José Maria Rabelo*
Entre os principais países americanos, o Brasil foi o último a tornar-se independente. Foi um dos últimos a abolir a escravatura. Foi dos últimos também a ter uma universidade.
Estamos caminhando para um novo e vergonhoso recorde histórico. Enquanto diversos vizinhos nossos julgam e condenam seus ditadores, seus carrascos e torturadores, o Brasil nem mesmo abriu os arquivos secretos da Ditadura. Protegidos por uma lei de anistia que colocou no mesmo prato da balança vítimas e criminosos, estes últimos apresentam-se, por aí, na mais total impunidade, gozando de todas as vantagens e benefícios que herdaram de suas antigas funções. Alguns até mesmo se vangloriam de seu passado de torturadores, a exemplo de um ex-capitão do Exército pertencente a tradicional família de banqueiros de Belo Horizonte, que vai ao cúmulo de zombar pessoalmente dos que passaram pelas suas mãos. Têm até organizações de defesa da classe, como a que promoveu recentemente manifestações de solidariedade ao coronel Brilhante Ustra, o sinistro Dr. Tibiriçá, algoz-mor do velho Doi-Codi paulista. E chegam a contar com um porta-voz na grande imprensa, ele mesmo co-autor dos piores atos contra a democracia durante o governo de exceção, esse emplumado coronel e ex-senador Jarbas Passarinho, incondicional defensor dos crimes dos porões militares.
Pelo menos quatro países já estão acertando suas contas com ex-governantes implicados em delitos contra os direitos humanos. O primeiro deles é a Argentina, justamente onde a repressão alcançou as maiores proporções. Foram 30 mil mortos e desaparecidos, principalmente sob a ditadura do general Jorge Videla, que governou o país de 1976 a 1981. Julgado mais tarde, Videla foi destituído de suas patentes e encontra-se hoje cumprindo prisão perpétua. Com todo o apoio da administração Kirchner, a Corte Suprema de Justiça tornou sem efeito as últimas leis que asseguravam a proteção aos envolvidos com a repressão. Muitos estão sendo processados e condenados, entre eles altas patentes e ex-mandatários, como o general Leopoldo Gualtieri, que conduziu o país à desastrosa guerra contra a Inglaterra.
O Uruguai vai pela mesma trilha. A Justiça acaba de decretar a prisão do ex-ditador Joan María Bordaberry, que, em 1973, deu um golpe de estado com o apoio das Forças Armadas. Ele é acusado pela morte de dezenas de opositores, inclusive parlamentares, e pode ser condenado a trinta anos de prisão.
No Peru, o ex-presidente Alberto Fujimori é alvo de inúmeros processos por violação dos direitos individuais, inclusive o assassinato de componentes do movimento guerrilheiro Sendero Luminoso.
O caso do Chile é parecido com os demais. A lei que impedia o julgamento dos crimes da ditadura está sendo revogada na prática pelos tribunais e brevemente deve ser anulada pelo congresso. O general Manoel Contreras, ex-comandante da Dina, polícia secreta do regime militar e coordenador da Operação Condor, já havia sido condenado pela justiça americana no caso do ex-ministro de Allende, Orlando Letelier, assassinado em Washington por agentes chilenos, e está preso em Santiago. O mesmo destino seria o de Augusto Pinochet, se a morte, colaborando com ele, não o tivesse levado antes do julgamento. Dezenas de outros integrantes dos órgãos repressivos respondem a processos.
No Brasil, apesar de termos um governo saído das lutas pela redemocratização, é proibido falar no assunto, sob a falsa alegação da conciliação nacional. Essa conciliação que equipara os assassinados aos assassinos; os torturados, aos torturadores. É a conciliação da vida com a morte. Não temos nem o direito de saber o que se passou entre nós, pois lei aprovada no governo de FHC tornou secretos para sempre registros essenciais para o conhecimento das entranhas do regime ditatorial.
A revisão da Lei de Anistia e da que estabelece o acesso a documentos considerados sigilosos constitui uma imposição da própria preservação da democracia e do estado de direito, que não podem admitir, e muito menos perdoar, essas práticas medievais da tortura e dos assassinatos políticos.
É preciso rasgar o tumor da impunidade que cerca os crimes da Ditadura. É preciso ter coragem para iluminar os labirintos de nosso passado recente. É preciso banir todos os fantasmas, mortos ou vivos, que o habitam. Ou, como diz Neruda, em seus belíssimos versos, que faço meus: Por estes mortos / nossos mortos / peço castigo. / Para o verdugo / que mandou esta morte / peço castigo.
José Maria Rabelo
jornalista, [email protected]
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