por Fernando Soares Campos
Janeiro de 1969. Eu contava lá com os meus 19 anos de idade. Foi nesse período que me apresentei a bordo do Submarino Bahia (S12) a fim de me incorporar à tripulação como marinheiro do serviço de máquinas. Como em todas as unidades militares da época, no Bahia havia diversos "secretas" (era como o pessoal denominava os agentes do CENIMAR - Centro de Informações da Marinha). Em qualquer setor de bordo, podia-se identificar pelo menos um deles.
Eram, em geral, elementos do quadro subalterno, os quais faziam questão de exibir suas relações com oficiais de alta patente que os indicavam para aquelas funções de alcagüete. Na verdade, os "secretas" não passavam de colaboradores voluntários dos serviços de informação. Em troca dos seus préstimos, invariavelmente conseguiam transferência para servir em unidades de suas preferências.
Naquela época, momento em que o golpe militar havia se consolidado recentemente, através do Ato Institucional nº 5 (AI-5), um sargento meu amigo, ali, entre as fainas de manutenção dos velhos Fairbanks Morses, me contava sobre a atuação do cabo Anselmo à frente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB).
Cabo Anselmo transformara-se no mais famoso agente da repressão na Armada. No entanto sua atuação se dera sob o disfarce de um agitador a serviço das entidades de esquerda. Era um elemento infiltrado entre sindicalistas e estudantes, auxiliando o CENIMAR a monitorar os movimentos sindicais e estudantis. E era disso que o pessoal se lembrava.
Alguns se referiam a ele imprimindo um tom de desprezo; outros falavam de seus liderados tratando-os com jocosidades, considerando-os elementos ingênuos, inocentes úteis; todos, porém, concordavam que o cabo Anselmo não passava de um oportunista, um indivíduo sem convicções ideológicas, tratando-se tão-somente de um pau-mandado a serviço das forças de repressão, um elemento sem vontade própria, movido por interesses pessoais menores.
Cabo Anselmo atuava como um agitador, agia no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, insuflando os marinheiros à indisciplina. Distribuía panfletos nas unidades militares, o que, por si mesmo, já seria suficiente para que todos desconfiassem dele. É inconcebível que um militar subalterno pudesse agir daquela forma sem o consentimento de autoridades superiores. E o líder dos "grumetes" fazia propaganda "revolucionária" nas dependências do maior complexo de instituições da Marinha de Guerra do Brasil (o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro), sem ser importunado, sem sofrer represália ou qualquer tentativa de obstrução de sua panfletagem exceto alguns poucos casos em que a "repressão" e "punição" serviram apenas para lhe conferir aspectos de agente do "comunismo ateu".
As eventuais punições que sofrera com base no regulamento interno tinham como propósito disfarçar as relações de servilismo do cabo Anselmo com a oficialidade do CENIMAR. Ele sofreu duas "punições de prisão rigorosa" por 10 dias em cada aplicação da pena. De acordo com o regulamento interno da Marinha, com mais uma punição dessas, ele seria automaticamente desligado do serviço militar (praticamente uma expulsão). E isso sempre foi fácil aplicar. Qualquer tenente que tivesse interesse em demitir um marinheiro perseguia seu desafeto e, com pouca sutileza, encontrava motivos para enquadrá-lo e enviá-lo para audiência de julgamento de sua infração, arbitrada pelo comandante da unidade.
Em pouco tempo de atuação, cabo Anselmo já se movimentava com muita habilidade e conhecimentos nos meios sindicais e estudantis, transformando aquela associação de marinheiros lá do CIAW em uma instituição parceira de legítimos movimentos da esquerda militante. No dia 27 de março de 1964, a AMFNB, sob a liderança de cabo Anselmo, provocou a paralisação de parte das atividades da Marinha. Os marinheiros amotinados recusaram-se a reassumir seus postos de trabalho.
Foram presos em um quartel do Exército, porém foram inexplicavelmente soltos, poucas horas depois, e saíram em barulhenta passeada pela cidade do Rio de Janeiro. Certamente os militares agaloados poderiam ter impedido que o movimento "insurgente" assumisse aquele vulto, pois conheciam seus movimentos desde o princípio, quando a proposta da AMFNB se limitava a proporcionar atendimento social e recreativo aos seus associados. A entidade era dirigida por disciplinados marinheiros, os quais, a exemplo do próprio cabo Anselmo, eram, em geral, elementos protegidos de certos oficiais graduados, do contrário não teriam oportunidade de criar qualquer núcleo de defesa dos próprios direitos dentro das instalações militares (a AMFNB não tinha sede própria, funcionava nas dependências do Centro de Instrução Almirante Wandenkolk - CIAW).
Há quem acredite que cabo Anselmo mudou de lado quando voltou do exílio (Uruguai e Cuba) em 1970. Engano. Na verdade, ele era, desde o princípio de sua atuação, um agente infiltrado nos movimentos populares que precederam o golpe militar.
A primeira prisão de cabo Anselmo, em 64, no momento da investida dos militares contra um governo legal e democraticamente constituído, não passou de um jogo de cena dos serviços de informação. E sua fuga da cadeia não foi senão mais uma etapa desse jogo.
Veja que eu cheguei a bordo do submarino em janeiro de 1969 (depois de um ano de curso na Escola de Aprendizes Marinheiros da Bahia), e, naquela ocasião, os mais antigos já o tratavam como traidor (à boca pequeníssima, claro). Também a sua prisão pela equipe do delegado Sérgio Fleury (não se sabe como ocorreu), pouco tempo depois de sua volta do "exílio", foi, sem dúvida, mais uma armação dos aparelhos repressores, a fim de legitimá-lo como membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e viabilizar a continuação de seu papel como delator.
O golpe militar que depôs o presidente João Goulart, usando tanques de guerra, jornais, emissoras de rádio e tevê e procissões de beatas, foi articulado com muita antecedência. Os movimentos golpistas começaram mesmo antes de Goulart sentar-se na poltrona presidencial, em 7 de setembro de 1961. Os conspiradores foram assessorados por fontes altamente qualificadas. No apoio logístico, contaram com a vasta experiência da espionagem ianque: sabotagem, tortura física e psicológica, propaganda, mercado, apoio financeiro, colonialismo, imperialismo, enfim, tudo que houvesse necessidade para conter o avanço do comunismo na América, que, para os golpistas, já contava com um péssimo exemplo: Cuba.
O apoio dos Estados Unidos ao golpe de 64 recebeu o nome de "Operação Brother Sam". No comando da operação, estava o embaixador Lincoln Gordon, e, em atividade, os agentes, que chegavam travestidos de padre, pastor, jornalista, executivo, ou mesmo de simples turista.
Entretanto a singela insatisfação pessoal não constitui argumento suficiente para se executar um golpe de Estado. Precisa-se de "motivos" que justifiquem uma ação dessa grandeza. Os agentes da CIA e os conspiradores daqui e dalhures sabem muito bem que os autóctones entreguistas necessitam de "agasalhos" para aquecerem as suas glaciais consciências.
Em 64, a "ameaça comunista" fez o papel de psicotrópico com efeitos sedativos, calmantes, estimulantes, antidepressivos... uma verdadeira panacéia, a fim de que os militares brasileiros fizessem "revolução" (num coquetel psicotrópico desses, deve ser acrescentada vitaminas morais). O apoio logístico também contou com uma esquadra dos Estados Unidos, colocada on standby para o caso de as tropas brasileiras não darem conta do recado - o socorro emergencial.
O golpe foi efetivado, o Brasil mergulhou num dos períodos mais tristes de sua História. Muitos dos que lutavam contra a sanguinária ditadura que se instalou aqui, abaixo do Equador, tombaram, foram assassinados.
Agora tomamos conhecimento de que o cabo Anselmo quer ser indenizado por "perseguição política" que teria sofrido durante a ditadura civil-militar instaurada em 64, da qual ele próprio foi um dos mais ativos agentes. José Anselmo dos Santos impetrou pedido de reparação econômica na Comissão Especial de Anistia do Ministério da Justiça (Processo nº 2004.01.42025), o que poderá lhe render uma generosa pensão e polpuda indenização.
Pagaremos a conta deixada pela repressão?
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