Transculturação nas letras brasileiras

Adelto Gonçalves (*)

A partir de idéias do crítico uruguaio Angel Rama (1926-1893) e do antropólogo cubano Fernando Ortiz (1880-1969) a respeito da transculturação, Letícia Malard, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, construiu um ensaio em que procura, primeiro, mostrar como o romance regionalista nordestino de 1930 adaptou-se para ser reconhecido pelo establishment intelectual do Sul e, depois, dá um salto até a narrativa política da década de 70 em que se aguçam os conflitos e as contradições entre conservadorismo e progressismo.

O ensaio, “Contextualidade da transculturação: o regionalismo de 30 e a repressão de 70”, abre o livro Literatura e Dissidência Política (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2005), que reúne mais 13 ensaios divididos em dois grupos: o primeiro aborda questões mais abrangentes da cultura brasileira, enquanto o segundo é dedicado a discutir a produção de autores brasileiros consagrados, como Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), Inácio José de Alvarenga Peixoto (1743-44/1792), Machado de Assis (1839-1908), Adolfo Caminha (1867-1897), Graciliano Ramos (1892-1953) e Jorge Amado (1912-2001).

Como observou pioneiramente em 1940 Fernando Ortiz em Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (Barcelona, Editora Ariel, 1977), transculturação é o vocábulo que mais bem expressa as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura para outra, porque isto não consiste apenas em adquirir uma distinta cultura, mas em transmitir também a cultura precedente.

É o que se deu no Brasil — de modo ainda mais intenso do que nas demais nações latino-americanas — em que o amálgama de três culturas distintas — a portuguesa, a indígena e a africana — constituiu o que, hoje, é conhecido como cultura brasileira, embora não se possa desprezar as contribuições dos emigrantes a partir da segunda metade do século XIX.

Em linhas gerais, Malard diz que a predominância de São Paulo na República Velha (1989-1930) — que, até hoje, só tem feito aumentar — exigiu uma resposta do Nordeste, de que resultou, entre outros fenômenos, o romance regionalista da década de 30. Os historiadores literários mais importantes — quase todos ligados à Universidade de São Paulo — sempre quiseram fazer crer que o romance regionalista nordestino seria uma conseqüência da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, embora um intelectual da estirpe do poeta Ledo Ivo (1924), igualmente nordestino, tenha contestado recentemente essa visão. E com fundamentadas razões.

Mário de Andrade (1893-1945) e seus companheiros de aventura modernista produziram textos que refletiram tendências que já se haviam consagrado na Europa muitos anos antes, enquanto os romancistas nordestinos ainda estavam apegados a uma maneira antiga de escrever, à Coelho Neto (1864-1934) na prosa e Olavo Bilac (1865-1918) na poesia.

Visto assim o panorama, conclui-se que os progressistas estavam em São Paulo e no Rio de Janeiro, enquanto os conservadores vinham do Nordeste. Só que a Semana de Arte Moderna de 1922, marco presumível dessa mudança, não se pode esquecer, foi financiada por dinheiro da elite agrária paulista, aquela gente que se via como quatrocentona e que até há pouco tempo ainda olhava o resto da Nação de cima — como se ainda olhasse para a senzala.

Seja como for, como diz Malard, todos os romancistas nordestinos emigraram para o eixo Rio-São Paulo, onde foram vencidos pelo aculturalismo. Como se sabe, aculturação vem do termo anglo-americano aculturation que significa a assimilação de uma cultura pela outra. Ou seja, os romancistas nordestinos — na maioria, de posições políticas conservadoras — acabaram por se render às vantagens do oficialismo — e muitos até ingressaram na Academia Brasileira de Letras.

Jorge Amado, que também se renderia ao oficialismo, entendeu que o romance de 30 seria “a expressão literária dos movimentos políticos e populares que resultaram na revolução da Aliança Liberal”, ou seja, no golpe militar comandado por Getúlio Vargas, um fazendeiro acostumado a métodos típicos do mandonismo que virou ditador e flertou com o nazismo e o fascismo. No Brasil, até hoje é assim: latifundiários e advogados de bandidos de colarinho branco passam-se por revolucionários e ex-operários e antigos guerrilheiros de esquerda o que mais querem é se locupletar no paraíso burguês.

Mas voltemos aos anos 30: como as editoras e os compradores de livros eram, na imensa maioria, do eixo Rio-São Paulo, os romancistas nordestinos acabaram por escrever pensando nesse hipotético leitor sulista. Alguns teriam até substituído termos e expressões mais usados no Nordeste em nome de uma maior legibilidade no Sul. Teria, então, ocorrido uma espécie de colonialismo interno, o que, como observa a autora, ainda está para ser constatado pela historiografia literária.

Para a Letícia Malard, Graciliano Ramos constituiu uma exceção à regra no grupo nordestino, embora também tenha transculturado o falar nordestino em busca de uma linguagem literarizada. Nesse ponto, a crítica destaca, com sagacidade, a contemporaneidade de Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, e Água (1935), do peruano José Maria Arguedas (1911-1969).

Os dois romancistas são mestiços — produtos do processo transculturador latino-americano — e ambos contam nesses livros a luta da população de lugares pobres contra a falta d´água. Arguedas radicalizou ainda mais ao rechear seus romances de termos e expressões do idioma quíchua, embora com a devida tradução no rodapé.

Como o arguto leitor já deve ter intuído, embora os demais trabalhos reunidos neste livro tenham importância, o primeiro ensaio vale por todo o livro porque o seu tema é instigante e vasto. Até porque, embora apaixonante, a questão da transculturação anda muito mal explicada por nossos historiadores literários.

Seria, portanto, assunto a que própria professora deveria voltar e ou orientar, no caso de uma tese de doutorado. Seja como for, quem tiver coragem de enfrentá-lo terá mesmo de adaptar o que Angel Rama escreveu em Transculturación narrativa en América Latina (México, Siglo Veintiuno Editores, 1985) para a realidade brasileira.

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LITERATURA E DISSIDÊNCIA POLITICA , de Letícia Malard. Belo Horizonte: Editora UFMG, 238 págs., 2005. . E-mail: [email protected]

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Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey