por José R. Bessa Freire
A escolha entre Sérgio Massa e Javier Milei dependeria de forças sobrenaturais. Compreendi isso ao assistir em Buenos Aires o último debate entre os dois candidatos, em companhia do jornalista Sérgio Kiernan e do escritor Guillermo David, enquanto degustava empanadas salteñas entre goles de vinho e ouvia os comentários de ambos, que são autores de livros sobre a vida política argentina. Não podia haver melhor arquibancada para ver o jogo.
Delíriios
“Delírios Argentinos. Las ideas más extrañas de nuestra política” do portenho Kiernan ironiza, com humor, as desvairadas fantasias políticas da história de seu país, “o disparate empacotado com doses desiguais de solenidade, que provocam o riso incrédulo do leitor”, como sinaliza Andrew Graham-Yooll, autor do prólogo. Será que isso aconteceu mesmo? Incrível, mas aconteceu sim.
Seu amigo Guille, nascido em Bahía Blanca, escreveu “El puchero misterioso: plagios, simulacros, embustes y otros ademanes peronistas”. Nesta misteriosa “panela de sopa”, cabem histórias fantásticas como a chamada telefônica para Buenos Aires:
- Alô! Quem fala?
- Jorge.
- Que Jorge?
- El Papa, boludo.
Não. Não era o fantasma de Jorge Luís Borges morto em 1986. Era outro Jorge, o Bergoglio, o Papa Francisco, acusado por Milei de representar Lúcifer aqui na terra, de ser comunista, de estar sempre do lado do mal e de não entender a Bíblia. Em outro relato, Guille descreve a invenção de “uma máquina analógica para detectar peronistas” destinada a medir o grau de lealdade a Peron através de cartões perfurados.
Essas histórias inacreditáveis inspiradas em fatos reais são café pequeno diante das conversas de Milei com seus cinco cães com quem dorme todas as noites. Pagou 50.000 dólares para clonar o seu “filho” de quatro patas morto em 2017, que lhe deu quatro “netos”. Fez isso não por amor a cães, já que despreza vira-latas de rua e perros callejeros, mas por se tratar de mastins de raça inglesa com quem fala e de quem recebe conselhos e orientações na língua cachorrês.
Com tais delírios, o sobrenatural se torna tão corpóreo, palpável e familiar, que o cronista brasileiro Nelson Rodrigues, em outra situação, chegou a batizá-lo com o sobrenome Almeida. O Sobrenatural de Almeida, personagem de suas crônicas futebolísticas, nos sugere a existência de um hermano argentino, o Sobrenatural López de Jujuy, que poderia muito bem fazer parte da exposição "Bestiario Nacional – Criaturas del Imaginario Argentino" organizada pela Coordenação Cultural da Biblioteca Nacional dirigida por Guillermo David.
Desfilam nesta exposição duendes, monstros, pássaros azarentos, aves agourentas, figuras míticas defensoras da flora e fauna e outros personagens da cultura popular, alguns deles compartilhados com o Brasil como o Curupira, o Lobisomem, a Mula Sem Cabeça e tantos outros seres fantásticos que teceram o vínculo entre a natureza, o sagrado e o mundo humano e alimentaram temores coletivos ao longo de muitas gerações.
- Os seres sobrenaturais argentinos somos nós, nossa argentinidade está feita dessas criações fabulosas dos povos originários, dos escravizados negros vindos da África e até dos conquistadores espanhóis e dos imigrantes de vários países – escreveu Ana Maria Shua para o Bestiário Nacional.
Embora a industrialização e o chamado “progresso” estejam afugentando esses personagens míticos, que perderam assim o caráter assustador de outras épocas, alguns deles foram ressuscitados por Javier Milei para aterrorizar a Argentina e a América. A realidade supera a ficção.
Filho de Norberto Horácio, um humilde motorista de ônibus e de Alicia Liján, dona de casa, Javier Milei demonstrou o valor que dá à família ao confessar que nunca visita seus pais, “que para mim é como se estivessem mortos”. Seguidor do Coiso e do Trump, ele considera o aborto um crime mesmo em casos de estupro, nega o aquecimento global “inventado pelo marxismo cultural” e promete acabar com o Ministério da Mulher, se eleito.
O Peruca, assim é conhecido por seu penteado esdrúxulo, discrimina o movimento LGBT, considera a justiça social “um roubo aberrante” e afirma que “as desigualdades sociais são naturais” e que vai valorizar “o espírito empresarial e o sucesso individual”. Usa linguagem chula, como quando chamou o prefeito de Buenos Aires de “esquerdista de merda, careca nojento”, que deve ser “esmagado politicamente”. Esse filme, os brasileiros já vimos em outra língua.
Enfim, com Milei presidente, a Argentina viverá o conto La Casa Tomada de Júlio Cortázar, ocupada gradualmente por intrusos invisíveis e fantasmagóricos, que obrigam seus moradores a abandoná-la e a jogar a chave no esgoto para ninguém mais lá entrar. Ou como Bestiário, outro conto do mesmo autor protagonizado pela jovem Isabel e seu primo, presos na residência de verão com medo de um tigre que por lá rondava e que, no final, devora o dono da casa.
Milei concorreu com várias criaturas do imaginário argentino: o Oturunco ou Tigre Capiango - homem que tem pacto com o diabo e de noite se transforma em onça, despedaça suas vítimas com suas garras e rouba seus pertences. O Basilisco, animal descrito como um verme, com rabo de serpente e asas e patas de galinha, que envenena os incautos. Ou o Huecuvú, gênio do mal, que contamina os pastos, intoxica os animais e se alegra destruindo tudo aquilo que o homem constrói.
A vitória de Milei foi surpreendente em um país com tradição de luta, cuja capital tem 365 livrarias que contam muitas histórias, uma delas vivida por meu amigo Guille. Uma noite, ao voltar para sua residência no bairro de Caballito, encontrou na frente do seu edifício um jovem casal de moradores de rua deitados em um colchão. Chamemos o rapaz de Júlio e a menina de Aurora para homenagear dois cronópios porretas.
Os dois fizeram amizade com Guille, que lhes servia toda noite uma quentinha. Um belo dia o escritor, que já viveu com o povo Baré do rio Negro sobre quem escreveu, chega carregado de livros comprados no sebo do Parque Centenário, ali perto. Júlio pergunta:
- Mestre, aí tem livro de poesia? Pode me emprestar?
Ele queria uma quentinha para a alma. Ganhou de presente “Veinte poemas de amor y una canción desesperada” e, com a voz embargada de emoção, começou a recitar os versos de Neruda para Aurora: “Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido”. Depois cantou baixinho “Tonada del viejo amor” de Jaime Dávalos e Eduardo Falú: “No tengo miedo al invierno / com tu recuerdo lleno de sol”. Com ajuda de Guille, o casal organizou uma pequena biblioteca ali na rua, onde permanece até hoje.
Um país com povo tão letrado, onde um morador de rua curte literatura e lê poesia para sua amada, não pode eleger Milei. Não pode.
Um país que condenou 1.200 torturadores, um deles, o general Jorge Videla, morto não no campo de batalha, mas sentado no vaso sanitário da prisão com um rolo de papel higiênico na mão, não pode atentar contra a democracia. Não pode.
Não pode eleger uma besta-fera um país que desapropriou o centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da Escuela Mecánica de la Armada (ESMA) e o devolveu à população em forma de museu. Que o Sobrenatural Lopez de Jujuy não permita que esse Espaço da Memória e Direitos Humanos, agora Ex-Esma, seja transformado, como Milei prometeu, em um Parque de Diversão ou até em coisa pior: voltar a ser o que era.
P.S. – Em Buenos Aires para participar de um seminário sobre Darcy Ribeiro, visitei a Ex-Esma e de lá sai com o coração na mão. Ambos – o evento e a visita – merecem crônica à parte.
Referências:
Guillermo David: El puchero misterioso: plagios, simulacros, embustes y otros ademanes peronistas. B. Aires. Meridión. 2021.
Sergio Kiernan: Delírios Argentinos. Las ideas más extrañas de nuestra política. B. Aires. Marea Editorial. 2006.
Nelson Rodrigues. A Pátria em chuteiras. Novas crônicas de futebol. São Paulo. Companhia das Letras. 1994.
Biblioteca Nacional Mariano Moreno. Bestiario Nacional. Criaturas del Imaginario Argentino. B.Aires. BN. 2023
Júlio Cortazar (1951) Bestiário. Rio. Nova Fronteira. 1986 (Tradução de Remy Gorga)
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José Ribamar Bessa Freire é doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2003). É professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de mestrado e doutorado, e professor da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Faculdade de Educação. Ministra cursos de formação de professores indígenas em diferentes regiões do Brasil, assessorando a produção de material didático.
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