Nuclear: se fosse somente uma questão de preconceito...

Carta Aberta ao Sr. Robson Braga de An­drade, pre­si­dente da Con­fe­de­ração Na­ci­onal da In­dús­tria 

Se­nhor pre­si­dente, ti­vemos a opor­tu­ni­dade de ler seu ar­tigo no Cor­reio Bra­zi­li­ense de 7 de fe­ve­reiro úl­timo, de tí­tulo Energia nu­clear: um de­bate ne­ces­sário, no qual nos diz que não se uti­liza mais a energia nu­clear em nosso país, como seria de­se­jável, por uma questão de pre­con­ceito, algo já su­pe­rado no resto do mundo, se­gundo afirma.
 
Esta Carta Aberta está sendo es­crita para lhe ex­primir a per­ple­xi­dade que seu ar­tigo causou a todos que se opõem, no Brasil, ao uso da energia nu­clear para pro­duzir ele­tri­ci­dade. Sa­bemos que a grande mai­oria dos bra­si­leiros está ex­tre­ma­mente de­sin­for­mada sobre esse as­sunto, mas é as­sus­tador cons­tatar que o mesmo se passa com pes­soas com altas res­pon­sa­bi­li­dades na so­ci­e­dade, como é o seu caso. 

De­sin­for­mação ge­ne­ra­li­zada

Na ver­dade a di­mensão téc­nica dessa questão a torna par­ti­cu­lar­mente ina­ces­sível. Muitos de nós, entre aqueles que não se re­la­ci­o­navam pro­fis­si­o­nal­mente com o tema, ti­nham um co­nhe­ci­mento muito li­mi­tado a res­peito, e só pro­cu­raram saber mais de­pois que foram "acor­dados" para os pro­blemas do nu­clear, cau­sados por tra­gé­dias que o mundo co­nheceu. Mesmo o de­sastre ocor­rido há quase 30 anos aqui em nosso país, em Goi­ânia, com um apa­relho de ra­di­o­te­rapia aban­do­nado, foi co­nhe­cido su­per­fi­ci­al­mente e está sendo pouco a pouco es­que­cido da po­pu­lação em geral, apesar dos so­fri­mentos que causou e ainda causa. 

E é essa de­sin­for­mação ge­ne­ra­li­zada que faz com que sejam fa­cil­mente aceitos - ao que pa­rece até pelo pre­si­dente da CNI - três mitos di­fun­didos pelos que tiram pro­veito desse "ne­gócio": pro­duzir ele­tri­ci­dade a partir da energia nu­clear é a forma de fazê-lo mais ba­rata, mais limpa e mais se­gura que existe.  

Seria im­por­tante, pre­si­dente, que pe­disse a seus as­ses­sores que lhe for­neçam dados reais sobre o que está acon­te­cendo com cen­trais nu­cle­ares no mundo de hoje e o que se dis­cute a res­peito de suas van­ta­gens e des­van­ta­gens. 

Sabe-se, por exemplo, que a in­dús­tria nu­clear atu­al­mente já não se ex­pande. Pelo con­trário, ela vem tendo uma acen­tuada queda (tí­tulo, aliás, de um dos li­vros dis­po­ní­veis a res­peito (1)) na sua par­ti­ci­pação nas ma­trizes elé­tricas dos di­fe­rentes países. Esse pro­gres­sivo de­clínio é cla­ra­mente cons­ta­tado pelo World Watch Ins­ti­tute (2), or­ga­ni­zação de pes­quisa se­diada nos Es­tados Unidos, com co­la­bo­ra­dores de 25 países, que pu­blica a cada dois anos, desde 1992, um mi­nu­cioso re­la­tório sobre o es­tado dessa in­dús­tria, ela­bo­rado por es­pe­ci­a­listas de alto nível dos Es­tados Unidos, da França e da In­gla­terra. 

No mo­mento mesmo em que esta carta es­tava sendo re­di­gida chegou uma in­for­mação - aliás pouco di­fun­dida ou res­trita aos meios es­pe­ci­a­li­zados - de que a Toshiba, do Japão, já não vai mais pro­duzir re­a­tores nu­cle­ares, para passar a se de­dicar so­mente à ma­nu­tenção dos exis­tentes e ao seu "des­co­mis­si­o­na­mento" (como é cha­mada a ope­ração de des­mon­tagem da­queles que atingem seu li­mite de idade). Note-se que a Toshiba com­prou a norte-ame­ri­cana Wes­tinghouse - uma das grandes pi­o­neiras da in­dús­tria nu­clear e que nos vendeu a cen­tral de Angra 1 - para cons­ti­tuir o maior grupo cons­trutor de re­a­tores do mundo. 

O se­nhor pre­si­dente deve pro­va­vel­mente se lem­brar de que um mo­vi­mento es­tra­té­gico desse mesmo tipo tinha sido feito pela Si­e­mens, em 2011, de­pois da ca­tás­trofe de Fu­kushima, ao mesmo tempo em que a Ale­manha, país em que essa em­presa tem sua sede, de­cidiu re­tirar a opção nu­clear de sua ma­triz ener­gé­tica. 

As ra­zões do de­clínio dessa in­dús­tria são as mais di­versas, mas talvez a mais im­por­tante es­teja li­gada a um dos mitos ci­tados acima, do baixo custo da ele­tri­ci­dade pro­du­zida por usinas nu­cle­ares. 

A de­sis­tência vi­et­na­mita

Os nú­meros desse custo se­riam muito mai­ores se nele fosse com­pu­tado também o do "des­co­mis­si­o­na­mento" (um valor e um tempo de du­ração apro­xi­ma­da­mente equi­va­lente ao de sua cons­trução) e o da cons­trução de de­pó­sitos de­fi­ni­tivos para "es­conder" re­jeitos como o com­bus­tível usado. E che­garia a ní­veis es­tra­tos­fé­ricos se fossem le­vadas em conta as des­pesas re­sul­tantes da ocor­rência de grandes aci­dentes - com der­re­ti­mento de re­a­tores, como os de Cher­nobyl e Fu­kushima. 

Nestes casos, torna-se ne­ces­sária a con­tri­buição de fundos in­ter­na­ci­o­nais porque elas são muito ele­vadas para um só país (como ocorreu com a Ucrânia, que 25 anos de­pois do aci­dente teve de cons­truir um enorme e ca­rís­simo "sar­có­fago", para co­brir o pri­meiro, com o qual se pre­tendeu pro­teger da ra­di­o­a­ti­vi­dade das ruínas de Cher­nobyl, que ti­nham co­me­çado a vazar). E essas des­pesas são tão ele­vadas que no Japão o go­verno está pres­si­o­nando a po­pu­lação eva­cuada das re­don­dezas das usinas aci­den­tadas a voltar às suas casas e - ina­cre­di­tável! - passar a "con­viver" com a ra­di­o­a­ti­vi­dade em ter­ri­tó­rios con­ta­mi­nados, com a ajuda de pro­gramas fran­ceses de re­e­du­cação, bem tes­tados em Be­larus, onde o mesmo pro­blema se co­locou.

De fato, cons­truir e operar cen­trais nu­cle­ares está se tor­nando hoje um in­ves­ti­mento pouco van­ta­joso. A di­mi­nuição do in­te­resse pelo "ne­gócio" nu­clear por causa dos custos foi ana­li­sada de forma muito com­pleta em re­cente ar­tigo - cuja lei­tura lhe seria útil - do editor da pu­bli­cação Nu­clear Mo­nitor, da Aus­trália (3). E seu autor com­pletou o ar­tigo al­guns dias de­pois, com mais dados sobre o que se passa com o nu­clear em di­fe­rentes países (4).

Até nos EUA - onde a cons­trução e a ope­ração de usinas nu­cle­ares foram en­tre­gues ao setor pri­vado, opção que o se­nhor acon­selha para o Brasil - essa ten­dência está se ve­ri­fi­cando. Nesse sen­tido, va­leria a pena ler também o ar­tigo "O Poder nu­clear está per­dendo di­nheiro a uma ve­lo­ci­dade as­sus­ta­dora", cujo autor edita um blog con­si­de­rado "in­dis­pen­sável" pelo New York Times (5). Será in­te­res­sante ve­ri­ficar se nossas fa­mosas em­prei­teiras, tão mul­ti­mo­dais, se in­te­res­sarão efe­ti­va­mente por as­sumir tal ne­gócio, se nosso Con­gresso se deixar levar pela pro­posta de pri­va­tizar o nu­clear - ainda mais em novos tempos, em que todos es­pe­ramos que se torne mais di­fícil "ga­nhar di­nheiro por fora".

Cer­ta­mente, foi esse tipo de cons­ta­tação que levou o Vi­etnã a de­sistir em no­vembro úl­timo de cons­truir suas duas pri­meiras usinas nu­cle­ares. É útil saber que o pri­meiro mi­nistro ja­ponês es­tava ne­go­ci­ando, quando ocorreu o aci­dente de Fu­kushima, um acordo com o Vi­etnã para lhe ex­portar usinas. Mas vendo de perto o que foi - e di­ríamos, está sendo - esse aci­dente, o país se tornou um fer­renho opo­sitor an­ti­nu­clear.

Pre­si­dente, o se­nhor de fato pre­tende que o Brasil entre num "ne­gócio" de que tantos estão saindo, cuja re­jeição se deve à mera questão de pre­con­ceito? 

O mito francês

A França, sa­bi­da­mente o país mais "nu­cle­a­ri­zado" do mundo (quanto ao nú­mero de cen­trais - 58 - em re­lação à po­pu­lação), pa­rece lhe causar a mesma ad­mi­ração in­ve­josa que têm por ela nossos nu­cle­o­cratas, porque 75% de sua energia elé­trica é pro­du­zida por cen­trais nu­cle­ares. Mas lá os dé­fi­cits são ab­sor­vidos pelo Es­tado, em ali­ança com grandes em­presas pri­vadas. E "sair do nu­clear" é o nome de um dos mais an­tigos mo­vi­mentos so­ciais fran­ceses, que traduz uma exi­gência que se afirma cada vez mais. 

O Es­tado francês as­sumiu essa ati­vi­dade em 1974 com o Plano Mes­smer - nome do então pri­meiro-mi­nistro - que previa a cons­trução de 80 re­a­tores até 1985 e 170 até 2000... Mas foi um Plano to­tal­mente im­posto, re­a­li­zado de­pois que esse país tinha con­se­guido en­trar no clube das na­ções pos­sui­doras da bomba atô­mica e cons­truir re­a­tores nu­cle­ares para pro­duzir plutônio (o com­bus­tível para bombas tes­tado pelos norte-ame­ri­canos em 1945 em Na­ga­saki, crime que se se­guiu ao de Hi­roshima). 

Para re­a­lizá-lo, o go­verno teve de passar au­to­ri­ta­ri­a­mente por cima de 400 fí­sicos nu­cle­ares e seu ma­ni­festo de pro­testo, que ga­nhou em três meses a adesão de mais quatro mil pes­qui­sa­dores de todos os meios ci­en­tí­ficos. Eles de­nun­ci­avam a forma como as de­ci­sões es­tavam sendo to­madas e apon­tavam para o pro­blema dos riscos, que se­gundo eles exis­tiam efe­ti­va­mente e es­tavam sendo mi­ni­mi­zados... Era já a pre­o­cu­pação com o ter­ceiro dos mitos que sus­tentam esse "ne­gócio": a se­gu­rança. Na opi­nião dos sig­na­tá­rios, o plano era pre­ma­turo e exi­giria uma grande dis­cussão na­ci­onal. 

Mas é in­te­res­sante notar que um dos mo­tivos do atual pre­si­dente francês de­sistir de dis­putar sua re­e­leição foi o de não ter cum­prido umas tantas pro­messas, como por exemplo a de baixar a por­cen­tagem a 50%. E um dos can­di­datos mais fortes para a es­colha de novo pre­si­dente já anun­ciou em alto e bom som que as­sume essa pro­messa e, ele sim, vai cumpri-la (com o que supõe an­ga­riar muitos votos). 

Na ver­dade, o go­verno paga hoje o preço de seus mé­todos an­ti­de­mo­crá­ticos, equi­va­lentes aos usados aqui pela di­ta­dura mi­litar quando co­meçou nosso pro­grama nu­clear: os custos estão au­men­tando enor­me­mente, es­pe­ci­al­mente de­pois de cada aci­dente ocor­rido, porque a se­gu­rança exige cada vez mais cui­dados e pre­cau­ções, com as normas que a pró­pria Agência In­ter­na­ci­onal de Energia Atô­mica - AIEA - or­ga­nismo li­gado à ONU criado para pro­mover o nu­clear... Se vê obri­gada a editar! 

O pro­blema do custo está cri­ando na França tantos pro­blemas que a em­presa es­tatal fran­cesa - a AREVA, que cons­truía usinas por lá e em todo o mundo (con­tra­tada in­clu­sive para nossa Angra 3) - só não faliu porque foi di­vi­dida pelo go­verno, que passou a cons­trução e ope­ração das usinas para outra es­tatal, a EDF (Élec­tri­cité de France), aci­o­nista ma­jo­ri­tária da pri­meira. E a EDF está se vendo em palpos de aranha (seu di­retor fi­nan­ceiro há pouco pediu de­missão por di­ver­gên­cias frente ao enorme pro­blema a en­frentar...) com dois ele­fantes brancos na mão: uma usina de ter­ceira ge­ração em cons­trução na pró­pria França (em Fla­man­ville) e outra igual na Fin­lândia (em Ol­ki­luono), ambas com seu enorme custo já tri­pli­cado. 

A de Fla­man­ville re­servou à EDF, no ano pas­sado, uma de­sa­gra­dável sur­presa: des­co­briram-se fa­lhas no aço do grande vaso de con­tenção em que é co­lo­cado o re­ator nu­clear, cri­ando talvez a ne­ces­si­dade de subs­titui-lo in­tei­ra­mente... Essa sur­presa nos atinge aqui no Brasil: as fa­lhas des­co­bertas ocor­reram também em 18 ou­tros re­a­tores fran­ceses (cujo fun­ci­o­na­mento teve de ser in­ter­rom­pido) e po­derão existir também em peças ex­por­tadas, como as tra­zidas para Angra 2. Ob­vi­a­mente, não foi pa­rada para ve­ri­fi­ca­ções como as peças da França - afinal de contas, es­tamos no Brasil. Ima­gi­nemos o pro­blema para a Co­missão Na­ci­onal de Energia Nu­clear e para a Ele­tro­nu­clear, com seu pre­si­dente en­vol­vido na Lava Jato! Será que pelo menos per­gun­taram al­guma coisa aos fran­ceses? 

Ou seja, se­nhor pre­si­dente, a França é o tipo de "caso" que seus as­ses­sores de­ve­riam es­tudar com cui­dado, para que o se­nhor não seja le­vado a pro­curar de­mons­trar que a in­dús­tria nu­clear está flo­res­cendo, com o exemplo do Reino Unido ter de­ci­dido cons­truir mais uma cen­tral nu­clear - e exa­ta­mente o mesmo EPR que está dando pro­blemas na França e na Fin­lândia. Não lhe dis­seram que a de­cisão in­glesa já passou por muitas idas e vindas? E que a es­tatal fran­cesa EDF, que irá cons­truí-lo, está sendo ques­ti­o­nada em seu pró­prio país por mais essa aven­tura? 

Fis­ca­li­zação séria no Brasil de Temer?

O pro­blema dos custos tem, por­tanto, que ser bem me­lhor equa­ci­o­nado. Mas de fato, se­nhor pre­si­dente, ainda que os custos in­ter­firam for­te­mente na re­par­tição dos re­cursos de que o país dispõe, é pre­ciso lhe dizer que a nós, ci­da­dãos e ci­dadãs - e o in­cluo nesse "nós" - in­te­ressa muito mais a re­a­li­dade por de­trás dos dois ou­tros mitos re­fe­ridos: o da lim­peza e o da se­gu­rança. As suas men­tiras sig­ni­ficam so­fri­mento para muitas ge­ra­ções. 

O mito quanto à energia limpa que ca­rac­te­ri­zaria o uso de usinas nu­cle­ares para pro­duzir ele­tri­ci­dade é fa­cil­mente des­mon­tável se con­si­de­rarmos que a con­tri­buição dessas usinas para o aque­ci­mento global não é so­mente a dos re­a­tores em fun­ci­o­na­mento. É pre­ciso levar em conta todo o ciclo nu­clear, ou seja, desde a mi­ne­ração do urânio até a cons­trução e ma­nu­tenção de de­pó­sitos dos re­jeitos das usinas, e todos os sis­temas de trans­porte que acom­pa­nham essas ati­vi­dades. 

E o nome "lixo atô­mico" dado aos re­jeitos é pouco ci­en­tí­fico, mas muito sig­ni­fi­ca­tivo - o pior deles sendo o com­bus­tível usado, que tem de ser pe­ri­o­di­ca­mente re­ti­rado das usinas (novas par­tí­culas ra­di­o­a­tivas cri­adas com a fissão do urânio nos re­a­tores e o plutônio em que parte dele se trans­formou, que pode ser bom para bombas atô­micas, mas leva 24.100 anos para me­tade de sua massa deixar de ser ra­di­o­a­tiva...). 

De fato, as usinas pro­duzem con­ti­nu­a­mente, com seu sim­ples fun­ci­o­na­mento, to­ne­ladas de um "lixo" do qual temos que manter muita dis­tância para não sermos "ir­ra­di­ados" (mi­lhares de vezes mais for­te­mente do que pelos apa­re­lhos de raios X que já pro­cu­ramos evitar ou pelas 19 gramas de césio 127 que tanto es­trago fi­zeram em Goi­ânia, em 1987). E os re­jeitos de alta ra­di­o­a­ti­vi­dade já "pro­du­zidos" nas usinas mundo afora, in­clu­sive no Brasil, estão tendo de ser per­ma­nen­te­mente res­fri­ados junto a cada uma das usinas exis­tentes, para não ex­plo­direm e dis­per­sarem-se no ar. Pos­te­ri­or­mente, devem ser es­con­didos "pela eter­ni­dade" em de­pó­sitos ca­rís­simos que se está "ten­tando" cons­truir em ou­tros países (5) - quando, em nosso país?. Enfim, suja-se nosso pla­neta in­de­le­vel­mente com ma­té­rias que le­varão até mi­lhões de anos para dei­xarem de emitir ra­di­a­ções. 

Como se vê, se­nhor pre­si­dente, o pro­blema dos custos e o da lim­peza já bas­ta­riam para con­cluirmos que se apro­xima da in­sa­ni­dade querer "re­forçar" nossa ma­triz ener­gé­tica com usinas nu­cle­ares. Deus nos salve dos in­ves­ti­dores russos e chi­neses que estão ten­tando con­vencer nossos "nu­cle­o­cratas" e em­pre­sá­rios de­sin­for­mados, como estão in­cri­vel­mente con­se­guindo, para nossa tris­teza, na nossa vi­zinha Bo­lívia. Mas o pior mesmo dos mitos é o ter­ceiro, o da se­gu­rança. A cons­ta­tação dos riscos das usinas nu­cle­ares foi, aliás, a prin­cipal razão para a Ale­manha de­cidir aban­donar com­ple­ta­mente essa opção ener­gé­tica.

Aprender com o que já deu er­rado

O mí­nimo bom senso já nos obriga a afirmar que não há obra hu­mana 100% se­gura. O que dizer então das usinas nu­cle­ares - essa so­fis­ti­ca­dís­sima e pe­ri­go­sís­sima ma­neira (seu pa­rente mais pró­ximo é a bomba atô­mica) que o ser hu­mano in­ventou de es­quentar agua até pro­duzir vapor em alta pressão, a girar tur­binas ge­ra­doras de ele­tri­ci­dade - que é na ver­dade o es­quema a que pode ser re­du­zida uma usina nu­clear. O se­nhor pre­si­dente da CNI teve no­tícia, evi­den­te­mente, dos aci­dentes de Cher­nobyl e Fu­kushima. O se­nhor acha que são muito poucos os aci­dentes e acre­dita nos de­fen­sores do nu­clear, que dizem ser pe­queno o nú­mero de ví­timas, porque pensam só na­quelas di­re­ta­mente atin­gidas pela ex­plosão das usinas? 

A questão é de fato muito mais com­pli­cada que a sim­ples pro­ba­bi­li­dade de aci­dentes nu­cle­ares, cha­mados mais pro­pri­a­mente de ca­tás­trofes (econô­micas, so­ciais, am­bi­en­tais). Suas con­sequên­cias são muito di­fe­rentes e muito mais graves do que as dos de­sas­tres na­tu­rais ou dos pro­vo­cados pelo homem ou suas má­quinas - como os aviões que des­pencam - em que se chora o luto dos que nele mor­reram e se toca a vida para a frente. 

Mesmo que a sua pro­ba­bi­li­dade possa ser con­si­de­rada mí­nima, um grande aci­dente nu­clear não afeta só o ter­ri­tório e as pes­soas à sua volta, mas todo um país pode so­frer seus efeitos e mesmo todo um con­ti­nente e du­rante muito tempo - como ocorreu na Eu­ropa in­tei­ra­mente co­berta pela nuvem ra­di­o­a­tiva que saiu de Cher­nobyl e levou cri­anças bra­si­leiras a cor­rerem o risco de in­gerir leite ra­di­o­a­tivo im­por­tado da Ir­landa...  

Não cabe apre­sentar ao se­nhor pre­si­dente a grande quan­ti­dade de dados de que se dispõe a res­peito de todos esses dramas - in­ten­ci­o­nal­mente es­con­didos para não criar pâ­nico. Seus as­ses­sores podem fa­cil­mente buscá-los, há muitas fontes dis­po­ní­veis. 
Busque dados fora do Brasil, já que aqui a po­de­rosa in­dús­tria nu­clear vem con­se­guindo impor seus mitos e co­optar até muitos de nossos jo­vens, des­lum­brados com os avanços tec­no­ló­gicos que pa­recem lhes dar po­deres di­vinos. Não se deixe en­ganar por pes­soas bem po­si­ci­o­nadas nas es­tru­turas do poder po­lí­tico e da pró­pria uni­ver­si­dade: os crí­ticos mais fe­rinos da opção nu­clear os chamam de "nu­cle­o­patas".

Mas seria útil lhe citar so­mente uma no­tícia bem re­cente vinda de Fu­kushima, onde di­a­ri­a­mente, há quase sete anos, mais de 7.000 tra­ba­lha­dores são usados para des­man­telar as usinas que ex­plo­diram e "limpar" a ra­di­o­a­ti­vi­dade das suas ruínas. A em­presa que as cons­truiu e faz esse tra­balho de­tectou que a massa em fusão a que se re­duziu um dos re­a­tores está atu­al­mente ir­ra­di­ando a in­crível dose de 530 Si­e­verts por hora (esta dose ma­taria uma pessoa em menos de um mi­nuto, e 10 Si­e­verts por hora teria efeito letal em uma hora). E a dose pode estar sendo maior, já que o acesso ao com­bus­tível fun­dido, que está afun­dando cada vez mais na terra, só é pos­sível por meio de robôs, mas estes der­retem ao se apro­xi­marem dele. Com esse nível de ra­di­o­a­ti­vi­dade, o que se prevê é que o tra­balho de "lim­peza", pre­visto para 40 anos, vá durar pelo menos 100 anos... En­quanto isso a água do lençol sub­ter­râneo está se mis­tu­rando com a agua do Oceano Pa­cí­fico... 

Bom senso, por favor

Por favor, caro pre­si­dente da CNI, pro­cure se in­formar mais um pouco sobre o que sig­ni­fica um único aci­dente nu­clear para o país em que des­gra­ça­da­mente ocorra. Não fa­lemos da eva­cu­ação ne­ces­sária de mi­lhares de pes­soas que perdem suas casas, suas terras, suas es­tru­turas de vida e de re­lação so­cial, suas pers­pec­tivas, nem dos enormes ter­ri­tó­rios con­ta­mi­nados que tem de ser in­ter­di­tados à pre­sença hu­mana. Ob­serve que aqueles que es­tudam os aci­dentes nu­cle­ares não se re­ferem a eles como algo que "ocorreu" na data em que deles se tomou co­nhe­ci­mento, mas como algo que "co­meçou" nessa data, e pros­se­guirá ao longo de muitos anos e muitas ge­ra­ções. 

Pro­cure saber um pouco mais sobre o que é e como age a ra­di­o­a­ti­vi­dade, como ela pode pe­ne­trar nos corpos para des­truí-los por dentro, e sobre as do­enças que pode curar se apli­cada com ex­tremo cui­dado, mas também todos os tipos de morte que pro­voca.

Se­nhor pre­si­dente, não é um pre­con­ceito que leva um nú­mero in­fe­liz­mente ainda muito li­mi­tado de bra­si­leiros a se oporem à cons­trução de Angra 3 (pro­jeto ainda mais pe­ri­goso porque ul­tra­pas­sado, ela­bo­rado nos anos 70 e não re­visto pelas nossas ir­res­pon­sá­veis au­to­ri­dades...) e também à am­pli­ação do parque nu­clear na­ci­onal.

O que nos mo­tiva não são nem op­ções ide­o­ló­gicas. O que nos move é o puro bom senso, que pro­cura se ali­mentar de uma busca con­tínua de in­for­mação. Não que­remos que o povo bra­si­leiro venha a viver a an­gústia de que hoje o povo francês nem gosta de falar. As au­to­ri­dades da se­gu­rança nu­clear da França já afirmam que nesse país é atu­al­mente pos­sível uma ca­tás­trofe, com tantos ve­lhos re­a­tores. Só falta saber onde e quando acon­te­cerá. 

Pe­dimos des­culpas pela imagem tosca: com o nu­clear os seres hu­manos abriram a jaula do diabo. Nem fa­lemos da bomba que pode ex­tin­guir nossa es­pécie. Pen­semos so­mente no cha­mado uso pa­ci­fico do nu­clear. Ao re­ceber com sua mu­lher Marie Curie o Prêmio Nobel de Fí­sica de 1903 pela des­co­berta do ra­dium, Pi­erre Curie já se per­gun­tava: a hu­ma­ni­dade es­taria pre­pa­rada para ma­ni­pular os se­gredos do átomo? 

14 de março de 2017.

Sig­na­tá­rios: 

Ayrton Fausto, so­ció­logo, membro da Co­missão Bra­si­leira Jus­tiça e Paz - CBJP-CNBB - Bra­sília

Carlos Alves Moura, Se­cre­tário Exe­cu­tivo da Co­missão Bra­si­leira Jus­tiça e Paz - CBJP-CNBB. - Bra­sília

Chico Whi­taker, Membro da Co­missão Bra­si­leira Jus­tiça e Paz - CBJP-CNBB, da 
Ar­ti­cu­lação An­ti­nu­clear Bra­si­leira e da Co­a­lizão por um Brasil Livre de Usinas Nu­cle­ares - Xô Nu­clear - São Paulo

Di­o­clécio Luz - Jor­na­lista, es­critor, es­tu­dioso da questão nu­clear - Bra­sília.

Heitor Sca­lam­brini Costa - Mo­vi­mento Ecos­so­ci­a­lista de Per­nam­buco - MESPE, membro da Ar­ti­cu­lação An­ti­nu­clear Bra­si­leira - Re­cife.

Jose An­tonio Mo­roni, fi­ló­sofo, co­le­giado de gestão do INESC - Ins­ti­tuto de Es­tudos So­ci­o­e­conô­micos - Bra­sília 

Maria Rosa Ra­velli Abreu - Pro­jeto Ci­dade Verde/Uni­ver­si­dade de Bra­sília, membro da Ar­ti­cu­lação An­ti­nu­clear Bra­si­leira e da Co­a­lizão por um Brasil Livre de Usinas Nu­cle­ares - Xô Nu­clear - Bra­sília

Mau­rício Xixo Jorge Pi­ra­gino - Di­retor Pre­si­dente da Es­cola de Go­verno e membro da Co­a­lizão por um Brasil Livre de Usinas Nu­cle­ares /Xô Nu­clear - São Paulo 

Moema Mi­randa, di­re­tora do Ibase - Ins­ti­tuto Bra­si­leiro de Aná­lises Sócio Econô­micas - Rio de Ja­neiro

Monge Shôjo Sato, res­pon­sável do Templo Shin Bu­dista Terra Pura, de Bra­sília

Oded Grajew - Con­se­lheiro da Rede Nossa São Paulo e do Pro­grama Ci­dades Sus­ten­tá­veis e Pre­si­dente do Con­selho De­li­be­ra­tivo da Oxfam Brasil - São Paulo.

Re­nato Pêgas Paes da Cunha. En­ge­nheiro, Co­or­de­nador Exe­cu­tivo do Gambá - Grupo Am­bi­en­ta­lista da Bahia, membro da Ar­ti­cu­lação An­ti­nu­clear Bra­si­leira - Sal­vador, Bahia 

Sylvia Chada, So­ci­e­dade An­grense de Pro­teção Eco­ló­gica - SAPÊ e membro da Ar­ti­cu­lação An­ti­nu­clear Bra­si­leira - Angra dos Reis. RJ 

Ta­kashi Mo­rita, pre­si­dente da As­so­ci­ação Hi­ba­kusha-Brasil pela Paz (As­so­ci­ação de Ví­timas da Bomba Atô­mica)

Zo­raide Vi­las­boas - As­so­ci­ação Mo­vi­mento Paulo Jackson - Ética, Jus­tiça. Ci­da­dania, membro da Ar­ti­cu­lação An­ti­nu­clear Bra­si­leira - Sal­vador, BA.

Fonte: Correio da Cidadania

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey