Um internacionalismo do século XXI, contra o capitalismo e o nacionalismo (3)
Uma vez que o capitalismo vem dispensando as nações, é tempo de dispensar o capitalismo, de construir redes rizomáticas globais, com alicerces locais, assentes no conhecimento mútuo e em práticas democráticas de decisão. Tempo de praticar a escalada que começa na indignação, passa pelo protesto, pela mobilização, pela organização, pela desobediência até se chegar à revolta.
A contestação social, dos trabalhadores e da multidão em geral, acompanhou o desenvolvimento do capitalismo desde o seu alvor.
Em meados do século XIX, na Grã-Bretanha, a instalação do sistema de fábrica animou os industriais a querer sobreviver com a desqualificação do trabalho, com reduções salariais, utilizando de modo massivo, mulheres e crianças. O movimento cartista conduziu à substituição no aparelho de estado, dos aristocratas pelos capitalistas industriais, ao fim das leis protecionistas que encareciam os cereais para benefício dos donos de terras com prejuízo para a maioria da população, sobretudo dos trabalhadores; e conduziu ainda à proteção e regulamentação do trabalho infantil e feminino, à instauração das dez horas de trabalho e à criação de associações políticas.
Centrada na década de 1870, a crise financeira e a grande depressão de 1873/86 é acompanhada com a criação de cartéis e monopólios, divisão de mercados, protecionismo e controlo dos preços, desencadeando-se ainda um verdadeiro assalto às regiões do mundo ainda não colonizadas. O forte desenvolvimento da automação provoca um ataque aos salários dos operários especializados da indústria, enquanto uma grande massa de camponeses empobrecidos e imigrantes surgia nas cidades. Neste contexto, geraram-se as primeiras grandes movimentações de trabalhadores, a multiplicação de sindicatos e greves, (na Grã-Bretanha, em 1867/75 aceita-se a existência de sindicatos e o direito à greve) e surgiu a Comuna de Paris.
Acontece ainda a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que acentuando o caráter federal e a solidariedade entre os trabalhadores, viria a distinguir-se pela demarcação total face aos sistemas políticos, pelo repúdio do Estado e da autoridade.
Depois da I Guerra, as dificuldades do capitalismo impuseram-se e reduziu-se a interação com o movimento sindical nas suas adaptações; essas dificuldades apontaram mais para um aumento do papel do Estado em geral - na URSS[1] e na Alemanha em particular - incorporando os sindicatos nas derivas nacionalistas e fascistas (Alemanha[2], Itália[3], Portugal[4]). O abandono do padrão-ouro contribui para os encerramentos nacionalistas, as ditaduras fascistas e promoveu a construção de infraestruturas para redução do desemprego nos EUA (New Deal) ou na Alemanha, no âmbito do que se viria a chamar as políticas keynesianas. A repressão salarial mostra não ser suficiente para gerar novo ciclo ascendente, apesar das divisões entre os trabalhadores e do recurso ao trabalho forçado na URSS, na Alemanha hitleriana[5] e nas colónias europeias de África. Na verdade, é a preparação para a guerra com a produção massiva de armamento, que permite um alívio na conjuntura depressiva.
As esperanças do internacionalismo ficaram circunscritas ao apoio militante à República espanhola enquanto as "democracias" ocidentais olhavam para o lado, alheando-se da intervenção nazi e fascista em Espanha, que ficou dependente do apoio soviético. Os campos de concentração, a emigração de militantes, a extensiva repressão, anunciavam a catástrofe iniciada em 1939.
A seguir à II Guerra, a violência das destruições de equipamentos e vidas durante o conflito exigiu a grande mobilização de trabalhadores para a reconstrução, criando-se nos países desenvolvidos, como contrapartida, o estado-providência (garantias face a desemprego, férias pagas, acesso a sistemas universais de saúde, educação massificada), como forma de pacificação social, visando o abandono de lógicas anticapitalistas, aceitando-se reivindicações económicas, normalmente defensivas e conservadoras, no âmbito da ligação dos sindicatos a partidos políticos.
Os EUA, através do plano Marshall, financiaram as suas exportações para a Europa, procurando manter os níveis de crescimento após a redução do esforço de guerra; como procuraram com esses financiamentos coartar as hipóteses de reprodução do modelo soviético, então com muitas simpatias, dado o contributo da URSS para a derrota nazi.
Neste contexto de potencial concórdia e concertação social, no chamado mundo ocidental, a realidade foi entendida como imutável, com altas taxas de crescimento, ancoradas em aparelhos de estado seguidoras de políticas keynesianas, de produção de infraestruturas e gastos sociais.
A fragilidade política e económica das velhas potências coloniais promoveu a descolonização e o desmembramento dos impérios coloniais, com o surgimento de numerosos países "não alinhados", fora dos sistemas de alianças que aglutinavam os ocidentais (NATO) e os países de regime soviético (Pacto de Varsóvia); e entre os quais figuravam países de enorme população (China, Índia ou Indonésia) e figuras de relevo, como Chu-en-Lai, Nehru, Nasser ou Tito.
A reabertura do comércio internacional, a regularização do mercado monetário (Bretton Woods), o impacto da reconstrução do pós-guerra, com um grande crescimento dos rendimentos do trabalho, permitiu o auge do keynesianismo, o período dos "trinta gloriosos anos", findos em 1973.
A primeira experiência neoliberal aconteceu no Chile, com Pinochet ao volante, parecendo uma ditadura militar, típica do Terceiro Mundo e da América Latina em particular. Mas não era. Pinochet não era um general latino-americano tradicional, cabeça de um grupo de oligarcas agrupados como uma pequena minoria de ricos, tendo do outro lado, enormes massas de pobres e classes médias muito reduzidas. O Chile em 1973 era uma sociedade com uma já longa tradição de democracia de mercado, com eleições e partidos, incluindo um PC e partidos de extrema-esquerda, como acontecia na Europa. Pinochet era o executante da aplicação de uma nova forma de capitalismo, o neoliberal, com o empenhado aconselhamento dos Chicago Boys e do seu chefe de fila, Milton Friedman[6]; este, que pelo seu desempenho recebeu o "nobel da economia", em 1976. O neoliberalismo estreou-se através de uma ditadura fascista.
É a partir de Thatcher e Reagan, no início da década de 80 que o modelo neoliberal tomou o poder, se consolidou, espalhando-se como mancha de óleo, quebrando a relativa concertação entre o patronato e os trabalhadores - o chamado pacto social-democrata - através da total intolerância para com as reivindicações dos mineiros britânicos e dos controladores aéreos norte-americanos.
Os instrumentos do neoliberalismo podem resumir-se assim:
O neoliberalismo foi sendo adoptado gradualmente pelas duas alas dos partidos-estado. Os primeiros foram os partidos ditos conservadores e liberais, seguidores de Thatcher e Reagan; depois, por duvidosos sociais-democratas ou socialistas como Blair, Schroeder ou os sucessivos chefes do PS português, depois de descobrirem o lado de onde sopra o dinheiro. Essa adesão foi particularmente notória, radical e mesmo divertida se se observar o fervor da reconversão dos apparatchiks do Leste em dedicados neoliberais.
A implosão da URSS deu um grande impulso ao domínio do neoliberalismo. Esse facto foi apresentado, durante algum tempo, como produto das vantagens do capitalismo neoliberal sobre o capitalismo de estado. O entusiasmo foi grande, defendendo-se a chegada ao fim da História, com a vitória do neoliberalismo e da democracia de mercado; a chegada do modelo perfeito, entretanto desembocou na crise financeira de 2008 e anos seguintes, que apresenta taxas de crescimento anémicas e guerras em várias frentes, calamidades climáticas, milhões de deslocados e refugiados e... Trump.
Por outro lado, o impacto da atuação das multinacionais, do sistema financeiro conluiados com oligarcas do finado modelo soviético, consistiu na privatização e saque dos setores públicos naqueles países do Leste, lançando uma ideia de modernidade que disfarçava mal as quedas de nível de vida, a precariedade e o desemprego. Em Portugal, sucedeu um processo semelhante ao aplicado sobre os despojos da URSS, se bem que o saque dos bens públicos se tivesse iniciado com Cavaco como primeiro-ministro, não tivesse estancado durante os governos PS, tendo pelo contrário, acelerado com Passos, o mainato da troika.
Na realidade, o modelo neoliberal gerado no Ocidente, abriu uma nova fronteira de desenvolvimento, alargou e densificou o chamado mercado global. No leste da Europa, gerou-se uma nova periferia que veio a concorrer com a única periferia europeia então existente - a periferia Sul - no seio de uma UE substancialmente alargada. E a Rússia voltou, depois do consulado de Ieltsin, a restabelecer com Putin, um regime autoritário, nacionalista, com uma coroa de estados em seu redor - os que não foram integrados na UE e na NATO - construindo com muitos desses, com a China e outras potências asiáticas a Organização para a Cooperação de Xangai, de onde está a surgir o adversário geopolítico do Ocidente.
Porém, a deslocalização das indústrias e depois, de muitos dos serviços, assim como a precarização e a quebra dos salários reais - mesmo que em paralelo com aumentos de produtividade trazidos por novas tecnologias - não alicerçam, naturalmente, o conveniente crescimento económico e o consumo de massas. O crescimento de que o capitalismo se nutre fica cativo, por um lado, das cascatas de dívida, pública ou privada, como formas expeditas de valorização do capital-dinheiro; e, por outro, da produção material que se concentra na China e nos "tigres asiáticos", com capacidades tecnológicas, financeiras e de competências laborais próprias, a que se devem juntar a Alemanha e o Japão, como grandes potências exportadoras.
Há uns vinte anos o comércio na bacia do Pacífico superou as transações no Atlântico no que foi um primeiro marco na perda da hegemonia ocidental. Hoje, com a evidente decadência política e económica dos EUA e da Europa, num contexto de fraca dinâmica global, continua a Ásia a mostrar-se mais dinâmica. O mapa (mais acima) sobre as posições da China e dos EUA no campo das exportações mostra bem a dinâmica chinesa em regiões como a África e o Leste europeu ou mesmo, da América Latina.
A despeito da crise financeira que rebentou em 2008, reveladora dos limites intrínsecos do capitalismo de hoje, não se observam, nas últimas décadas, movimentos relevantes e continuados de trabalhadores e da multidão em geral, com uma perspetiva antissistémica. A segmentação da produção e a precariedade desligaram os trabalhadores uns dos outros e dos seus camaradas já reformados e não se constituíram redes de apoio aos desempregados; estes, relegados à condição de números estatísticos e às humilhações vindas dos IEFP's nacionais. Os sindicatos são burocracias fechadas e alheias às alterações no âmbito da prestação de trabalho. Por seu turno, as redes sociais criam enormes matrizes de contactos mas, são impessoais e só raramente conduzem a movimentos efetivos, como aconteceu no caso do 15 M espanhol; que parcialmente foi adulterado com o surgimento do institucionalista Podemos e da sua estrela, o iluminado Iglésias.
As sequelas das falências e burlas bancárias, as recapitalizações de bancos à custa do erário público, a dívida que compromete várias gerações, o rearmamento, o caráter invasivo de leis restritivas dos movimentos e da privacidade, a espionagem global das nossas vidas, tudo isso sucede, sem polarizar em seu torno a animosidade adequada à gravidade da situação. As dificuldades marcadas por perdas de poder de compra, pelo desemprego, pela precariedade de vida, de guerras e terrorismo, são demasiadas vezes transfiguradas como resultantes da presença de imigrantes, de refugiados, da coexistência com grupos étnicos ou religiosos distintos, tomados como ameaçadores, desrespeitadores da identidade grupal, comunitária ou nacional. Desta cultura dominante na Europa resulta a relativa estabilidade e aceitação do sistema capitalista e das suas instituições políticas, com repetidas promessas de crescimento e mais emprego a que se sucedem, por rotina, parcos resultados.
Desse enquadramento resultou o referendo favorável ao Brexit, contra as posições dos tories, próximos da City ou do Labour, protagonizada por gente assustada perante a constante chegada de novos imigrantes ou com o receio de esvaziamento dos fundos públicos de pensões. A incerteza quanto ao futuro, a descrença face aos burocratas europeus, demagogos, ineptos e autoritários, desenvolveu uma pulsão xenófoba encabeçada por Nigel Farage e Boris Johnson. A concretizar-se e em moldes que se mantêm muito nebulosos, não parece que a Grã-Bretanha, no seio de um novo enquadramento, receba facilidades da UE-27, que quererá aproveitar o ensejo para avisar quaisquer novos candidatos à utilização do artº 50º.
Também nos EUA, a desvalorização interna e a entrada de imigrantes alimenta as posições de ultra-direita, nacionalistas, xenófobas e economicamente delirantes pouco inclinada a apoiar o duopólio político entre democratas e republicanos; mas a aceitar um outsider Trump, que se impôs ao aparelho republicano e derrotou o establishment democrata, prometendo um (pouco provável) retorno da indústria, entretanto deslocalizada, às cidades norte-americanas, com o ressurgimento de empregos estáveis e bem pagos. O mesmo vem sucedendo com Orban na Hungria que colocou barreiras na fronteira com a Sérvia e promulgou legislação genocida contra os sem-abrigo ou os ciganos. Na Europa Ocidental o nacionalismo e o fascismo (as classes políticas e os media preferem usar a branda designação de "populistas") recolhe os seus apoios nas cinturas das grandes cidades, preenchidas por desempregados, trabalhadores pobres e precários, pensionistas em dificuldades, que encontram em imigrantes ou nos seus descendentes, igualmente desprezados, catalisadores dos seus medos e dificuldades. Por seu turno, a continuidade de Rajoy deve-se ao apoio dos assustados com o desmembramento de uma Espanha imperial e descrentes de que o PSOE seja eficaz nesse desiderato, se voltar a ser o vértice do regime.
Na Europa, cada atentado cometido ou cada refugiado que chega, não são factos encarados como essencialmente resultantes das intervenções militares ocidentais, em África ou no Médio Oriente; aqui, na continuidade da desestruturação e da partilha desenhada por Sykes e Picot, há quase cem anos. Na Líbia, as destruições promovidas pelo nobel da paz Barack Obama visaram a libertação ds líbios e não a apropriação dos seus recursos energéticos, como é... óbvio para quem acredite no pai natal.
Os povos daquelas regiões, em grande maioria muçulmanos, são apresentados como portadores de uma violência própria, endémica, crescendo o medo e a irracionalidade em quantos compram a ideia idiota de que aqueles se tornarão maioria na Europa. Curiosamente, há duas décadas, no contexto da campanha de desmembramento da Jugoslávia e de diabolização dos sérvios, os bons do filme, os protegidos do Ocidente, na Bósnia[7], eram... os muçulmanos. Quem também beneficia disto é a entidade israelita, genocida e racista, visceralmente anti-árabe, que assiste deliciada às lutas e destruições no Médio Oriente, intervindo discretamente nas mesmas, para manter o fogo vivo; e agora confortada pelo demente Trump.
Em todas essas derivas nacionalistas parece ficar esquecido que não há memória de tratamento preferencial e amigável dos trabalhadores e do povo às mãos das burguesias nacionais acantonadas atrás das suas fronteiras. Os fascismos ocidentais como o capitalismo de estado soviético souberam arregimentar os sindicatos nacionais, anular os que mantinham uma perspetiva de classe, independente ou adversa ao poder, com o auxílio das polícias políticas. Os trabalhadores isolados e desorganizados, fechados dentro das fronteiras, submetidos às necessidades dos seus capitalistas não podem esperar nada de bom.
Por exemplo, no Portugal salazarista, nem sequer aos trabalhadores era concedido o direito de emigrar, tinham de o fazer a "salto" pagando a passadores e não isentos de riscos até cruzarem dos Pirinéus; o seu dever era o de servir os toscos capitalistas nacionais. Recentemente, pelo contrário, o famoso Passos - implicitamente reconhecendo a tosquice do empresariato luso, aconselhou os portugueses a emigrar para ganharem empreendedorismo fora, regressando depois para desenvolverem a madrasta Pátria; para quem trabalha em hospitais ingleses ou na construção civil na Suiça, o desejo de empreendedorismo claramente se... sobrepõe ao da sobrevivência.
No atrasado capitalismo português de Salazar entendia-se não ser necessária grande escolaridade para as mulheres, pois aproveitar-se-iam desses conhecimentos para "escreverem bilhetinhos aos namorados" (Salazar dixit). Assim, em 1970[8], 31% das mulheres eram analfabetas e só 0.5% tinham formação superior (20% e 1.4% para os homens, respetivamente). A situação melhorou bastante desde então, como evoluiu também nos outros países da Europa o que, contudo, não coloca Portugal melhor do que ostentar o mais baixo perfil educacional da UE.
Os EUA, como a maioria dos países europeias pouco ou nada fizeram para criar ou manter uma matriz de relações inter-industriais densa, como aconteceu com a Alemanha, o Japão, a Coreia do Sul e, mais recentemente a China; perderam a sua base industrial - excepto no complexo militar-industrial - e criaram empregos pouco qualificados na Walmart e na restauração, nos centros degradados das cidades onde antes havia uma classe média que...votava no burro (Partido Democrata).
A vitória de Trump com a sua promessa de América para os americanos, com repúdio ou expulsão de latinos ou muçulmanos, para garantir o emprego e salários compensadores aos brancos pobres, é uma verdadeira burla política. Os capitalistas americanos, mormente as suas grandes multinacionais que transferiram indústrias para a Ásia, mormente para a China, não vão voltar atrás só porque Trump incluiu esse retorno na campanha eleitoral; e as multinacionais tecnológicas também não estão dispostas a perder os imigrados de alta qualificação que trabalham nos EUA, só porque são latinos, muçulmanos...
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