Qual é a nossa posição? A Monthly Review e a crise do crédito

por John Mage*

Domingo à tarde, 5 de Outubro de 2008, o auge duma crise de crédito global, como nunca vista por quem tem menos de oitenta anos de idade. Tempos virão em que voltará a bonança, e em que a Monthly Review chamará a atenção para um registo nos últimos anos duma tentativa de persuasão (sem grande êxito) e de profecia (com um êxito muito maior) tão credível e rigorosa [1] como outras apresentadas noutros locais. Mas neste momento, de repente, começámos a receber pedidos dos nossos amigos e assinantes para que abordemos a conjuntura – a junção de circunstâncias momentâneas e de acontecimentos que estão a produzir o dia-a-dia da crise actual.


Mesmo a pequena distância, o quadro está muito mais nítido. Já podemos dizer que dificilmente há ainda quem acredite no triunfo final do capitalismo liberal e no "fim da história", ou que os mercados financeiros são auto-reguladores, ou que "um mercado financeiro aberto, competitivo e liberalizado pode efectivamente distribuir recursos escassos de um modo que fomente muito melhor a estabilidade e a prosperidade do que a intervenção governamental" (Henry Paulson, em Março de 2007), ou, de forma mais genérica, que um capitalismo dominado pela finança apresente o melhor caminho para o desenvolvimento global e para a prosperidade.


E quanto aos que continuam a acreditar que os mestres da finança criaram riqueza real fabricando "produtos financeiros" exóticos – bem, não há nada a fazer, quando a própria evidência dos acontecimentos não o consegue; mas esse não é o nosso público, pelo menos o público que pretendemos atingir. Evidentemente, pode dar-se o caso de que o público que pretendemos atingir e o público que temos, de facto, não coincidam totalmente; sabemos que não coincidem. Mas ao responder aos pedidos para que abordemos e expliquemos a conjuntura económica (e até mesmo para que digamos aos dirigentes dos Estados Unidos como é que eles podem salvar o capitalismo, como se nós soubéssemos e como se eles nos dessem atenção), a Monthly Review poderá fazer uma útil pausa para repensar primeiro qual é o público que temos em vista.


Na secção About do nosso sítno web, dizemos: A Monthly Review tem mantido um ponto de vista firme. Esse ponto de vista é a tentativa honesta de enquadrar as questões do dia num conjunto de interesses que mais nos preocupam: os da grande maioria da humanidade, os que nada possuem. Mas claro que esse público não tem possibilidade económica de assinar a Monthly Review, o que é essencial para que ela exista, nem provavelmente de aceder à web para que nos possam ler online. Em relação aos que proporcionam o apoio financeiro de que precisamos, sem dúvida que o que os preocupa sobretudo são os seus fundos de pensões em perigo, e isso é compreensível. Mas a contradição é que não são esses a quem, em última análise, desejávamos dirigir-nos.


Então, que sentido é que esta crise de crédito tem para a grande maioria da humanidade, os que nada possuem? Obviamente não nos referimos aqui apenas aos nus e esfomeados, mas a todos os que não têm valores financeiros (para além de saldos bancários ou dinheiro que possam empregar no consumo durante alguns meses ou menos) ou que têm uma situação negativa, cujas dívidas são mais ou menos iguais – ou maiores – do que o valor do seu carro ou da sua bicicleta, da sua casa ou da sua cabana ou pedaço de terra. Não vamos fazer as estatísticas do mundo inteiro, mas nos Estados Unidos o governo reconhece que há mais de um terço de famílias negras e hispânicas dentro desta categoria e que este número muito provavelmente está subavaliado.

Olhando para os Estados Unidos, a situação não é nada boa, mesmo para os que têm algumas posses. Em relação às famílias com rendimentos abaixo dos 20 por cento do topo, nos Estados Unidos, as receitas familiares estagnaram (com os salários reais a manterem-se nos níveis dos anos 70), as economias são inexistentes, e o pagamento de prestações de dívidas em média anda perto dos 20 por cento do rendimento anual. As execuções de hipotecas e as falências estão a aumentar rapidamente. Os fundos de pensões estão a ser roubados a cada passo. Os benefícios de saúde não existem ou estão em erosão. Os sindicatos, com poucas excepções, estão a esmorecer.

As escolas públicas estão decadentes e sujeitas a assaltos. O país está metido numa guerra interminável que apenas serve a actual estrutura de poder. A clara rejeição do plano de salvação do banqueiro Paulson por uma maioria de trabalhadores americanos não foi portanto uma confusa reacção irritada e irracional (dados os meios de comunicação dos EUA, que se poderia esperar a não ser confusão?), mas reflectiu, pelo menos em parte, o reconhecimento de que o verdadeiro plano de salvação devia visar os que estão em baixo, onde há mais necessidades, e não as empresas ricas que estão no topo. Entretanto, quanto à Africa, à Índia, à China, à América Latina, à Indonésia, ao Bangladesh, a única questão séria é que a grande maioria não tem recursos financeiros suficientes para se manter viva senão por mais alguns meses; para eles, de forma geral, tanto a operação de salvamento, como a própria crise de crédito, são questões de somenos importância.


Para os que se encontram nesta situaçãoprecária (embora em proporções diferentes) – e somos obrigados a insistir em repetir que são esses a maioria global – a crise de crédito pode de facto ter algum impacto em determinadas circunstâncias concretas. Os cortes nas despesas sociais já inadequadas vão ter impacto em muitos dos que nada possuem, nos Estados Unidos, e esses são os nossos vizinhos e os nossos amigos e devemos fazer o que pudermos para os ajudar. É verdade que os que trabalham em troco de salários de miséria na China numa indústria que produz bens para exportação para os Estados Unidos também podem estar a enfrentar condições ainda piores. No entanto, de forma geral, a conclusão é nitidamente que esta crise de crédito não fará uma diferença imediata para a maioria global, se é que fará alguma diferença. A sua difícil sobrevivência depende de relações sociais e económicas muito distantes dos circuitos despedaçados da finança global.


Numa perspectiva um pouco mais distante, talvez se possa afirmar que o resultado – que parece indicar que é provável que se siga uma depressão global à crise de crédito – venha a ser favorável. Nalguns dos países mais prósperos, um retorno ao capitalismo racional keynesiano significará um aumento das despesas sociais e beneficiará os que nada possuem, cruelmente atingidos pela imposição das agora desacreditadas "reformas" neoliberais. Mas a principal lição é que a América Latina, sobretudo, está agora bem posicionada para aprender e beneficiar com isso. Por entre a crise, o país menos afectado é e será Cuba; já está para além de qualquer dúvida que o melhor lugar em todo o mundo para confiar na protecção social, em vez de confiar nas migalhas das poupanças individuais, o melhor local para quem nada possui, é Cuba.


E na China, na Índia, e na África do Sul, o caminho a seguir é tema de profundos e agitados debates e lutas, cujo resultado está longe de ser claro. O fim da hegemonia intelectual neoliberal, o descrédito da "reforma" no interesse dos banqueiros e dos ricos, são os sinais mais seguros de esperança para a grande maioria. Na Monthly Review, devemos assumir portanto como principal tarefa enterrar a estaca no coração do neoliberalismo que deverá estar mortalmente ferido. Recolhamos e repitamos os hinos de triunfo cantados por Trevor Manuels e por Chidambarams e Paulsons aos "mercados financeiros abertos, competitivos e liberalizados". Ridicularizemos impiedosamente todos os anos do calão desonesto da "liberdade económica" e da "reforma" vomitado para cima do público por economistas e jornalistas que fazem o papel de prostitutas dos banqueiros. Ajudemos a tornar claro o terreno para um regresso global ao caminho socialista, a única esperança para a maioria da humanidade – os que nada possuem.

[1] Ver The Financialization of Capital and the Crisis, de John Bellamy Foster, em http://monthlyreview.org/080401foster.php
[*] Responsável da Monthly Review Foundation.
O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/mage061008.html . Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey