Rússia na Síria, semana 4: Sobre a Declaração de Viena

Eu diria que, pelo menos até aqui, a Rússia alcançou muitos importantes objetivos na intervenção na Síria. Mais importante, a intervenção russa na Síria forçou os EUA a aceitar que se realizasse uma conferência à qual todos os atores regionais, incluído o Irã, foram convidados. No final desses procedimentos, a conferência adotoudeclaração conjunta que postei, na íntegra.


Entendo que essa declaração representa grande derrota diplomática para os EUA e mais uma vitória diplomática para os russos. Adiante, listo alguns pontos que foram acordados (entre parênteses, indico a seção da declaração que trata de cada ponto):

  • Irã participará das negociações sobre o futuro da Síria (preâmbulo)
  • Não se admitirá que a Síria seja dividida (#1)
  • Síria não será governada por regime religioso (#1)
  • Exército Sírio não será desmobilizado (#2)
  • Daesh e outros grupos terroristas têm de ser derrotados (#6)
  • O povo sírio escolherá seu governante (#8)


Agora, a tradução, em termos políticos; e vejamos o que tudo isso implica.

  • EUA fracassaram no esforço para isolar o Irã, cujo papel crucial é agora reconhecido por todos
  • EUA não conseguirá rachar o país, entre um Wahabistão e um Alawistão
  • Nenhuma das facções que os EUA apoiam será autorizada a governar (porque são, todas, facções religiosas)
  • Os militares sírios (solidamente a favor de Assad) não serão desmobilizados nem desarmados
  • Todas as facções que os EUA apoiam têm de ser militarmente derrotadas (porque são, todas, wahabistas extremistas)
  • Assad permanecerá no poder (porque é, de longe, o candidato mais popular).


Mas, claro, não sou nem idiota nem ingênuo, para acreditar, nem por um segundo, que os EUA realmente honrarão o compromisso que assumiram nesse documento. Exatamente o oposto. O que estou dizendo é que a Rússia aplicou mais uma massiva surra diplomática nos EUA, semelhante à dos acordos de Lough Erne ou de Minsk-1 e Minsk-2. Em Lough Erne [2013], por exemplo, os EUA tiveram de aceitar a seguinte declaração: "Conclamamos as autoridades sírias e da oposição na Conferência de Genebra, a conjuntamente se comprometerem com destruir e expulsar da Síria todas as organizações e indivíduos afiliados à Al-Qaeda e qualquer outro ator não estatal ligado ao terrorismo". Em outras palavras, wahabistas ligados ao Daesh receberam ordens para unir forças com os militares sírios, para derrotar... o Daesh! Claro, todos sabemos que nada disso aconteceu. Mas o que realmente importa aqui é que ver e fazer ver que as ações e políticas dos EUA são tão indefensáveis, que os EUA são obrigados a condenar as próprias políticas ou, no mínimo a desacreditá-las e desmenti-las em todos os fóruns públicos de debate.

Permitam-me repetir mais uma vez: o que os EUA estão fazendo em solo, na vida real, está em completa contradição com o que dizem que fazem; a ação dos EUA contradiz a política declaratória dos EUA:

Ações/políticas/metas dos EUA

Política oficial dos EUA na Síria

Total apoio militar ao Daesh

Declarada oposição ao Daesh

Promoção de regime wahhabista

Promoção de regime secular

Dividir a Síria

Preservar a unidade da Síria

Destruir o exército sírio

Preservar o exército sírio

Derrubar a qualquer custo o presidente Assad

Povo sírio elegerá quem queira (Assad)

Sabotar todos os esforços russos

Colaborar com a Rússia

Derrubar governo do Irã ('mudança de regime')

Trabalhar com o Irã como parceiro


Enquanto, pelo menos até aqui, os EUA têm conseguido continuar a fazer na clandestinidade o exato oposto do que declara publicamente, esse tipo de ação torna-se extremamente difícil, uma vez que os militares russos lá estão, militarmente diretamente envolvidos. É o que apareceu claramente exposto, no momento surreal quando, depois de os EUA acusarem a Rússia de ter bombardeado os 'terroristas errados'... os EUA recusaram-se a entregar aos russos uma lista dos seus terroristas 'bandidos' e uma lista dos seus terroristas 'mocinhos'.

Essa tática, de obrigar os EUA a concordar formalmente com algo a que eles se opõem, é a mesma que Putin usou no Acordo de Minsk-2, quando os diplomatas russos basicamente obrigaram os EUA e seu regime fantoche a aceitar um diálogo com os novorrussos, mesmo que tal diálogo seja impossível para os EUA. É o que a Rússia está fazendo agora: obrigando os EUA a declarar que, sim, negociarão com Assad e o Irã.

As políticas que a Rússia declara e divulga e as políticas que a Rússia pratica são igualmente simples, claras e idênticas: derrotar terroristas, apoiar o governo sírio legal e legítimo, cumprir e fazer cumprir a lei internacional. No caso da Rússia, não é preciso esconder coisa alguma, e, de fato, os russos têm sido impressionantemente transparentes sobre as próprias ações e operações.

Há anos os EUA sonhavam com fazer a Assad o mesmo que foi feito a Hussein e a Gaddafi, e com certeza os norte-americanos têm toda a força militar necessária para conseguir o que querem. Mas estão descobrindo agora, para seu grande incômodo e total confusão, que a Rússia pode derrotar os planos dos EUA, usando com habilidade e competência um mix de diplomacia intensíssima e limitados esforços militares. Até aqui, os EUA ainda não encontraram jeito de lidar com sucesso com essa situação.

No front militar, a situação persiste, no melhor dos casos, complexa. Os melhores relatos da situação dos combates que encontrei até agora são os do website do Coronel Cassad. Em formato resumido, e poupando vocês dos detalhes batalha a batalha, parece que o Exército Sírio está obtendo progressos muito lentos em muitas direções, mas não está conseguindo capitalizar a vantagem potencial dos ataques aéreos russos; e seus modestos sucessos táticos não geraram qualquer grande abertura operacional. Em termos simples: as forças do governo estão lutando muito, para conseguir progressos modestos.

Não estou, de modo algum, culpando os sírios por essa situação. As linhas de frente são longas, complicadas, os wahabistas estão profundamente enfiados, o contingente da Força Aérea Russa que está ativo é muito pequeno e não pode fazer muita coisa. 

Um especialista russo declarou hoje que estima que os militares sírios tenham perdido cerca de 85 mil soldados, desde o início da guerra. Se a estimativa estiver correta, explica-se, pelo menos parcialmente, que os sírios estejam super distendidos, enfrentando dificuldades para concentrar forças suficientes num ponto definido, para conseguir romper a linha inimiga e avançar.

Mas, sim, é bem possível que os esforços combinados de russos e sírios alcancem eventualmente bom sucesso operacional, e que as forças do Daesh entrem em repentino colapso, pelo menos numa seção do front. O problema nessa situação é que os dois lados correm contra o tempo: a próxima rodada de negociações já está marcada para daqui a duas semanas e, até agora, nenhum dos dois lados tem muito a mostrar, para conseguir chegar à mesa de negociações em posição de poder. 

Aparentemente, os EUA estão planejando alguma espécie de ataque contra Raqqa, e falam de usar, basicamente, forças curdas. Se é isso, é plano, no mínimo, muito esquisito. Afinal, por que forças curdas aceitariam fazer tal operação, perigosa e potencialmente de alto custo (em termos de vidas e equipamento), distante de suas próprias áreas, que eles têm de proteger contra ataques que vêm, pode-se dizer, de todos os lados?!

Na comparação, o plano dos russos, de desbloquear o avanço para os militares sírios e ajudar a reconquistar Aleppo e a rodovia chave que conecta Damasco a Homs e Aleppo, parece muito mais realista, embora cheio de dificuldades potenciais. Se os sírios não conseguirem alcançar aqueles dois objetivos nas próximas duas semanas, esse fato complicará imensamente as próximas negociações e pode vir a forçar Irã e Hezbollah a mobilizar forças muito maiores, para aliviar o Exército Sírio.

As próximas duas semanas serão crucialmente importantes.
2/11/2015, The Saker, The Vineyard of the Saker

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey