Iraci del Nero da Costa*
José Flávio Motta**
No artigo intitulado A emergência da mercadoria força de trabalho: algumas implicações detivemo-nos na análise do movimento de autonomização do âmbito econômico com respeito a outras dimensões da vida em sociedade. Tal descolamento da esfera econômica, aliada ao fenômeno de coisificação - desumanização - do homem, teve por corolário, no plano das ideias, o estabelecimento da economia como ciência autônoma, com objeto próprio e claramente delimitado. No texto vertente preocupar-nos-emos com algumas consequências de natureza política do surgimento da aludida mercadoria. Mais especificamente, trataremos da universalização da propriedade privada, da liberdade e da cidadania, universalização esta que se acha integrada ao próprio funcionamento do Estado Moderno, instância garantidora da dominação política da classe economicamente dominante; consideraremos, ademais, que a superação de tais condições representará a emergência de uma nova forma de sociabilidade humana a qual decorrerá, necessariamente, da ação política consciente dos homens, não estando assentada, portanto, sobre elementos de caráter econômico.
A transformação do trabalhador livre em assalariado, ao passo que conforma a relação de produção definidora da sociedade capitalista, imprime nos indivíduos que integram tal sociedade uma igualdade fundamental, dada pela propriedade privada. Essa universalização da propriedade está, de fato, na origem do atributo de grande plasticidade do capitalismo. Em outras palavras, dita plasticidade decorre do fato de, na sociedade em questão, a transferência de renda - exploração da mais-valia, para alguns, obtenção de lucros, para outros - dar-se no âmbito dos mercados em virtude de contratos estabelecidos entre iguais, vale dizer, entre proprietários de mercadorias, ainda que muitos o sejam, apenas, de sua própria força de trabalho.
Sobre essa igualdade - todos são proprietários - funda-se o Estado Moderno, que deixa de ser um mero instrumento de dominação política a expressar imediatamente os interesses da classe economicamente dominante. Como afirma Poulantzas: "o Estado capitalista apresenta o fato particular de que a dominação propriamente política de classe não está nunca presente, sob a forma de uma relação política: classes dominantes-classes dominadas, nas suas próprias instituições. Tudo se passa nas suas instituições, como se a 'luta' de classe não existisse. Esse Estado apresenta-se organizado como unidade política de uma sociedade com interesses econômicos divergentes, não interesses de classes, mas interesses de 'indivíduos privados', sujeitos econômicos". Tal peculiaridade do Estado capitalista "(...) permite distinguir radicalmente esse Estado (...) dos Estados escravagista ou feudal. Estes últimos limitavam a organização política das classes dominadas, fixando institucionalmente as classes dos escravos ou dos servos, nas suas próprias estruturas, através de estatutos públicos, quer dizer, institucionalizando a subordinação política de classe -'estados-castas'" (POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977, p. 181).
Evidencia-se, pois, para o autor em foco, a contradição principal do Estado capitalista, em cuja descrição se faz presente, uma vez mais, a aludida igualdade entre todos os indivíduos: "o Estado capitalista tem por função desorganizar politicamente as classes dominadas, enquanto organiza politicamente as classes dominantes; de excluir do seu seio a presença, enquanto classes, das classes dominadas, enquanto nele introduz enquanto classes, as classes dominantes; de fixar a sua relação com as classes dominadas como representação da unidade do povo-nação, enquanto fixa a sua relação com as classes dominantes como relação com classes politicamente organizadas; em suma, esse Estado existe como Estado das classes dominantes, ao mesmo tempo que exclui do seu seio a 'luta' de classes. A contradição principal desse Estado não consiste no fato de se 'dizer' um Estado de todo o povo quando é um Estado de classe, mas, precisamente, no fato de se apresentar, nas suas próprias instituições, como um Estado de 'classe' (das classes dominantes que contribui para organizar politicamente) de uma sociedade institucionalmente fixada como não-dividida-em-classes; no fato de se apresentar como um Estado da classe burguesa, subentendendo que todo o 'povo' faz parte dessa classe" (POULANTZAS, 1977, p. 182).
De outra parte, o Estado Moderno ganha relativa autonomia com respeito à esfera econômica, podendo, portanto, assimilar, ainda que parcialmente, interesses das classes subalternas. Torna-se, pois, o locus social no qual as classes antagônicas lutarão pela hegemonia política e ideológica. Sirvamo-nos, neste ponto, uma vez mais de Poulantzas: "O Estado capitalista, com direção hegemônica de classe, representa, não diretamente os interesses econômicos das classes dominantes, mas os seus interesses políticos: ele é o centro do poder político das classes dominantes na medida em que é o fator de organização da sua luta política. (...) o Estado capitalista comporta, inscrito nas suas próprias estruturas, uma certa garantia de interesses econômicos de certas classes dominadas. Isto faz parte da sua própria função, na medida em que essa garantia é conforme à dominação hegemônica das classes dominantes, na relação com esse Estado, como representativas de um interesse geral do povo. (...) A noção de interesse geral do 'povo', noção ideológica mas que recobre um jogo institucional do Estado capitalista, denota um fato real: esse Estado permite, pela sua própria estrutura, as garantias de interesses econômicos de certas classes dominadas, eventualmente contrárias aos interesses econômicos a curto prazo das classes dominantes, mas compatíveis com os seus interesses políticos, com a sua dominação hegemônica" (POULANTZAS, 1977, p. 185).
A igualdade fundamental por nós salientada, assentada sobre a base dada pela propriedade privada, manifesta-se, na sociedade capitalista, na igualdade de todos em face da lei e no gozo dos direitos que são iguais para todos e universais, dentre os quais se destacam a liberdade de pensamento e de organização, a cidadania. Claro está que a universalização de direitos e da cidadania não deve ser entendida como algo propiciado imediata e automaticamente pelo capitalismo, pois, como sabemos, tal universalização decorreu das lutas sociais desenvolvidas, sobretudo, por classes e segmentos sociais subalternos. Afirmamos, sim, e isto é crucial para o entendimento de nossas postulações, que a transformação da força de trabalho em mercadoria e a ampla generalização desta forma - com a correlata emergência do capitalismo - permitiram que a referida universalização e as lutas das quais ela decorreu pudessem dar-se no âmbito da sociedade capitalista nascente sem necessidade, portanto, de que tal sociedade e sua base econômica fossem destruídas; pelo contrário, na medida em que tais lutas e suas conquistas atuaram e continuam a atuar no sentido de integrar econômica, política e ideologicamente as camadas subalternas ao seio social, verifica-se a afirmação e consolidação do modo de produção capitalista, o qual se vê legitimado aos olhos daquelas camadas; cabe frisar, aqui, que a consideração de tais lutas sociais, as quais compõem todo um capítulo da história da humanidade, foge ao escopo deste nosso artigo.
Tenha-se presente, por outro lado, que "essa garantia de interesses econômicos de certas classes dominadas, da parte do Estado capitalista [e esse espaço de universalização de direitos e da cidadania, acrescentaríamos nós - IDNC/JFM], não pode ser concebida, apressadamente, como limitação do poder político das classes dominantes. É certo que ela é imposta ao Estado pela luta, política e econômica das classes dominadas: isto apenas significa, contudo, que o Estado não é um utensílio de classe, que ele é o Estado de uma sociedade dividida em classes. A luta de classes nas formações capitalistas implica que essa garantia, por parte do Estado, de interesses econômicos de certas classes dominadas está inscrita, como possibilidade, nos próprios limites que ele impõe à luta com direção hegemônica de classe. Essa garantia visa precisamente à desorganização política das classes dominadas, e é o meio por vezes indispensável para a hegemonia das classes dominantes em uma formação em que a luta propriamente política das classes dominadas é possível" (POULANTZAS, Nicos, 1977, p. 185-186). Luta essa que, nos quadros da sociedade capitalista, tem como limite último e pedra de toque inquestionável o respeito absoluto da propriedade privada a qual, ademais, é confundida com a própria noção de liberdade.
Em suma, o Estado capitalista move-se no contexto da plasticidade característica da sociedade à qual corresponde. Este atributo, de um lado, surge como decorrência da emergência da mercadoria força de trabalho, na medida em que se refere a um espaço criado em meio a relações que se estabelecem entre iguais, igualdade dada pela propriedade de mercadorias: o trabalhador é dono da mercadoria força de trabalho, os capitalistas detêm a propriedade dos meios de produção. De outro lado, a aludida plasticidade coloca-se como o campo no qual se exercita a possibilidade da universalização da liberdade e da cidadania: todos são iguais perante a lei. Uma última referência a Poulantzas é aqui oportuna: "por outras palavras, é sempre possível traçar, de acordo com a conjuntura concreta, uma linha de demarcação, abaixo da qual essa garantia de interesses econômicos de classes dominadas por parte do Estado capitalista não só não põe diretamente em questão a relação política de dominação de classe, mas constitui mesmo um elemento dessa relação" (POULANTZAS, 1977, p. 186). A supressão dessa linha, a nosso ver, significará o fim da história natural da humanidade e o início da história posta conscientemente pelo homem, passagem esta que exigirá a superação da luta econômica pela luta política a qual dirigir-se-á à afirmação e consolidação de uma nova forma de sociabilidade, forma essa não mais assentada na propriedade de mercadorias, mas, como avançado, imposta e suportada pela ação política consciente de uma humanidade disposta a suplantar a coisificação das relações existentes entre seus integrantes.
*Iraci del Nero da Costa
Prof. Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.
**José Flávio Motta
Prof. Livre-docente da Universidade de São Paulo.
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