Entrevista com Presidente Vladimir Putin, em Vladivostok

"Hoje há combates no leste da Ucrânia. O governo central ucraniano enviou para lá forças armadas e eles usam, até, mísseis balísticos. Alguém está criticando esse modo de agir? Não. Nem uma palavra. O que significa esse silêncio? Significa, como nós o interpretamos, que alguém deseja que as autoridades centrais ucranianas aniquilem completamente tudo que encontrarem no sudeste do país, todos os seus inimigos políticos e todos os adversários. Se é o que vocês querem, não é o que a Rússia quer. E nós de modo algum permitiremos que aconteça" (Presidente Vladimir Putin).

12/11/2014, entrevista a Hubert Seipel, da rede alemã ARD de televisão -- http://eng.kremlin.ru/news/23253
HUBERT SEIPEL (retraduzido do russo): Boa-tarde, Sr. Presidente.

O senhor é o único presidente da Rússia a ter discursado no Parlamento (Bundestag) alemão. Aconteceu em 2001. Seu discurso foi um sucesso. O senhor falou sobre relações entre Rússia e Alemanha, construção da Europa em cooperação com a Rússia. Mas naquele discurso o senhor também deu um alerta. O senhor disse que era preciso erradicar ideias da Guerra Fria. O senhor observou também que partilhamos os mesmos valores, mas não confiamos uns nos outros. Por que, naquele momento, o senhor mostrou-se um pouco pessimista?

VLADIMIR PUTIN: Para começar, não dei avisos nem alertas, nem fui pessimista. Estava apenas tentando analisar o período precedente no desenvolvimento da situação no mundo e na Europa, depois do colapso da União Soviética. Também tomei a liberdade de prever a situação, considerando diferentes cenários de desenvolvimento.

Naturalmente, o que eu disse refletia a situação como nós a vemos; como diriam os diplomatas, do ponto de vista da Rússia. Mas, ainda assim, creio que foi análise bastante objetiva.

Reitero que não havia absolutamente qualquer pessimismo. Nenhum. Ao contrário, estava tentando soar otimista. Assumi que, depois de reconhecer todos os problemas do passado, temos de andar na direção de um processo muito mais confortável e mutuamente vantajoso de construção de relações, para o futuro.

HUBERT SEIPEL: Semana passada marcou os 25 anos do fim do Muro de Berlin, fim que jamais teria sido possível sem o consentimento da União Soviética. Isso, naquele tempo. Entrementes, a OTAN faz manobras militares no Mar Negro, junto das fronteiras da Rússia e bombardeiros russos fazem manobras no espaço internacional europeu. O ministro da Defesa disse, se não estou enganado, que aqueles aviões russos chegaram até o Golfo do México. Tudo isso aponta para uma Nova Guerra Fria.

E, claro, há parceiros trocando declarações duras. Há algum tempo, o presidente Obama listou a Rússia como ameaça equivalente ao ebola e aos extremistas islamistas. O senhor, certa vez, disse que os EUA não passariam de novos ricos, que pensam que venceram a Guerra Fria. E agora os EUA tentam modelar o mundo conforme o que pensam da vida. Tudo isso faz, sim, lembrar a Guerra Fria.

VLADIMIR PUTIN: O senhor falou de 2001, e respondi que considerava bastante otimista o meu ponto de vista naquele momento. A partir de 2001, somos todos testemunhas de duas ondas de expansão da OTAN. Se bem me lembro, mais sete países - Eslovênia, Eslováquia, Bulgária, Romênia e três países do Báltico, Estônia, Latvia e Lituânia - uniram-se à OTAN em 2004. Em 2009, mais dois países também passaram a integrar a OTAN. São fatores que alteram significativamente o jogo geopolítico.

Além do mais, o número de bases militares dos EUA está aumentando. A Rússia tem bases militares espalhadas pelo mundo? A OTAN e os EUA têm bases militares por todo o planeta, inclusive em regiões próximas de nossas fronteiras, e o número dessas bases só cresce. E recentemente decidiram deslocar também forças de Operações Especiais para bem perto de nossas fronteiras. O senhor falou também de exercícios, voos, movimentos de navios e tal. Tudo isso está acontecendo de fato? Sim, está.

Mas o senhor disse - ou talvez tenha sido só um erro de tradução - que estariam havendo voos no espaço aéreo internacional da Europa. Bem... ou é espaço internacional (neutro), ou é espaço europeu. Por favor, é importante deixar bem claro que nossos exercícios foram realizados exclusivamente em águas internacionais e em espaço aéreo internacional.

Em 1992, nós suspendemos os voos de nossa aviação estratégica e as aeronaves permaneceram nas bases por muitos anos. Durante todos aqueles anos, nossos parceiros norte-americanos mantiveram os voos dos aviões estratégicos deles, nas mesmas áreas de antes, inclusive em áreas próximas das nossas fronteiras. Então, depois de anos de tentativas, sem obter qualquer avanço positivo nas conversações, sem encontrar ninguém disposto a ceder metade e nos encontrar na metade do caminho, nós retomamos os voos de nossa aviação estratégica até regiões remotas. É só isso.

HUBERT SEIPEL: Então o senhor entende que os interesses da segurança russa não foram contemplados. Permita-me voltar à crise em que estamos e o que a provocou. A atual crise foi disparada pelo acordo entre União Europeia e Ucrânia. O título do tal acordo soa relativamente inócuo: é conhecido como "Acordo de Associação entre a União Europeia e a Ucrânia". O ponto chave desse acordo é abrir o mercado da Ucrânia para a União Europeia e vice-versa. Por que isso ameaçaria a Rússia? Por que os russos opuseram-se a esse acordo?

VLADIMIR PUTIN: Na realidade, a economia segue quase o mesmo caminho que a segurança. Pregamos o oposto do que praticamos. Digamos que se deve construir um espaço comum, mas, em vez disso, só construímos fronteiras e linhas divisórias.

Observemos de perto o que estipula o Tratado de Associação UE-Ucrânia. Já disse isso várias vezes, mas parece que tenho de dizer mais uma vez: esse tratado elimina os impostos de importação para bens europeus que entrem em território da Ucrânia, reduz esses impostos a zero. Contudo, como a Ucrânia também é membro de uma zona de livre comércio com a Rússia, a Comunidade de Estados Independentes,[1] também há impostos zero no comércio entre Rússia e Ucrânia. O que significa isso? Significa que todos os bens que a Europa venda à Ucrânia fluirão, através do território ucraniano, diretamente para dentro do território da Federação Russa.

Há inúmeros detalhes que podem ainda não estar claros para a maioria das pessoas que não são adequadamente informadas sobre essas questões complexas, mas isso não significa que os detalhes não divulgados não existam. Por exemplo, há regulamentações técnicas diferentes na Rússia e na União Europeia, temos exigências diferentes de qualidade. São padrões, por exemplo, de controle técnico, padrões fitossanitários, a exigência de que se conheça a proveniência dos produtos. Só para dar um exemplo, cito a instalação de montadoras de automóveis em território ucraniano. Nos termos do Acordo de Associação EUA-Ucrânia, os bens manufaturados na Ucrânia poderão ser vendidos dentro da zona de livre comércio russo-ucraniana. As empresas europeias que investiram bilhões de euros em fábricas em território russo (Volkswagen, BMW, Peugeot, Citroen, a Ford-EUA e muitas outras) vieram para cá confiando nas condições que havia, depois de detalhados estudos sobre localização da produção; e aquelas condições eram completamente diferentes das que se tenta impor hoje. De repente... muda tudo? Como poderíamos aceitar tudo isso? Por isso nós dissemos, desde o primeiro dia: "Certo, que seja. Mas temos de avançar passo a passo e levar em consideração a situação real, os problemas reais que vão aparecer entre Rússia e Ucrânia." E o que nos responderam? "Não metam o nariz nisso. Vocês nada têm a ver com a Ucrânia. Vão cuidar da vida de vocês."

HUBERT SEIPEL: Gostaria de falar sobre o passado. Quando se discutiu o Acordo de Associação UE‑Ucrânia... As negociações foram longas, tomaram tempo. Aconteceram as manifestações na praça Maidan em Kiev. Refiro-me aos primeiros protestos, quando as pessoas reivindicavam vida melhor dentro da União Europeia. Mas também protestavam contra o sistema ucraniano. No final, tudo isso resultou numa onda de violência.

Quando o então presidente recusou-se a assinar o Acordo, aconteceu um estouro de violência e houve mortos em Maidan. Então o ministro de Relações Exteriores da Alemanha chegou e tentou construir um acordo entre os manifestantes e o governo e foi bem-sucedido. Chegou a haver aquele acordo, para constituir um governo de unidade nacional. Mas durou só 24 horas e desapareceu...

O senhor acompanhou de perto aqueles desenvolvimentos do dia 21 de setembro e há de recordar que o senhor conversou com o presidente Obama e com a chanceler Merkel.

VLADIMIR PUTIN: É verdade. Dia 21 de fevereiro chegaram a Kiev não só o ministro alemão de Relações Exteriores, mas também os ministros da Polônia e da França. Lá chegaram para assinar como 'avalistas' o acordo que fora negociado entre o presidente Viktor Yanukovych da Ucrânia e a oposição. Esse acordo estipulava que o processo de transição teria de ser pacífico. Os ministros de Alemanha, França e Polônia, sim, assinaram aquele acordo entre as autoridades oficiais e a oposição na Ucrânia. E o governo aceitou que haveria observadores.

É verdade, também, que falei por telefone com o presidente dos EUA no mesmo dia, e falamos sobre, precisamente, essa questão, e confirmamos tudo. Pois... dia seguinte, apesar de todas as garantias que nossos parceiros ocidentais nos haviam dado, houve um golpe na Ucrânia, e foram ocupados tanto o palácio presidencial como o prédio da administração do governo da Ucrânia.

Sobre isso, queria dizer ainda o seguinte: ou os ministros de Alemanha, Polônia e França não deveriam ter assinado como avalistas, o acordo entre as autoridades e a oposição na Ucrânia, ou, dado que assinaram, eles teriam de insistido em que o acordo fosse respeitado e cumprido. Ou, então, que se dissociassem formalmente do acordo. Aconteceu o pior de todos os mundos: nem se dissociaram do acordo nem insistiram em que fosse respeitado; preferiram nunca mais falar daquele acordo, como se não houvesse acordo algum. Minha opinião é que essa atitude é absolutamente errada e contraproducente.

HUBERT SEIPEL: O senhor agiu depressa. O senhor, digamos assim, anexou a Crimeia e justificou a anexação, naquele momento, alegando que 60% da população da Crimeia era russa, que a Crimeia tem longa história como parte da Rússia e, afinal, porque a frota russa está ancorada lá. Para o ocidente, houve aí uma violação da lei internacional.

VLADIMIR PUTIN: E qual, exatamente, é sua pergunta?

HUBERT SEIPEL: O senhor subestimou a reação ocidental e a possibilidade de o ocidente aplicar sanções à Rússia, como aconteceu na sequência?

VLADIMIR PUTIN: Entendemos que o tipo de reação ocidental foi totalmente desproporcional em relação ao que aconteceu. Fico boquiaberto sempre que ouço protestos e reclamações sobre a Rússia ter violado alguma lei internacional. Para começar: de que lei internacional estão falando? A primeira e principal lei internacional é a Carta das Nações Unidas e a prática internacional, e a interpretação que lhes deem instituições internacionais relevantes. Além do que, o que houve na Crimeia tem claro precedente e bem recente, e aceito por todos: o Kosovo.

HUBERT SEIPEL: O senhor fala da sentença da Corte Internacional sobre o Kosovo? A sentença que diz que o Kosovo tem direito à autodeterminação e que os kosovares tinham e têm pleno direito de votar para determinar o futuro do estado deles?

VLADIMIR PUTIN: (em alemão) Exatamente. (Continua em russo) Mas não só isso. O ponto principal dessa sentença é que ali se fixa a jurisprudência precedente, segundo a qual, ao tomar uma decisão sobre a própria autodeterminação, o povo que viva em determinado território não precisa consultar a opinião das autoridades centrais do estado onde viva naquele momento. Não precisam da aprovação das autoridades centrais, nem do governo, para tomar as medidas necessárias para a autodeterminação e a independência. Esse é o ponto principal.

O que foi feito na Crimeia não foi, de modo algum, diferente do que foi feito no Kosovo.

Estou profunda e sinceramente convencido de que a Rússia não cometeu nenhum tipo de violação da lei internacional. Sim, e nunca fizemos segredo disso: é fato que bloqueamos as forças armadas ucranianas estacionadas na Crimeia, não para obrigar alguém a votar 'sim', o que seria impossível, mas para evitar derramamento de sangue e para dar ao povo da Crimeia uma chance de expressar o próprio desejo e a própria opinião sobre como deseja que seja o futuro deles e o futuro dos filhos deles.

O Kosovo declarou a própria independência por votação parlamentar, e só isso; e a independência foi rapidamente reconhecida. Na Crimeia, houve mais que só uma votação no Parlamento: houve um referendo, e o voto vencedor obteve maioria imensa, praticamente unanimidade.

O que é democracia? O senhor e eu sabemos bem. O que é "demos"? É "povo". Democracia é o sistema que assegura que se cumpra a vontade do povo. No caso da Crimeia, o direito que foi garantido foi o direito à autodeterminação.

HUBERT SEIPEL: Vê-se imediatamente que o senhor tem formação de advogado. E o senhor conhece também os argumentos do ocidente. O ocidente diz que as eleições foram realizadas sob controle de forças militares russas. É o que diz o ocidente. Permita-me tocar na questão seguinte.

Hoje, a Ucrânia está mais ou menos dividida. Há quatro mil mortos, centenas de milhares de refugiados e em fuga do país, que se dirigem, dentre outros destinos, para a Rússia. No leste do país, separatistas falantes de russo exigem mais ampla autonomia, alguns querem unir-se à Rússia. Segundo o acordo de Minsk,[2] declarou-se o cessar-fogo, mas as pessoas continuam a morrer todos os dias. O país está falido. É guerra em que todos perdem. A Ucrânia parece ser quem mais perdeu, mas Europa e Rússia também perdem. Como o senhor vê o futuro da Ucrânia?

VLADIMIR PUTIN: A Ucrânia é país complexo, e não só por causa da composição étnica; também do ponto de vista da formação do país como o vemos hoje. O senhor quer saber se há futuro para a Ucrânia e qual é esse futuro? Acho que sim, com certeza há futuro. É país de grande território, com 43-44 milhões de habitantes. É um grande país europeu, com cultura europeia. De fato... Só falta uma coisa. Acho que só falta uma coisa para que o país seja bem-sucedido.

Acho que é preciso que todos compreendam que, para ser bem-sucedido, estável e próspero, as pessoas que vivem ali, independente da língua que falem (húngaro, russo, ucraniano e polonês), têm de sentir que ali é a pátria', a terra natal. Para que seja assim, é preciso que todos sintam que podem realizar o próprio potencial, ali como em outros territórios, e possivelmente ainda com mais sucesso ali mesmo. Por isso não compreendo por que algumas forças políticas na Ucrânia não admitem nem que se fale da possibilidade de federalização.

Ultimamente temos ouvido que a questão que se discute não seria "federalização", mas "descentralização". Não passa, afinal, de jogo de palavras. Importante é compreender o que significam essas noções: descentralização, federalização, regionalização. Podem-se cunhar dúzias de outras palavras. O povo que vive nesses territórios tem de dar-se conta de que tem direitos, de que pode decidir eles mesmos sobre a própria vida.

HUBERT SEIPEL: No ocidente, a questão central é a seguinte: a Ucrânia permanecerá como estado independente? Essa é a pergunta central da agenda. A segunda pergunta é o que mais a Rússia pode fazer? Talvez a Rússia possa apressar o processo de paz na Ucrânia, sobretudo em relação aos acordos de Minsk?

VLADIMIR PUTIN: Sabe... Quando alguém nos diz que temos essa ou aquela oportunidade de resolver essa ou outra crise, sempre me preocupa e me alarma. Já ouvimos muitas e muitas vezes que a Rússia teve papel chave na solução do problema sírio, que temos alguma espécie de oportunidade especial para resolver algum outro problema, ou a crise na Ucrânia. É ouvir isso e começo a me preocupar com qual será a intenção de quem tanto se interessa em passar a responsabilidade para nós, ou de nos fazer pagar por alguma coisa. Não queremos nada disso. A Ucrânia é estado independente, livre e soberano. Falando francamente, estamos muito preocupados com qualquer possível 'limpeza' étnica e com o risco de a Ucrânia terminar como estado neonazista. Afinal, o que se pode pensar, se as pessoas andam pela rua com suásticas na manga da camisa? Ou dos emblemas do SS que todos vemos nos capacetes de algumas unidades militares atualmente em luta no leste da Ucrânia?

Se a Ucrânia é estado civilizado, onde estão as autoridades que não veem essas coisas? Podiam, pelo menos, fazê-los despir aqueles uniformes nazistas, podiam obrigar os nacionalistas a remover dos uniformes os brasões do nazismo. Por isso é que tememos que as coisas ali terminem indo por esse pior caminho possível. Se acontecer, será uma catástrofe para a Ucrânia e para o povo ucraniano.

Os Acordos de Minsk só surgiram porque a Rússia envolveu-se ativamente naquele esforço pelo cessar fogo e pela paz. Trabalhamos com as milícias do Donbass, quer dizer, os que combatem no sudeste da Ucrânia, e os convencemos de que deviam aceitar determinados acordos. Se não tivéssemos começado por aí, nenhum acordo teria jamais acontecido. Mas, sim, há alguns problemas para a implementação desses acordos, é verdade.

Que problemas são esses? Na verdade, alguns combatentes de autodefesa, por exemplo, teriam de deixar algumas das cidades que eles haviam cercado, mas até agora não deixaram aquelas cidades. Quer saber por que não saíram? Posso dizer-lhe claramente, e não é segredo: porque as pessoas que lá estão, lutando contra o exército de Kiev, dizem "Nascemos aqui, essa é a nossa cidade. Nossa família, nossos amigos, todas as pessoas que amamos vivem aqui. Se sairmos da cidade, os batalhões nacionalistas nazistas entrarão e matarão todos que encontrarem por aqui. Não sairemos da cidade. O exército de Kiev, que venha, se quiser tentar nos arrancar daqui." Não é problema simples. Claro, temos feito o possível para convencê-los, falamos e falamos, mas... Quando se ouvem coisas como essas, não há muito que argumentar.

E o exército de Kiev também não saiu das cidades das quais se comprometeu a sair. As milícias são o povo em luta pelos seus próprios interesses, seus direitos. Mas se as autoridades de Kiev escolhem não demarcar sequer alguma linha divisória, o que seria importante hoje para deter os bombardeios e as mortes, mas preferem tentar preservar a integridade territorial do país, cada vila ou cidade tem, em si, pouca importância. O que realmente importa é pôr fim ao derramamento de sangue e aos bombardeios e criar condições para iniciar um diálogo político. Isso é o que realmente importa. Se não se criarem essas condições, nunca haverá diálogo político.

Perdoe-me por esse longo monólogo, mas você me fez retroceder até o cerne do problema.

Qual é esse cerne, a essência do problema? O golpe aconteceu em Kiev. Parte considerável do país apoiou o golpe e os golpistas, e até gostaram, porque acreditavam que depois de assinado o tal Acordo de Associação com a União Europeia haveria fronteiras abertas para todos, novos empregos, o direito de trabalhar na União Europeia, inclusive aqui, na Alemanha. Imaginavam que fosse acontecer desse modo. O que de fato obtiveram nada tem a ver com isso.

A outra parte do país, o sudeste, não apoiou o golpe em Kiev e disse "Não reconhecemos o governo de vocês". E, em vez de as autoridades centrais em Kiev iniciarem um diálogo, em vez de explicarem à população que Kiev tem interesse em propor diferentes formas de coexistência e de desenvolvimento de um estado comum, que está disposta a assegurar os direitos da população do sudeste... Em vez de fazer isso, o novo governo em Kiev pôs a invadir casas e prender gente na calada da noite. Quando essas prisões noturnas começaram, a população do sudeste armou-se.

Depois de o sudeste ter pegado em armas, em vez de Kiev pôr fim aos ataques e às prisões arbitrárias (o governo de Kiev tinha obrigação de fazer isso, tinha de ter discernimento e fazer exatamente isso) e dar início a um diálogo... mandaram para lá o Exército, a Força Aérea, tanques e lançadores de foguetes. E isso é jeito de resolver algum problema? No final, entraram todos no mesmo impasse. Há saída? Tenho certeza de que sim, ainda é possível achar uma saída.

HUBERT SEIPEL: O problema hoje é que Kiev diz que a Rússia fornece armas aos separatistas e enviou forças para lá.

VLADIMIR PUTIN: E onde eles obtiveram veículos blindados e aqueles sistemas de artilharia?

A verdade é que hoje, no mundo, quem faça qualquer luta e a considere válida, sempre saberá onde encontrar armas e as encontrará. Isso, para responder sua pergunta. Mas quero deixar bem claro que essa não é a questão. A questão é completamente outra. A verdadeira questão é que não é possível agarrar-se ao modo como só um dos lados vê o problema.

Hoje há combates no leste da Ucrânia. O governo central ucraniano enviou para lá forças armadas e eles usam, até, mísseis balísticos. Alguém está criticando esse modo de agir? Não. Nem uma palavra. O que significa esse silêncio? Significa, como nós o interpretamos, que alguém deseja que as autoridades centrais ucranianas aniquilem completamente tudo que encontrarem no sudeste do país, todos os seus inimigos políticos e todos os adversários. Pode ser o que vocês querem, mas não é o que a Rússia quer. E nós de modo algum permitiremos que aconteça.

HUBERT SEIPEL: Depois que a Crimeia reintegrou-se à Rússia, o Ocidente expulsou a Rússia do G8, esse clube privé de estados industrializados. Ao mesmo tempo, EUA e Grã-Bretanha impuseram sanções à Rússia. Agora, o senhor está a caminho de uma reunião de cúpula do G20, dos principais países industrializados do planeta. O foco ali será crescimento econômico e emprego. Dizem eles que o crescimento estagnou e que o desemprego aumentará; as sanções estão começando a ter efeitos: ambos, o rublo e o preço do petróleo atingiram picos negativos históricos. Prevê-se que a Rússia não conseguirá crescer nem 2%. Outros países enfrentam situação semelhante. Essa crise tem um aspecto contraproducente, inclusive para essa próxima reunião de cúpula, não lhe parece?

VLADIMIR PUTIN: O senhor fala da crise ucraniana?

HUBERT SEIPEL: Sim.

VLADIMIR PUTIN: Claro que tem. Quem se beneficiaria dessa crise? O senhor queria saber sobre como a situação está evoluindo e o que esperamos que aconteça. Claro que esperamos que a situação evolua na direção do melhor. Claro que esperamos que a crise ucraniana chegue ao fim. Claro que desejamos ter relações normais com nossos parceiros, inclusive os EUA e a Europa. Claro, a situação das chamadas 'sanções' é ruim para toda a economia global (é ruim para nós e é ruim também para toda a economia global) e é ruim, sobretudo, para as relações entre a Rússia e  a União Europeia, principalmente.

Mas há também algumas vantagens: as restrições impostas a algumas empresas russas impedidas de comprar alguns produtos de países ocidentais, da Europa e dos EUA, nos induziram a produzir, nós mesmos, aqueles produtos. Aqueles bons velhos tempos, quando nossa única preocupação era produzir mais petróleo e mais gás, e comprar todo o resto, são passado.

Quanto ao crescimento, é preciso saber ver que o crescimento foi pequeno esse ano, mas mesmo assim crescemos entre 0,5-0,6%. Crescemos. Para o próximo ano, planejamos crescer 1,2%, no ano seguinte 2,3% e em três anos, 3%. Geralmente, não seriam os números dos nossos sonhos, mas estamos crescendo e confiantes de que alcançaremos os números previstos.

HUBERT SEIPEL: Outro tema a ser discutido em Brisbane será a estabilidade financeira. A situação na Rússia pode também ser complicada, porque os bancos russos já não obtêm refinanciamentos nos mercados mundiais. Além disso, há planos para excluir a Rússia do sistema internacional de compensações.

VLADIMIR PUTIN: A Ucrânia acaba de receber, de bancos russos, mais um empréstimo de $25 bilhões. Se nossos parceiros norte-americanos e europeus tanto querem ajudar a Ucrânia, por que só fazem procurar meios para minar a base financeira da própria Ucrânia, limitando o acesso de nossas instituições financeiras aos mercados de capitais do mundo? Querem quebrar nossos bancos? Nesse caso, apressarão a falência total da Ucrânia. Será que sabem o que estão fazendo? Ou a política partidária e eleitoral já os cegou completamente? Os olhos são ferramenta periférica do cérebro. Será que alguém desligou os contatos, no cérebro deles?

O bando ao qual me referi é o Gazprombank, o qual, só esse ano, ano-calendário,  já emprestou $1,4 mais $1,8 bilhões ao setor energético ucraniano. No total, são $3,2 bilhões. É o dinheiro que foi emprestado. Num caso, num empréstimo para a ucraniana Naftogaz, que é empresa pública; no outro caso, emprestou $1,4 bilhão a uma empresa privada, para dar apoio à indústria química ucraniana. Nos dois casos, esse banco tem pleno direito de exigir ressarcimento do que emprestou, porque os parceiros ucranianos violaram o contrato de empréstimo.

HUBERT SEIPEL: A questão é: vão pagar a dívida ou não?

VLADIMIR PUTIN: (Em alemão) No momento estão pagando. (Continua em russo). Estão pagando o serviço da dívida. Naftogaz está pagando os juros de um dos empréstimos. Mas algumas cláusulas do empréstimo foram e continuam a ser violadas. O banco, portanto, tem integral direito de exigir formalmente que a dívida seja integralmente saldada.

Sim, mas, se o fizermos, o sistema financeiro ucraniano entrará em colapso. E se não o fizermos, o nosso banco russo pode quebrar. O que fazer?

Além do mais, quando emprestamos outros $3 bilhões, há um ano, havia uma cláusula segundo a qual se a dívida total da Ucrânia excedesse 60% do PIB, nós, o Ministério das Finanças da Rússia poderia exigir que a dívida fosse imediatamente paga. Mais uma vez: se executarmos o que essa cláusula nos autoriza a executar, todo o sistema financeiro ucraniano entra em colapso. Já decidimos não fazer isso, porque não nos interessa agravar a situação. O que queremos é que a Ucrânia volte a poder andar com as próprias pernas.

HUBERT SEIPEL: O senhor planeja apresentar ideias para resolver a crise na Ucrânia?

VLADIMIR PUTIN: A senhora chanceler conhece muito bem todas as nuanças desse conflito. Quanto ao problema da energia, ela já fez muito para solucioná-lo.

Quanto às questões de segurança, diria que, nessa área, nem sempre as nossas abordagens e nossos pontos de vista coincidem. O que está bem claro é que a Rússia e a República Federal da Alemanha querem que a situação seja normalizada nessa região do mundo. Estamos interessados nisso e trabalharemos para que o que ficou resolvido nos tratados de Minsk seja respeitado. Há só uma coisa à qual sempre presto muita atenção. Não se cansam de nos repetir que separatistas pró-Rússia têm de fazer isso ou aquilo, que nós temos de influenciá-los nessa ou noutra direção etc.

Quando ouço esse tipo de coisa, que eu teria de agir assim ou assado, que teria de influenciá-los nessa ou noutra direção, sempre pergunto aos nossos 'aconselhadores': "E o que vocês fizeram para influenciar os clientes de vocês em Kiev? Fizeram o quê? Ou vocês só apoiam sentimentos russofóbicos, onde quer que os encontrem?"

Nada pode ser mais perigoso que isso. Haverá uma catástrofe na Ucrânia, se alguém, sub-repticiamente se puser a incendiar a russofobia na Ucrânia. Catástrofe real, das graves! Ou o melhor será procurarmos juntos uma solução? Nesse caso, temos de pôr todos em volta de uma mesa de negociação. Vou dizer uma coisa que os alemães talvez não apreciem. Mas vamos tentar demarcar um único espaço político naqueles territórios. Estamos prontos a andar nessa direção, mas só se todos se mexerem ao mesmo tempo.

HUBERT SEIPEL: É sempre muito difícil corrigir erros dos outros. Muitas vezes só se consegue corrigir os próprios erros. Perguntaria: o senhor cometeu erros?

VLADIMIR PUTIN: Todos cometemos erros, na vida privada, nos negócios. Não acho que seja muito importante. O importante é que se tem de dar resposta efetiva, rápida e oportuna às consequências dos nossos erros. É preciso analisa-los, nos dar conta de que, sim, são erros. Temos de compreendê-los, corrigi-los e seguir adiante na direção de solucionar os problemas, mais do que de nos embrenhar em impasses.

Tenho a impressão que agimos exatamente assim, positivamente, nas nossas relações com a Europa como um todo e com a República Federal da Alemanha em particular, na última década. Considere a boa amizade que se estabeleceu entre Rússia e Alemanha nos últimos 10-15 anos. Não sei de outro período equivalente, na história, de tão boas relações. Acho que realmente nunca houve. Vejo essas nossas relações como uma base muito boa, um fundamento muito bom para que se desenvolvam relações não só entre os nossos dois estados, mas também entre a Rússia e a Europa como um todo, porque é importante para a harmonização das relações no mundo. Seria uma lástima desperdiçar o que já construímos.

HUBERT SEIPEL: Sr. Presidente, muito obrigado por essa entrevista. *****

 


[1] Orig. Comunity of Independent States (CIS), associação de ex-repúblicas soviéticas criada em dezembro de 1991, constituída de Rússia, Ucrânia e Bielorrússia

[2] Assinado em setembro de 2014, entre representantes do governo da Ucrânia, da Federação Russa, da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk [NTs].

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey