Praça Roosevelt, centro de São Paulo. Foi lá que os músicos paulistanos fizeram seu calçadão de Ipanema. Em bares e boates, a Bossa Nova ganhou vida em uma terra que fora chamada de túmulo do samba.
A Bossa Nova também encontrou sua praia aqui em São Paulo. Quem não viveu as décadas de 50 e 60 vai ter alguma dificuldade em acreditar, mas o cantinho do movimento era a Praça Roosevelt, no centro da Cidade.
O local, que desde a década de 80 vive um processo acentuado de degradação, abrigava os points mais freqüentados pelos artistas e amantes daquele novo jeito de fazer música. Casas como a Baiúca, Bon Soir, o Stardust (em sua primeira versão), Farneys (propriedade do cantor Dick Farney - que depois se transformaria no Djalmas) e o bar Chicote compunham o cenário da efervescente Praça Roosevelt.
Eram nessas boates e restaurantes que o banquinho e violão acontecia em Sampa. Na Baiúca, por exemplo, era comum assistir a shows de Johnny Alf e Dick Farney. Foi nessa casa que o Zimbo Trio, o grupo mais representativo da Bossa paulista, se formou. Teria sido também na Baiúca que Vinicius de Moraes soltou a famosa sentença nos ouvidos do pianista Johnny Alf: "São Paulo é o túmulo do samba".
Entre o final dos anos 50 e o começo dos 60, a Baiúca, que era uma espécie de piano bar e restaurante (sem pista de dança), vivia lotada. "Tinha que morrer um para outro poder entrar", brinca o ex-caixa da Baiúca, Renato Orbetelli, 60 anos.
"O clima da Baiúca era incrível. A música era sensacional e a comida, nem me fale. Tinha um filé à Chateaubriand (com molho mostarda) que era imbatível", diz Rubinho, 75 anos, baterista fundador do Zimbo Trio. "Os melhores estavam na Baiúca. Tudo aconteceu lá dentro", completa o lendário baixista Sabá, 84 anos, que na época acompanhava Johnny Alf.
Por causa do movimento na Baiúca, José Renato Romano, 63 anos, abriu um salão para cortar o cabelo dos fãs de Bossa Nova que freqüentavam o lugar. "Foi um período de ouro. A Praça Roosevelt era linda, não tinha violência, não tinha sujeira. Só charme e música", lembra Renato.
O barbeiro continua na Praça Roosevelt. "As coisas mudaram muito. Ainda corto o cabelo do pessoal daquela época. Se não fossem por esses clientes... Tenho muita saudade daquele tempo", comenta Renato. Para o barbeiro, o maior exemplo de como as coisas mudaram na Praça Roosevelt foi o destino do próprio Baiúca. "Hoje, onde existia o Baiúca, foi instalado um supermercado. Nada contra, mas nada a ver com o espírito da época."
Mais sorte do que a Baiúca teve o Farneys, que nos anos 60 virou Djalmas. Hoje no local existe um simpático bar chamado Papo, Pinga e Petisco. Seu proprietário, Esdras Vassalo, conhecido como Doca, manteve algumas características do bar original.
"Principalmente o espírito", garante Doca, que nos anos 50 e 60 também foi proprietário da boate Cave, na Rua da Consolação, conhecida por abrigar artistas da Jovem Guarda.
A importância do Djalmas, atual Pinga, Papo e Petisco, é fácil de entender. Foi lá que, no dia 5 de agosto de 1964, Elis Regina fez seu primeiro show na Cidade. "Muitos fãs da Elis vêm até o bar. É emocionante. Tento preservar a memória do lugar e da Praça Roosevelt. Quem sabe um dia a gente consegue levantar esse pedaço da Cidade outra vez", disse Doca. "Eu só queria que a Maria Rita (filha de Elis) viesse aqui uma vez. Será que ela conhece essa história?", pergunta.
As cantoras Claudete Soares e Alaíde Costa também foram duas expoentes da Bossa Nova na Praça Roosevelt. "Deixei o Rio porque lá já tinha a Nara Leão. O espaço já estava ocupado. Em São Paulo, eu e a Bossa fomos bem recebidas", conta Claudete. "O ambiente da praça era propício. Parecia que todo mundo gostava e entendia de música por lá. Em qualidade musical, mesmo em se tratando de Bossa Nova, São Paulo nunca ficou atrás do Rio de Janeiro. A Praça Roosevent foi um lugar inesquecível", completou Alaíde Costa.
O musicólogo e crítico de música Zuza Homem de Mello também guarda boas lembranças sobre o lugar. "A Praça Roosevelt, a Baiúca, o Djalmas e todas aquelas casas eram redutos de boa música. Todo mundo que era relevante para a Bossa Nova aqui em São Paulo passou por lá. Os músicos e o público eram respeitados. Tudo era de muito bom gosto. A Praça Roosevelt tinha música na veia."
Se os bons tempos da Praça Roosevelt podem voltar, ninguém é capaz de afirmar. Mas, a partir do mês de maio, o local irá passar por uma reforma profunda. A expectativa é de que, em dez meses, os trabalhos estejam concluídos.
A praça vai ganhar 70 árvores e, provavelmente, um telecentro. Além disso, fala-se na construção de um novo teatro e até de um cachorrodrómo. A reforma vai custar R$ 12 milhões. Os estacionamentos, um supermercado e um centro da GCM estão sendo retirados do local. Os recursos para a reforma vêm do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Sobre a expectativa de ver a Praça Roosevelt brilhando novamente, Zuza é pessimista. "Não. Não dá mais. Hoje aquele lugar nem pode ser mais chamado de praça. Quem viveu aquele período viveu. O trem passou e quem pegou, pegou".
A bossa nova é também de São Paulo
A capital paulista foi onde o novo estilo encontrou pela primeira vez o sucesso. Uma das mais evidentes provas de que São Paulo não é o túmulo do samba está no fato de que foi em Sampa que, pela primeira vez, a bossa nova alcançou as paradas de sucesso e teve grande visibilidade. Sim, foi o público paulista, antes de qualquer outro do mundo, que primeiro avalizou a bossa nova. Isto aconteceu no fim de 1958, com o lançamento em São Paulo do single de João Gilberto que trazia de um lado Chega de Saudade, de Tom e Vinicius, e, do outro, Bim bom, do próprio João - primeiro disco dele na gravadora Odeon.
Ao longo do tempo, cristalizou-se uma visão que trata a bossa nova como um fenômeno carioca quando, na verdade, esta sonoridade expressa uma cultura musical de todo o Brasil, portanto, patrimônio nacional e agora universal. Criado por um baiano que morava no Rio, o novo estilo era, no início, restrito a jovens músicos que se reuniam em apartamentos da zona sul carioca - todos encantados com João Gilberto e procurando imitá-lo. Essa turma poderia crescer com a chegada daquele single trazendo Chega de Saudade.
Na época, o lançamento de um artista carioca ou residente no Rio se dava primeiramente na sua praça e, só mais tarde, em São Paulo. E vice versa. As duas principais metrópoles do país eram ainda muito distantes entre si e, em conseqüência, havia uma profusão de ídolos locais, cantores muito conhecidos em um estado e praticamente desconhecidos no outro. Por isso, o disco do novato João Gilberto foi lançado inicialmente no Rio, onde a lógica indicava maior chance de sucesso.
A onda que se ergueu do rádio
A Rádio Eldorado aproveita os 50 anos da Bossa Nova para realizar uma grande mostra sobre o movimento na Bienal Há 50 anos, assim como a Bossa Nova, surgia a Rádio Eldorado. Foi também há 50 anos, em uma atitude que desafiava a sociedade da época, que a rádio transmitiu pela primeira vez a música Chega de Saudade na voz de João Gilberto. As coincidências não param por aí. A música Bim Bom, também de Gilberto, era usada como prefixo pela emissora. A rádio que surgiu no rastro da Bossa Nova decidiu comemorar seu aniversário neste ano dando de presente para São Paulo a exposição Bossa 50.
A mostra ficará aberta ao público do dia 13 de julho a 24 de agosto de 2008 e será multidisciplinar. Fotos, músicas, filmes, capas de discos e roupas da época dividirão o mesmo espaço no Pavilhão da Bienal. O local não foi escolhido por acaso. "Por ter sido projetado por Oscar Niemeyer, o prédio tem tudo a ver com a Bossa Nova", diz o coordenador musical da Rádio Eldorado, Rogério Chiocchetti.
A exposição será uma verdadeira volta ao passado e em todos os espaços a música ambiente será temas da Bossa. Além disso, estarão disponíveis vários fones de ouvido onde todos poderão ter acesso a uma seleção musical com os primeiros registros do movimento até as produções atuais.
Sob a curadoria do estilista mineiro Ronaldo Fraga - que no passado criou uma coleção inteira em homenagem à Nara Leão - serão expostas criações exclusivas e pesquisas inéditas sobre a influência da Bossa Nova nas estampas, vestidos, desenhos e acessórios.
Da moda para o design, Charles Gavin, do Titãs, traz para a exposição sua pesquisa sobre capas de disco. "Os discos ficarão expostos como se fossem quadros. São LPs memoráveis de uma arte que marcou época", diz Chiocchetti.
Fernando Faro com toda a sua experiência à frente do programa Ensaio, na TV Cultura, disponibilizará seu acervo de entrevistas memoráveis com personalidades como Vinícius de Moraes, Tom Jobim e Nara Leão. Além disso, videomakers criarão clipes para os sucessos bossa-novistas.
Fotos, fotos e mais fotos. Do acervo da Agência Estado, um dos maiores do País, virão imagens dos principais protagonistas da Bossa Nova . São flagrantes, fotos históricas e poses, que pela primeira vez estarão disponíveis para o público.
O projeto conta com um propósito educativo. Como a entrada é gratuita, atividades lúdicas e visitas guiadas serão organizadas para apresentar o movimento sessentista para os mais jovens.
"Queremos materializar esta celebração e perpetuar o estilo musical para as novas gerações", explica a diretora da Rádio Eldorado, Miriam Chaves.
Walter Caetano Costa
Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter