O antigo presidente iraquiano Saddam Hussein foi hoje condenado à morte por enforcamento pelo Tribunal Especial que julgou os crimes cometidos na localidade xiita de Dujail nos anos 80. Awad Hamed Al-Bander, antigo líder do Tribunal Revolucionário iraquiano, foi sentenciado com a mesma pena.
Em marcha está já um segundo julgamento, em que o ex-chefe de Estado é acusado de genocídio pela Operação Anfal, a vaga de repressão anticurda que terá feito mais de 180 mil mortos entre 1987 e 1988. Mas com a sentença de hoje Saddam, pode não sobreviver a mais nenhum processo.
O Tribunal Especial Iraquiano, entretanto chamado Alto Tribunal Iraquiano (IHT, na sigla inglesa), com jurisdição para julgar os crimes do regime do Partido Baas, ficou marcado desde o início por dúvidas e críticas. Alguns peritos defenderam um julgamento internacional, como o de Slobodan Milosevic em Haia, outros um processo com leis iraquianas mas fora do país, onde a violência, entretanto em vertiginosa escalada, já era quotidiana quando a formação do tribunal foi iniciada.
A decisão de criar um tribunal iraquiano pertenceu a Paul Bremer, então administrador americano do Iraque. Segundo a Human Rights Watch, os Estados Unidos pagaram 128 milhões de dólares (100 milhões de euros) para a acusação. Os juízes receberam formação no Reino Unido. "Claro que o processo de estabelecimento do IHT deveria ter sido mais bem gerido. O papel dos EUA foi muito proeminente, o estatuto não devia ter sido aprovado pelo Conselho de Governo [cujas decisões podiam ser vetadas por Bremer] mas sim pela Assembleia Nacional [eleita já em 2005]", disse ao PÚBLICO por email Michael Wahid Hanna, membro do International Human Rights Law Institute da Universidade DePaul (EUA).
Mas Hanna, que está a terminar um artigo sobre o IHT, insiste que apesar das "falhas", Dujail é "um julgamento verdadeiro com provas verdadeiras em resposta a crimes e atrocidades reais. E defende que o IHT tem feito progressos "encorajadores", apesar de a "qualidade dos trâmites ter sido afectada pelo caos criado pela violência", da "falta de transparência perturbadora" e da "interferência política", que considera "a maior ameaça à legitimidade futura do IHT".
Na cidade de Dujail, 80 quilómetros a norte de Bagdad, numa região maioritariamente sunita mas com concentrações xiitas, a Associated Press ouviu ontem de Ali al-Haidari, uma das testemunhas no processo, que os habitantes planeavam "ficar acordados à espera do veredicto". "Estamos cercados por grupos que apoiam Saddam", disse ainda, referindo-se às cidades sunitas circundantes.
Novos checkpoints foram ontem erguidos nas principais estradas de Bagdad. Pelo menos 39 pessoas morreram ou foram encontradas mortas pelo país. Folgas e férias foram interrompidas para os membros de todas as forças de segurança. Sunitas, xiitas e curdos temem uma nova escalada se os juízes considerarem Saddam culpado. No improvável cenário de ser inocentado, os receios são de violência por parte dos xiitas, grupo religioso em que proliferam milícias, incluindo algumas ligadas aos principais partidos do Governo.
Ao longo das 40 audiências do julgamento de Dujail, o estatuto de Saddam cresceu entre os apoiantes, ao mesmo tempo que o tribunal se mostrava incapaz de ajudar à desejada reconciliação entre os iraquianos. Nos nove meses que durou, o julgamento foi acumulando casos. O primeiro juiz presidente, Rizgar Amin, afastou-se por causa das críticas de que beneficiava Saddam, denunciado, por seu turno, interferências políticas no seu trabalho. O segundo nomeado não chegou a ocupar o cargo, por ter pertencido à comissão de desbaasificação, que afastou da função pública antigos membros do Baas.
Rauf Abdel Rahman, juiz que se seguiu, teve um começo atribulado: no primeiro dia expulsou o meio-irmão do antigo presidente, Barzan al-Tikriti e outros dois réus, no segundo Saddam e todos os outros boicotaram a sessão, no terceiro, o juiz baniu Saddam e os restantes acusados. Pelo meio, Saddam pareceu enviar mensagens a apoiantes, os advogados foram proibidos de o ver, o seu irmão passou uma sessão em roupa interior. E no exterior da sala de audiências, três advogados de defesa foram mortos, várias testemunhas da defesa ameaças e em Dujail houve alegados assassínios de familiares das testemunhas de acusação. A violência no país disparava, enquanto o tribunal parecia cada vez mais à beira do caos. "No início estávamos muito entusiasmados por acompanhar o julgamento. Agora tornou-se insuportável segui-lo. Continuam a passá-lo na televisão para esconder todas as mortes, saques e violência sectária que há por todo o país", resumiu à Associated Press Mohammed Jassin, um iraquiano xiita que fugiu do Iraque para o Egipto e segue o julgamento nas televisões por satélite árabes.
Analistas no Oriente Médio ouvidos pela BBC Brasil acreditam que deve haver reacção de grupos leais a Saddam Hussein, mas não o suficientepara provocar aumentos significativos no grau de violência no Iraque. O estudioso iraquiano Mustafa al-Ani, do Centro de Pesquisas do Golfo, em Dubai, diz que apenas cerca de 10% dos grupos insurgentes iraquianos podem ser considerados Saddamistas ou Baatistas (o partido de ideologia pan-arabista do ex-presidente). Estes grupos devem reagir com violência (...), mas eles são poucos, e em meio à situação de violência generalizada no Iraque, não acredito que vá ser particularmente significativo, avalia. Os advogados de defesa, no entanto, ainda podem entrar com recursos e adiar a execução da sentença dada no domingo.
O ex-presidente também já está sendo julgado pela operação que provocou a morte de milhares de curdos, no norte do Iraque, no anos 80, e outros processos por crimes contra direitos humanos ainda devem ser levados à corte. O director do programa de Oriente Médio da ONG especializada em estudo e resolução de conflitos International Crisis Group (ICG), Joost Hitterman, também não vê nenhuma grande explosão de violência a caminho especificamente por conta do julgamento de Saddam Hussein. Mas Hitterman também não acredita que uma punição ao ex-presidente vá ter muitos aspectos positivos para o Iraque. Muita gente vai se sentir aliviada e vingada, mas não se trata de um tema com os quais os iraquianos estejam particularmente preocupados agora. Além disso, a pena de morte já é algo amplamente esperado, mas ainda deve demorar um pouco para ser executada, disse, por telefone, de Aman, na Jordânia.
O pesquisador egípcio Amr Hamzawy, do Carnegie Endowment para a Paz Internacional, de Washington, também acredita que punir Saddam Hussein já não é mais algo que ocupe tanto espaço na cabeça dos Iraquiano. Se ele tivesse sido capturado logo depois da invasão americana e levado a julgamento, a situação seria bem diferente. Haveria no Iraque uma impressão de se estar punindo um ditador e servindo a Justiça, diz ele. Mas tanto tempo depois e com tanta coisa acontecendo de ruim no Iraque, os crimes de Saddam Hussein já estão começando a se diluir na cabeça das pessoas.
Factos interessantes:
O julgamento de Dujail durou 282 dias e ouviu 130 testemunhas, num total de 40 sessões. Dujail foi presidido por três juízes diferentes; o segundo julgamento já teve dois juízes presidentes. O Tribunal Especial do Iraque mudou de nome para Alto Tribunal Iraquiano durante o primeiro julgamento. Pelo menos três advogados da defesa, entre outras pessoas ligadas ao tribunal, foram assassinados durante o primeiro processo. Em Julho, Saddam esteve 16 dias em greve de fome, em protesto pela morte dos seus advogados; foi hospitalizado ao 17º dia. Numa só semana de Setembro, Saddam foi expulso três vezes do tribunal. Ao ser condenado, Saddam, com um Corão na mão, gritou duas vezes a frase "Alahu Akbar" ("Alá é grande").
Segundo "Público", "Ultimo Segundo", "BBC"
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