Ainda hoje, nossas concepções acerca da história sofrem a contaminação de modelos baseados no chamado "senso comum", no personalismo e em outros vícios que nosso sistema educacional teima em reproduzir.
Edmar Monteiro Filho (*)
Com isso, resta esquecido que para refletir criticamente sobre os acontecimentos do passado - recente ou remoto - é preciso fazer uso de uma mescla de critérios científicos e subjetivos, trabalhados harmonicamente, em constante diálogo.
Aceitar como verdades incontestáveis as informações reproduzidas por determinadas pessoas ou por veículos de comunicação, cuja legitimidade baseia-se apenas em seus percentuais de audiência é, no mínimo, ingenuidade. Sem método para reflexão, sem análise criteriosa, toda informação é especulação. Por outro lado, os dados e os números frios, desacompanhados de interpretação, também não se traduzem em conhecimento efetivo sobre a realidade.
Mas, então, como confiar no que se vê, no que se ouve, no que se lê, sem correr o risco de reproduzir falácias ou ideias equivocadas? Questão difícil quando se sabe que a própria escrita da História ainda se debate entre o cientificismo puro ou o relativismo que a coloca como mais uma entre tantas formas de narrativa. Roger Chartier afirma que o trabalho do historiador não pode se afastar do objetivo de buscar a verdade, mesmo que tal objetivo possa ser, conceitualmente, impossível de atingir. Abandonar tal busca seria deixar o campo livre a toda sorte de falsificações, a todos aqueles que, "por traírem o conhecimento, ferem a memória".
Assim, o exercício constante de um olhar crítico perante toda informação é uma forma de evitar, na medida do possível, a ideia enganada, o ato intempestivo e a reprodução do erro. Por isso, é importante não se fiar em uma única fonte informativa, aceitar que toda ideia evolui ao longo do tempo e, por fim, buscar conhecimentos que permitam discutir e compreender.
Dentre as ferramentas utilizáveis para a construção da história, a memória pessoal é a mais carregada de subjetividade. Assim, seu uso como forma de interpretação de determinado período ou fato histórico estaria contaminado por procedimentos próprios da literatura. Entretanto, desde que Walter Benjamin fez uso de fragmentos de memória para contar a história de uma cidade em "Infância em Berlim por volta de 1900", aprendemos que se a memória é ineficaz para uma construção linear dos fatos, pode tecer um painel de percepções múltiplas, simultâneas e polifônicas que se entrecruzam para formar o tecido histórico, conforme afirma Pablo Porfírio.
Adelto Gonçalves não omite o fato de que a memória é o reservatório de onde retira os acontecimentos e os personagens que povoam as páginas de "Os vira-latas da madrugada". Em sua infância, vivida à beira do cais do porto de Santos, assistiu ao desfile desses trabalhadores portuários, malandros, bêbados, prostitutas, pequenos comerciantes contra o pano de fundo dos momentos que antecederam o golpe militar de 64.
É desse material que retira sua narrativa e é a partir dele que vão surgindo as figuras vivas do moleque Pingola, do revolucionário Marambaia, do aspirante a craque Cariri, das prostitutas Irene e Sula, do mendigo Plínio, de Nego Oswaldo, de Quirino, todos vivendo entre as boates, os cortiços, bares, armazéns e bordéis do bairro do Paquetá. O autor assume a condição de espectador dos fatos que deram origem à ficção ao inserir entre um capítulo e outro algumas descrições autobiográficas, que qualifica como "confissões".
Se o recurso tenciona acrescentar credibilidade factual aos eventos narrados, a subjetividade memorialística invade o suporte histórico, resultando num movimento que passa do ficcional ao documental e àquele retorna, expandindo e enriquecendo a leitura. Dessa forma, se a interferência explícita da voz do autor não permite esquecer que estamos diante de suas lembranças, o momento histórico em que a narrativa transcorre surge por inteiro através dos olhos de uma testemunha ocular dos fatos.
"Os vira-latas da madrugada" é um pungente retrato de um mundo marginal, onde o lenocínio e a malandragem convivem com anseios por tempos novos, coroados pelo fim da exploração e da miséria de toda espécie. Aos olhos do leitor, os destinos desses personagens românticos defrontam-se com uma violência maior, implacável. E é então que sua luta por uma justiça social inatingível nos toca de maneira especial. Porque, enfim, ainda hoje partilhamos os mesmos sonhos e ainda buscamos os meios de transformá-los em realidade.
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Os vira-latas da madrugada, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman, apresentação de Ademir Demarchi, posfácio de Maria Angélica Guimarães Lopes e ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação Cultural Letra Selvagem, 216 págs., 2015, R$ 35,00. E-mail: [email protected] Site: http://www.letraselvagem.com.br
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(*) Edmar Monteiro Filho é mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de São Paulo (Unicamp), título obtido com a dissertação "O major esquecido: Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos" (2013), e doutorando em Teoria e História Literária na Unicamp. Recebeu os prêmios literários Guimarães Rosa (1997) e Cruz e Souza de Literatura, entre outros. Publicou Fita Azul (romance, Babel, 2012) Este lado para cima (poesia, edição de autor, 1993), Halma húmida (poesia, edição do autor, 1997), Às vésperas do incêndio(contos, edição do autor, 2000), Que fim levou Rick Jones? (contos, 2010) e a novela Azande (novela, edição de autor, 2004). Assina uma coluna em que faz resenhas de livros no jornal semanário A Tribuna, de Amparo. E-mail: [email protected]
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