doença psiquiátrica, nunca foi diagnosticada com surto psiquiátrico. Que ela estava em situação de crise e grande estresse, é fato. Alguma coisa aconteceu na festa, houve algum gatilho para ela se comportar da maneira relatada".
Intolerância
- Onde é que entra o quarto assassino na história?
- A Intolerância Amin é cozinheira, responsável por alimentar os irmãos, o pai e a mãe. A Intolerância é quem tapa os ouvidos de todos eles para que não escutem a voz e os argumentos do outro. Os trigêmeos atuam sempre de forma conjunta. Eles mataram 445 transexuais e travestis no Brasil, em 2017, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia, que registra um aumento de 30% de mortes em relação ao ano anterior.
- Isso me parece acusação de esquerdista, que se aproveita do fato para propagar suas ideias espúrias. Os cinco aqui denunciados podem não ter tido qualquer participação no crime.
- Seu Disque-Denúncia, acho que o senhor deve ficar mais antenado. Procure saber quem colocou droga na bebida, não descarte a responsabilidade do Racismo ou da Homofobia. A irmã da vítima não culpa ninguém, não especula sobre as investigações ainda inconclusas da polícia, acha que o crime não pode ser tratado de forma superficial. Com as devidas precauções, ela assegura, no entanto, que o assassinato de Theusa pode ter sido motivado por ódio à população LGBT e por racismo, mas muito mais do que isso representa "um atentado aos direitos humanos que envolve diferenças de gênero, raça, sexualidade, personalidades".
P.S. Faleceu o nosso Ronaldo do Livramento Coutinho, professor da Uerj nesta sexta-feira (11/05) em sua casa. O velório na Capela da Penitência (Caju) ocorre a partir das 9h00 e a cremação será às 16h00. Um dia, caminhando pelo calçadão de Icaraí, em Niterói, encontrei esse doce radical, que se arrastava, todo esparadrapado, exibindo hematomas pelo corpo. Dias antes, ele se manifestara contra a presença do Collor de Mello na Estação das Barcas. Os seguranças moeram-lhe o corpo de porrada. Apesar de dolorido, estava feliz, feliz da vida: "estou quebrado, mas acertei o pústula" - dizia, rindo, como um menino travesso. Confesso que invejei a façanha do Coutinho. Ele fez o que eu e a metade do povo brasileiro queríamos fazer. Estou orgulhoso de ser seu amigo. Registrei isso em uma crônica.
http://www.taquiprati.com.br/cronica/888-pedro-e-o-globo-esopo-no-atentado-contra-serra
P.S. Fotos pirateadas na internet, buscaremos os autores, a quem agradecemos, para dar os devidos créditos.
(*)José Ribamar Bessa Freire, doutor em Letras, é professor da Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ. Foi professor em universidades peruanas e em cursos para professores indígenas. Publicou livros e artigos no Brasil e no exterior.
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