Temos uma humanidade a ser construída

Temos uma humanidade a ser construída

 Se ser rico é sinônimo de egoísmo, então ser pobre deverá ser o contrário, sinônimo de compaixão, cooperação. 

Por Vilmar Berna*

  

Se ser rico é sinônimo de egoísmo, então ser pobre deverá ser o contrário, sinônimo de compaixão, cooperação. 

São premissas falsas. 

Riqueza ou pobreza não determinam o quanto podemos ser bons ou maus. 

Há ricos generosos e pobres escrotos.

O que existe, de verdade, é que andamos falhando enquanto humanos.

A humanidade, em nós, não nasceu conosco. 

O humano em nós é uma escolha, cultural e deliberada de nossa espécie, que às vezes evolui, às vezes involui, como temos diversos exemplos individuais e coletivos por todos os lugares para onde olharmos.

Como primatas, somos seres sociais, tendemos biologicamente a formar sociedades complexas, estabelecer perímetros e limites territoriais que chamamos de comunidade, bairro, cidade, estado, país, continente, muito mais para assegurar que outros, os estrangeiros, fiquem fora, que para tornar nossas cidades mais inclusivas para nossos próprios vizinhos.

Até aqui pouco inventamos de humano.  Andamos é adaptando os mecanismos instintivos da natureza aos interesses humanos.

A cadeia alimentar e os papéis que os alfas e betas desempenham na natureza foram adaptados para criar as hierarquias de poder dentro de nossas sociedades.

Ao nos colocarmos fora da natureza, tentamos  negar ela em nós e então deixamos de perceber o quanto tais forças ancestrais desenvolvidas em bilhões de anos  de evolução, determinam nossas escolhas. 

Ao nos religarmos novamente a natureza e aceitarmos como naturais estes mecanismos e instintos, temos a chance de introduzir a cultura humana para ir além do que os simples instintos de sobrevivência não conseguiram ir. 

E ainda será a natureza agindo, mas através de nós, acrescentando compaixão, bondade, amor, compreensão, generosidade, onde só existem instintos.

E aí sim, estaremos fazendo a diferença. Estaremos criando o humano em nós, dando à natureza uma consciência de si mesma que falta nas demais espécies.

Sem isso, não somos diferentes de nenhum dos animais que lutam cotidianamente por recursos, que se matam, que protegem o território de invasores, que asseguram a hierarquia entre alfas e betas. 

Do ponto de vista biológico, haveria tanta culpa em nós - quando agimos embrutecidos e egoisticamente - quanto existe no leão alfa ao matar os filhotes do leão derrotado para que seus genes não se multipliquem. 

O que falta em nós é humanidade. 

Os instintos naturais apenas nos nivelam a todas as demais espécies. O que pode nos resgatar, nos elevar além das demais espécies, será o humano em nós, mas esse humano não nasce pronto, precisa ser construído.

Falhamos em nos tornar humanos não por que somos ricos ou pobres, ou egoístas, mas por que nos tornamos arrogantes demais, a ponto de nos comparar a semideuses, a negar nossa relação com a natureza, como se fôssemos superiores a ela e como se ela não estivesse em nós nos influenciando nas escolhas. 

A espécie humana precisa religar-se a natureza, compreender que os mecanismos naturais e biológicos não são nossos inimigos, nem nos torna inferiores, mas que temos uma tarefa em acrescentar humanidade onde ela é necessária, por exemplo, no acolhimento aos imigrantes,  em vez de tratá-los como inimigos, no compartilhamento dos recursos em vez de concentrar recursos nas mãos de poucos, na compaixão com os que sofrem, o que inclui não só nossos semelhantes, mas também as demais espécies. Só nós podemos fazer isso! Só nos temos uma consciência evoluída o bastante para contemplar a nós próprios e a natureza. As demais espécies apenas reproduzem instinto.

E, a não ser por alguns poucos bons exemplos aqui e ali, ao longo da história humana, a grosso modo e em boa maioria das vezes, andamos nos comportando mais como nossos primos chipanzés, gorilas, bonobos, macacos pregos, etc. 

No máximo, o que conseguimos, foi acrescentar aos instintos primatas os mecanismos de outras espécies, como o de nos comportar como gafanhotos no avanço sobre os recursos do planeta, como formigueiros regidos por uma rainha, com soldados, escravos, na organização de nossas cidades, como matilhas de animais liderados por alfas que só se importam com a sobrevivência do bando, doa a quem doer.

Estamos só no início da jornada humana, e talvez venhamos a nos tornar a consciência da natureza em si mesma, mas antes precisaremos compreender e aceitar os instintos naturais em nós, por que eles já tinham bilhões de anos antes do surgimento do primeiro hominídeo.

Temos uma enorme tarefa pela frente. 

Temos uma humanidade a ser construída.

A questão que realmente importa é se teremos tempo antes de comprometermos tanto todos os mecanismos que sustentam a vida que a catedral de nossa humanidade talvez não consiga sair dos alicerces.

  

*Vilmar Berna é escritor e jornalista. Fundou a REBIA - Rede brasileira de Informação Ambiental. Edita deste janeiro de 1996 a Revista do Meio Ambiente e o Portal do Meio Ambiente. Em 1999, recebeu no Japão o Prêmio global 500 da ONU para o Meio Ambiente e, em 2003, o Prêmio Verde das Américas.

 

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