Crítica ao mercado de carbono assegura que mecanismo de compensação é antiético
Filósofo pela Universidade de Viena, Michael Schmidlehner questiona legislação criada pelo Governo do Acre para garantir pagamento por serviços ambientais e usa o argumento da 'justiça climática' para fulminar a dinâmica da compensação por emissão de gases de efeito estufa Amazônia
ITAAN ARRUDA
(fonte: jornal A Gazeta)
Os pagamentos por serviços ambientais estão longe da unanimidade. Há fortes argumentos que questionam a implantação de políticas públicas cuja retórica se fundamenta na lógica "fazer com que as comunidades ganhem dinheiro com a floresta em pé".
Professores universitários de diversas partes do mundo, dirigentes de pequenas ONGs, líderes rurais, pesquisadores têm relativizado a eficácia do mercado de carbono como mecanismo de minimização do efeito estufa, responsável pelo aquecimento global, e criticam duramente o instrumento REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal).
Sobre essas questões, o Acre tem sido apontado, sem exagero, como uma espécie de "modelo" da implantação desses mecanismos como política pública, inclusive com amparo legal, como é o caso do Sistema Estadual de Incentivo a Serviços Ambientais (Sisa), gestado no governo de Binho Marques, finalizado na atual administração de Tião Viana e aprovado na Assembleia Legislativa ano passado.
Aliás, esse é o primeiro argumento utilizado pelos críticos para aniquilar a proposta dos pagamentos por serviços ambientais. Essas legislações semelhantes ao Sisa são classificadas como "subnacionais". Elas, de acordo com os críticos, não são formuladas por um mecanismo centralizado no Governo Federal e por ele fiscalizado e monitorado.
"O artigo 225 da Constituição brasileira diz que o meio ambiente é um bem público", adverte o filósofo e professor universitário Michael Schmidlehner. "Isso é um valor e não está certo transformar isso em mercadoria". O professor lembra que o ex-governador do Estado da Califórnia, Arnold Schwarzenegger liderou a formação de uma rede de gestores públicos chamada de Goverment Task Force que usou a retórica da defesa e preservação ambiental para, de fato, blindar interesses comerciais de grandes indústrias por meio de iniciativas subnacionais semelhantes ao Sisa.
"A própria ONU condenou por unanimidade essas iniciativas subnacionais", lembra o pesquisador. A Organização das Nações Unidas entendeu que esse tipo de ação pública deve ser necessariamente protagonizada pelos governos centrais e não pelas federações.
Compensações como mascaramento
O filósofo Michael Schmidlehner defendeu ano passado uma tese de mestrado sobre biodiversidade na Universidade de Viena, na Áustria. O estudo parte da análise do discurso oficial do Governo do Acre até a implantação das políticas públicas.
Para o pesquisador, a essência da defesa do Governo do Acre se baseia na seguinte lógica econômica: atribui-se um valor monetário aos recursos e o ser humano vai preservá-los porque vai valorizá-los. A "repartição de benefícios" seria, nesse cenário, um "estímulo para a preservação". Um argumento que Schmidlehner rebate com a seguinte pergunta: "Será que é da natureza humana sempre optar pelo crescimento econômico?", indaga. "Eu imagino que não. Seria muito triste se fosse só isso".
No entanto, o pesquisador é honesto em reconhecer que não encontrou um caminho para a solução do problema. "Eu tenho que dizer que também não tenho as soluções para combater a miséria, distribuir renda. Não tenho. Mas, no meu ver, o que está acontecendo é muito preocupante porque está se dizendo que teria soluções. E eu acho que eles estão fundamentalmente equivocados".
Schmidlehner utiliza uma metáfora simples para dizer que todos, inclusive, estão em busca de um novo caminho. "Eu acho que é muito pior você dizer para alguém perdido que você tem um mapa, que você sabe que é falso, do que dizer que não sabe o caminho", compara. "É isso que eu acho que está acontecendo: acho que está sendo replicado um mapa errado, falso, que aponta para soluções que, ao contrário, são um beco sem saída ou programas que tendem a piorar".
Antiético
Schmidlehner pontua um problema sistêmico na dinâmica da compensação por emissões de gases de efeito estufa. Ele cita vários casos, mas destaca um que ocorre no estado da Califórnia, oeste dos Estados Unidos.
"Há comunidades de baixa renda que vivem em Los Angeles próximos de fábricas [que emitem grandes quantidades de gases poluentes] e as pessoas têm taxas de câncer elevadas, taxas de aborto espontâneos elevados e as crianças brincam no meio da fumaça", pontua.
Ele informa que essas comunidades já exigiram que essas empresas diminuam as emissões. "Já mandamos cartas para lá exigindo: 'Não façam isso. A compensação não resolve o problema climático e é eticamente questionável', disse em carta. "Ora, como vender crédito de carbono daqui para lá vai resolver o problema da vida dessas pessoas? Tem que reduzir ao invés de compensar. Essa ideia da compensação é anti-ética e ela não resolve o problema".
Virtualidade
O filósofo questiona o instrumento de REDD ou de REDD+. "Há um grande equívoco, por exemplo, quando se fala dos projetos REDD", sentencia. "A partir do momento que eles são financiados através do mercado, o seu efeito de redução de emissões é aniquilado porque ele permite as mesmas emissões em outro lugar. E pior: essas emissões reduzidas são emissões altamente virtuais".
A defesa oficial dos governos baseada na lógica do "ou usa com método ou se devasta" efetiva uma troca ruim para as comunidades. "O argumento comum é o seguinte: 'se não fazemos nada, as áreas florestais vão ser desmatadas', mas omite-se o fato de que aquele que compra, o carbono que ele emite já vai para os ares realmente", afirma. "Troca-se algo virtual por algo muito real. Além disso, não há garantia de que as florestas onde há aplicação de conceito REDD estejam imunes às catástrofes, incêndios... são previsões".
Territorialidade ameaçada
O mecanismo REDD dificulta o uso emancipador da territorialidade por parte das populações tradicionais da floresta. Dito de outra forma: o uso da terra não é mais autodeterminado pelos povos que nela vivem. Ou, no mínimo, isso sofre bastante com a entrada em cena do mecanismo REDD, defende o pesquisador.
"As pessoas vão ter que seguir regras implementadas de fora", analisa. "São outras regras que vão se estabelecer sobre esse território. O exercício de territorialidade, de ter a autonomia da tua terra, de fazer as coisas como a tua comunidade entende passa a ser ameaçado".
Para Schmidlehner, a pergunta é relativamente simples. "Como se mantém o conhecimento tradicional? O conhecimento tradicional não é museu. Se você regulamenta o conhecimento tradicional você já perde a essência dele. Porque ele é criado e se cria na prática, na oralidade e na ação. É na interação com as formas de vida da floresta que se gera o conhecimento. É algo vivo".
Para o filósofo, a retórica oficial acaba expondo uma contradição. "Então, chega até ser uma ironia dizer que com os serviços ambientais se valoriza a cultura e os conhecimentos tradicionais ecossistêmicos, como está no Sisa".
REDD promove fuga de desmatamento
Quando uma empresa madeireira atua em determinada região, há impacto ambiental evidente, com ou sem manejo. Se essa região passa a ser utilizada pela ação de governo com implantação do instrumento de REDD, a madeireira não deixará de existir. Ela apenas migrará para outra área, ampliando o rastro de desmate, argumenta o pesquisador.
"Existem interesses de grandes empresas, grandes bancos, de usar o Acre como vitrine para isso. Então, por isso, é tão importante a verdade sobre os projetos REDD", diz. "Nos relatórios feitos por muitas ONGs, há omissão de muitos problemas. Um deles trata da permanência do carbono, que não é garantido. Outro problema é do 'vazamento' ou 'fuga'. Você praticamente exporta a destruição.
Motivos para impedir implantação do mecanismo REDD, segundo pesquisador
1. Restrições e proibições às comunidades (falta de soberania sobre próprio território);
2. Ameaça à soberania e segurança alimentar;
3. REDD não evita destruição da mata (não preserva floresta);
4. Comunidades são acusadas de desmatar, mas empresas poluidoras, não;
5. Proposta REDD é imposta às comunidades. Não nasceu nas comunidades
6. Fragmentação de lideranças nas comunidades;
7. REDD não socializa resolução de problemas comuns às comunidades
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