Nicarágua, trinta anos de uma revolução partida

Estamos longe de 1979 e cada vez mais próximos das determinações de Sandino. Ter a história nas mãos deixou de ser uma promessa do universo poético de Victor Jara. O presidente Ortega e as demais lideranças populares eleitas democraticamente no continente sabem disso.

Gilson Caroni Filho

Sempre haverá lacuna em qualquer análise que se pretenda dialética. Se o pensamento realiza o esforço de se abrir para a apreensão de todas as contradições, muitas vezes a urgência da intervenção na política provoca um curto-circuito na reflexão e termina por suprir algumas determinações.


É preciso muito cuidado quando, passados pouco mais de 30 anos, relembramos a Revolução Sandinista. Aquele 19 de julho de 1979, dia em que foi derrubado o ditador Anastasio Somoza, trouxe tamanha carga de dramaticidade e esperança para as forças progressistas da região que sua importância histórica não pode ser relativizada, por maiores que tenham sido os erros cometidos posteriormente. E, convenhamos, não foram poucos.


O escritor nicaragüense Sérgio Ramírez se pergunta, em artigo publicado em “La Insígnia”, em 2004, se ”houve alguma vez uma revolução?”, afirmando que nunca a riqueza esteve tão concentrada como no período imediatamente posterior ao governo de Daniel Ortega, coordenador do governo revolucionário e principal liderança do movimento popular que prometia enquadrar econômica e politicamente a burguesia, ampliando e aprofundando a organização das massas trabalhadoras.


É fato que houve retrocessos. Se nos três primeiros anos, os sandinistas lograram modificar substancialmente a estrutura agrária, distribuindo terras férteis que antes pertenciam a apenas 1% da população, os camponeses terminaram abandonados à própria sorte, sem créditos nem recursos produtivos.


Uma campanha nacional, apoiada internacionalmente, inclusive com a ajuda do educador brasileiro Paulo Freire, fez com que o número de analfabetos caísse vertiginosamente. Como registrou na época J. Monserrat Filho, “milhares de alfabetizadores voluntários ocuparam o país numa maratona emocionante, que acabou sendo premiada pela UNESCO, sendo um modelo de como lutar contra o analfabetismo em condições de profundo atraso e subdesenvolvimento"


Apesar da agressão imperialista, os direitos democráticos fundamentais da população foram significativamente ampliados. O sistema de economia mista evoluiu no sentido de um controle crescente do processo produtivo pelo poder sandinista. Embora o setor privado continuasse largamente majoritário, tanto na agricultura como na indústria, havia um enquadramento quase total do crédito e do comércio exterior pelo governo. Se o setor estatal não representava mais que 30% das atividades agrícolas, ele estava estreitamente ligado a um setor cooperativo em constante desenvolvimento.


Na indústria, as expropriações sucessivas levaram ao setor público cerca de 40% da produção. Houve um momento em que a burguesia nicaragüense perdeu o essencial do seu poder de decisão. Foi contra isso, uma experiência que surgia como força de exemplo, que se voltou o poderio militar, propagandístico e econômico dos Estados Unidos. Mas Reagan não estava sozinho na agressão financiada com recursos ilegais.
Sem apoiar a intervenção direta na América Central, a social-democracia européia deu mostras de procurar um distanciamento cada vez maior do governo da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), cedendo às pressões estadunidenses. Felipe Gonzáles, à época primeiro-ministro da Espanha, e Willy Brandt, ex-primeiro ministro alemão, enviaram uma carta aos dirigentes sandinistas expressando o seu descontentamento pelo fato de que “os princípios da revolução estivessem sendo violados"


Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro” do neoliberalismo, apoiou incondicionalmente as ações armadas norte-americanas que chegaram a incluir um bloqueio naval à Nicarágua. Tentativas realizadas pelo grupo de Contadora (México, Venezuela, Panamá e Colômbia) para abrir uma solução negociada para o conflito foram rejeitadas por países satélites dos Estados Unidos à época: Guatemala, El Salvador, Costa Rica e Honduras, sendo que esse último cederia seu território como base para ações armadas e operações terroristas contra o regime de Manágua.


Não considerar que a realidade geopolítica da região era totalmente distinta da que temos hoje é ignorar evidências históricas. O governo de Daniel Ortega teve que concentrar todos os seus esforços na guerra. A luta contra os paramilitares patrocinados pelos Estados Unidos custou a vida de 50 mil pessoas. Acusar, como fez Ramírez, que o insucesso se deveu a "uma ética revolucionária que se perdeu" ou responsabilizar os retrocessos por "uma cultura autoritária constitutiva do sandinismo, inspirada no marxismo ortodoxo" revela uma estreiteza de análise tão simplória quanto conveniente a um intelectual entediado.


Em 2006, Ortega, após a derrota eleitoral de 1990, voltou à presidência da Nicarágua. Seu discurso revelou um homem que aprendeu com as circunstâncias vividas. Ao defender investimentos estrangeiros e falar em reconciliação, demonstrou a maturidade de quem sabia ter uma revolução a ser retomada. Cerca de 80% dos nicaragüenses vivem com, no máximo, US$ 2 por dia. Permanece atual a célebre afirmação de Augusto César Sandino: "Nosso exército é o mais disciplinado, abnegado e desinteressado em todo o mundo porque tem consciência do seu papel histórico". O que marca a diferença é que esse exército, ao contrário de 1979, não está mais sozinho na América Latina.
O Departamento de Estado dos Estados Unidos não ignora esse fato. Alguns analistas também deveriam levar isso em conta, principalmente quando a ampliação de forças norte-americanas em bases militares colombianas vem a se somar com a reativação da Quarta Frota na linha territorial do pré-sal brasileiro.


Basta uma leitura rápida para verificarmos o que tem unificado a linha editorial da grande imprensa latino-america. Trata-se de condenar de forma veemente a formulações de políticas externas que ampliam a margem de manobra dos países da região. Em contraponto aos avanços alcançados pelos movimentos populares, as oligarquias que controlam as oficinas de consenso, mais uma vez, revelam qual é o seu papel histórico. No entanto, para seu infortúnio, dessa feita o novo já pode nascer. Estamos longe de 19 de julho de 1979 e cada vez mais próximos das determinações de Sandino. Ter a história nas mãos deixou de ser uma promessa do universo poético de Victor Jara. O presidente Ortega e as demais lideranças populares eleitas democraticamente no continente sabem disso. Não há espaço para recuos.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4411

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey