Flávio Ulhoa Coelho

A tessitura da escrita em Outros tantos,

de Flávio Ulhoa Coelho

 

Flávio Ulhoa Coelho reúne 32 contos no seu novo livro Outros tantos (Penalux, 2019), retomando as seis proposições de Italo Calvino no seu livro Seis propostas para o próximo milênio, que não chegou a completar com a sexta parte inconclusa. Os títulos das partes do livro de Ulhoa são os mesmos que compõem as propostas de Calvino. São elas: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência. Mas o escritor aqui em questão, professor de Matemática, adequa tais temas imprescindíveis à excelente literatura a ser produzida a partir do viés original do tempo.

Logo no primeiro conto, "Olhares flutuantes", temos o fator ritmo e sonoridade como alicerces para a construção do tempo na medida certa. Tempo de encontros e desencontros nos olhares do ser universal, pois Ulhoa não se prende a regionalismos e particularidades, mas ao tema oniabarcante do que constrói os apelos do mundo em toda sua liquidez e fragilidade. Ele escreve: "Futurando o presente, os olhares se fixarão por uma efêmera eternidade". Eis a intensidade deste paradoxo, que une a transitoriedade ao atemporal. Que magnífica a força dos opostos e contrastes aqui, revelando o mundo como algo que engloba o poder ambíguo do tempo, que ora corre com rapidez e efemeridade, ora aponta para um processo de sublimidade que se encontra no perene jogo do que ultrapassa o real em toda sua fragmentação. Esses olhares que se encontram "flutuando" e "futurando" buscam uma ambivalência no tempo cronológico e psicológico, já que seu livro de contos dá a medida que encerra a potência sobre o visível, a carne prosaica, à invisibilidade de um lirismo abismal.

No conto "Bonde 53", temos o valor da amizade sendo exaltado, apesar das divergências. Utilizando verbos no futuro, o narrador, magicamente, vai construindo hipóteses, um futuro que aponta para o passado e para o presente, reunindo-os. Assim, ele vai cerzindo esses tempos com um olhar futurístico, que nos direciona para o abismo do desconhecido e oculto aos olhos simplórios. Sua escrita tem a profundidade cortante que une a leveza do ritmo poético às reflexões críticas e sociais indomesticáveis. Como um tropel de cavalos, sua escrita se adensa nos véus das palavras, cristalinas, mas que escondem sombras no seu interior, a partir de imagens ricas e precisas, revelando sua exatidão matemática e o que vai além dela, pois que não pode ser medida. O poeta do futuro, aqui, utiliza o ritmo e a repetição poética, dando poeticidade à sua narrativa, aliando a poesia e a prosa, como os grandiosos escritores universais Clarice Lispector e Guimarães Rosa. O lirismo contido nas asas de suas páginas nos dá o valor inusitado em meio à claridade prosaica: "...os olhares que se perderam nas nuvens dos dias".

Em "Negro y blanco", temos os diálogos como base principal do conto, com seus discursos diretos sendo reconfigurados pelo poder da linguagem. O narrador mistura as línguas espanhola e portuguesa de forma magistral, dialogando com o titubeio do narrador que não domina de todo a língua da Espanha. Num mosaico de línguas, o narrador tece uma rede de palavras, mesclando frases em português e espanhol, dando inventividade e jogo linguístico, que faz de seu conto algo que atinge o cosmopolitismo tão caro aos valores que ultrapassam a cor local. Aqui, temos a totalidade do instante na memória. Um processo de experimentação do texto ocorre de forma exemplar, e a dupla chama da linguagem acende o sol vasto da literatura.

Em "Mãos dadas no parque", Ulhoa tenta conter as certezas num mundo de incertezas, através de afirmações. Questionando no início do conto se o que veio primeiro foi a carta ou o telefonema da amiga do passado do narrador, ele pretende conter a memória do tempo numa solidez afirmativa da linguagem, clara, objetiva e precisa. Nesse processo de exatidão, temos a contenção da língua, fazendo surgir o dique que poderá conter a imprecisão e inexatidão do transbordante esquecimento. Temos assim, um jogo matemático que, ao mesmo tempo, ultrapassa a lógica a partir do que é imaginativo. A força do imaginário e da fabulação em Ulhoa é incrível, dando um tom forte à sua escrita excepcional e criativa. Com a imprecisão da vida, não podemos encaixar tudo numa caixinha sistêmica, o autor sugere. Como dizia Fernando Pessoa, retomando os navegantes: "Navegar é preciso, viver não é preciso". Nesse conto se dá a lembrança intensa em meio ao esquecimento da memória falha, que tem suas margens de erro.

Italo Calvino escreveu em seu livro por ora aqui apresentado anteriormente: "Minhas reflexões sempre me levaram a considerar a literatura como universal, sem distinções de língua e caráter nacional, e a considerar o passado em função do futuro; assim farei também nessas aulas". Aqui, numa figuração espaço-temporal, temos a construção do texto através de um jogo que não segue convenções linguísticas e temporais, ao mesclar os tempos numa abertura para o novo e original. No conto "Olhares futurantes", Ulhoa retoma o conto inicial com nova roupagem, dando-lhe um novo final, reconstruindo e reconfigurando o mesmo a partir da diferença. Assim, é pela repetição e também pela diferença, que Ulhoa constrói o seu livro, pleno de espelhamentos no labirinto inusitado da poesia que pela musicalidade nos direciona para as águas mágicas dos sentidos narcísicos, com o reflexo e reflexões, como na dobra em espiral e não em círculo, num eterno retorno da diferença imagética. Em meio aos refrãos narrativos, Ulhoa consegue a difícil proeza de reunir num mesmo respiro o caos e a ordem, o transbordamento e a contenção. Num caminho sinuoso e íngreme, encontramos suas narrativas como jogos de linguagem bem precisos em seu corte afiado e afinado.

No conto magistral, "Caneta com tinta preta", temos a exatidão da linguagem com o inusitado das imagens. A precisão do detalhe, "meu único irmão", se casa com o lirismo da força imaginária, que denota uma rasura em meio à matematização da escrita. Ulhoa rompe o círculo perfeito pela poesia. Em "a velha caneta tinteiro do pai", encontramos uma metáfora para a escrita. O interesse por esse objeto faz da linguagem o tiro certeiro do literário, cuja morada se encontra nas palavras abissais que se adensam na tinta preta. Temos, assim, as imagens do afeto, do elo familiar e literário.

No conto "O carregador de dedos", podemos perceber a exatidão do tempo a controlar o trabalho dos funcionários. Aqui, temos a crítica social do chefe da empresa que reclama dos impostos e da corrupção. No meio da sociedade, temos o controle, tentando domar o tempo. A exatidão do controle, por outro lado, borra tudo, pois através de um fato não previsto o controle se desmancha no ar. Um fator inusitado desnorteia a exatidão do controle, nocauteando-a. Em "A árvore darwiniana", assim como em outros contos, com a forma semelhante, temos o trabalho de experimentação com a linguagem, pois a narrativa, escrita com frases descontínuas, dão o valor poético ao texto. Os diálogos são entrecortados, a partir da união entre forma e conteúdo.

No conto "Natal vermelho", encontramos um labirinto de espelhos a partir dos desdobramentos da cor vermelha e seus significados que explodem para todos os lados das entradas e saídas. Aqui, vemos o contraste entre a data festiva, que significa nascimento, com a morte, em que temos o trágico em meio à beleza e ostentação do núcleo festivo. Um excesso da cor se traduz num simbolismo perfeito. As imagens da repetição do vermelho se conjugam com o ritmo poético.

Estes elementos são retomados em "Conto de Natal", onde a repetição e a rotina são enaltecidas e desviadas pela memória do passado, o tempo em máxima efusão das horas. Temos a mesma história, tudo se repete na fase natalina, pois é a fase de rememoração do personagem. A rotina fere o escudo da liberdade, trazendo o aprisionamento e contenção do que transborda naturalmente. A festa natalina é o leitmotiv para a viagem memorialística da personagem. Ao fugir da rotina presente, ele se depara com o passado com suas diferenças e encantos: "Parecem dias tão distantes que mal as sinto no meu cotidiano atual". Ele evoca esse "período rubro" como "melancolia vermelha", que devassa o tempo, cortando-lhe os pulsos. E essas lembranças não cortariam o momento repetitivo da festividade? O passado não quebraria a rotina do momento presente, revelando o frescor da origem? Certas coisas do passado causam-lhe incômodos. A imagem do cemitério e dos túmulos são fantasmas, a falta de pessoas que já partiram. O lirismo do conto é encantador: "Definitivamente, o Natal é vermelho, em meus olhos de todos os dezembros".

No conto social "Rua", relembrando nosso período de sombra que ainda nos assola, a ditadura militar, temos a morte covarde da personagem amada do narrador-personagem. Num jogo de simetria e dessimetria, a rua vai ganhando contornos simbólicos e metafóricos ao longo desse conto admirável por sua beleza em meio o caos social e político. Ele diz: "...tanta gente desaparecida naqueles tempos de sombra". Saindo do político-social e adentrando o especificamente literário, temos em "Ela, a ideia", um verdadeiro estudo sobre o fazer poético. As ideias são personificadas e metaforizadas, ganhando um sentido alegórico. O trabalho literário é de busca, de procura das ideias, que se escondem de nós. Podemos nos lembrar aqui de um Drummond, com sua luta pelas palavras, ou um Gullar, com sua "luta corporal", onde a ideia surge a partir de uma guerra, de um esforço descomunal.

Igor Fagundes, grande ensaísta e poeta, professor da UFRJ, retomando Nietzsche nos fala sobre os elementos dionisíacos e apolíneos. É preciso domar as palavras para não deixar que elas transbordem no voo e no caos. Elas precisam ter sentidos, a concretude do pouso, e isso Ulhoa faz magistralmente na sua escrita. Ele é um domador do tropel dos cavalos, dando-lhes o freio necessário. O desejo de ultrapassar as medidas é contido pela matematização e ordenamento das palavras certeiras. A exatidão apolínea se conjuga, dando as mãos ao jorrar das palavras dionisíacas. Portanto, é a partir de um processo de seleção e combinação das palavras que tal esquema é possível na obra maravilhosa deste escritor que encantará o leitor com suas narrativas repletas de literariedades e realidades, unindo a tessitura literária ao nosso mundo circundante. Assim, o real e o imaginário se dão as mãos nos seus contos inventivos e imaginativos, mas que tocam o chão de nossa realidade que não foge aos ditames de sua escrita inaugural.

 

 

"Outros tantos", contos. Autor: Flávio Uchoa Coelho.. Editora Penalux, 198 págs., R$ 38,00, 2019.

Disponível em:

https://www.editorapenalux.com.br/loja/outros-tantos

E-mail: [email protected]

 

 

 

A resenhista

Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: "40 poemas" e "Painel". "Oferta" é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro "Dormindo no Verbo", pela Editora Penalux.

 

Contato: [email protected]

 

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