Vivemos no dia de ontem (21/10) um momento histórico. Infelizmente, não poderemos nos orgulhar dele. Assim como, nos anos 1990, vimos a entrega do patrimônio nacional e de setores estratégicos para mãos privadas, reeditamos o receituário neoliberal da era FHC, desta vez levado a cabo por um governo eleito pela esquerda, mas que consolidou sua virada histórica para o outro lado.
Por Ivan Valente
Deputado Federal PSOL/SP
Vivemos no dia de ontem (21/10) um momento histórico. Infelizmente, não poderemos nos orgulhar dele. Assim como, nos anos 1990, vimos a entrega do patrimônio nacional e de setores estratégicos para mãos privadas, reeditamos o receituário neoliberal da era FHC, desta vez levado a cabo por um governo eleito pela esquerda, mas que consolidou sua virada histórica para o outro lado. Mas mesmo o partido tucano poderia invejar o que aconteceu nesta segunda-feira, pois todas as suas privatizações juntas, incluindo Vale e Telebrás, não chegarão à magnitude da entrega do Campo de Libra.
Com o uso das tropas da Guarda Nacional e do Exército brasileiro, o governo Dilma consumou na tarde deste dia 21 de outubro o leilão do campo de Libra na Bacia de Campos (RJ), a maior reserva já descoberta no pré-sal brasileiro, com um potencial que pode chegar a 12 bilhões de barris no total. A estimativa inicial de extração de 1 milhão de barris por dia foi elevada para 1,4 milhão de barris por dia pela diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Magda Chambriard.
Para se ter uma ideia do volume de petróleo (de altíssima qualidade) aí contido, a extração diária de Libra sozinha pode representar 65% da produção atual. E o volume total de petróleo deste campo equivale a tudo o que já foi extraído pela Petrobras desde a sua criação, há 60 anos, e ao total das reservas do México, segundo o Heitor Scalambrini Costa, doutor em energia e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A riqueza de Libra é avaliada em R$ 3 trilhões, e por estas dimensões gigantescas, o Leilão do Campo de Libra representa a maior privatização da história brasileira, com valores e potencial de extração muitas vezes superior a privatização da Vale do Rio Doce, considerada uma das maiores mineradoras do mundo e a maior privatização da era FHC.
Em pronunciamento de quase 8 minutos em TV aberta na noite de ontem, a presidente Dilma exibiu com seu típico tom triunfalista números que refletem o otimismo conveniente de quem acabou de entregar o maior patrimônio material do país para desfrutar dos benefícios de curto prazo. "Isto é bem diferente de privatização", disse Dilma, que joga com números que, até se comprovarem por meio da própria produção do petróleo do pré-sal, são fictícios e expressam não apenas a necessidade de colher dividendos políticos, mas também a própria dificuldade do governo em legitimar o próprio privatismo. Mas claro, como justificar um estelionato eleitoral de tamanha envergadura, quando todos sabem que a presidente venceu as eleições de 2010 condenando as privatizações do PSDB e acusando seu adversário de querer fazer o mesmo com a Petrobras e o pré-sal?
Pois bem. Um consórcio de cinco empresas - a anglo-holandesa Shell, a francesa Total, as chinesas CNPC e CNOOC e a Petrobras - foi o ganhador do leilão. Este consórcio, que competiu sozinho, pois não houve outros interessados, arrematou o leilão pela oferta mínima prevista no Edital, que é o repasse de 41,65% do óleo excedente a ser produzido para a União. Por lei, a Petrobras obrigatoriamente seria operadora de Libra e teria participação de 30% da área. Com a oferta de 10% feita pela empresa, a estatal passa a ter 40%, as empresas chinesas ficam com 20%, a Shell com 20% e a Total com 20%. Ou seja, 60% do maior campo do pré-sal está em mãos de empresas estrangeiras, com direito a 35 anos de exploração de suas riquezas.
Segundo o diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP (IEE) e ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras no governo Lula, Ildo Sauer, o Estado brasileiro pode deixar de arrecadar até R$ 331,3 bilhões em 35 anos com o leilão do pré-sal. O cálculo considera o modelo de partilha, previsto para o leilão; royalties de 15%; imposto de renda de 34% sobre o lucro; bônus de assinatura de R$ 15 bilhões, conforme determinado em edital; preço do barril de petróleo a US$ 160; e dólar a R$ 2,20. O cálculo não leva em conta taxa de juros e inflação.
Em outros cenários, com o preço do petróleo mais alto ou mais baixo que o estipulado, as perdas podem variar. Com o barril a US$ 60, o governo deixaria de arrecadar R$ 176,8 bilhões; se o barril valer US$ 105, as perdas do governo são de R$ 222,3 bilhões. Disfarçando tamanho prejuízo, Dilma vai a TV comemorar o ganho de R$ 15 bilhões em bônus pela venda da maior reserva brasileira de petróleo de alta qualidade. Bônus estes que serão utilizados para garantir a meta de superávit do governo brasileiro, em grande parte destinada ao pagamento da famigerada dívida pública.
O abismo entre o discurso oficial e a realidade é difícil de ser explicado para o grande público, e assim o governo joga com a desinformação, pois, como se sabe, o diabo mora nos detalhes. Para quem não ignora os meandros da negociata e nem faz o papel de ideólogos do governo, no entanto, a comparação com as privatizações de FHC não são apenas superficiais, mas revelam um modelo fundamentalmente semelhante. Trata-se de modelo tão temerário que, inclusive dentro do PT é possível encontrar vozes dissonantes, como a do ex-presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli.
Segundo ele, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e o Ministério das Minas e Energia (MME), para entregar às multinacionais a maior reserva do mundo, estão, premeditadamente, contornando e trapaceando a nova lei do petróleo, assinada por Lula em 2010. Em entrevista ao blogueiro Paulo Henrique Amorim, Gabrielli afirmou que "quando houve a transformação do regime regulatório do petróleo no Brasil, em 2010, essa mudança ocorreu porque, com a descoberta do pré-sal, os riscos de exploração passaram a ser pequenos. (...) O regime anterior, o regime de concessão [lei nº 9.478, de 1997] era adequado para áreas de alto risco exploratório. Esse regime exige, na entrada, um bônus alto, porque o concessionário passa a ser o proprietário do petróleo a ser explorado - e, portanto, ele vai definir a priori quanto vai dar ao Estado".
Trata-se, portanto, de um engodo. O modelo que conta com o "bônus de assinatura" serviria caso houvesse risco para as empresas de que não existisse petróleo. Mas já está comprovado que existe um oceano de petróleo no pré-sal, qual o sentido, então, de se pagar para procurar um petróleo que todos sabem que já existe? Além do mais, a descoberta já foi feita pela própria Petrobras, contratada pela ANP, "que fez as perfurações exploratórias iniciais, já tem uma cubagem mais ou menos conhecida com volume e potencial já conhecidos, e ele é hoje não só o maior campo do mundo, mas da História. Se você pensar em um preço de valor adicionado (preço de exploração) de 10 dólares o barril, vezes, por baixo, 10 bilhões de barris, são 100 bilhões de dólares".
Com a nova lei (lei nº 12.351 de 2010), que instituiu o regime de partilha de produção para o pré-sal, como aponta Gabrielli, "à medida que você coloca um bônus muito alto, a partilha do lucro no futuro é menor. Ao fixar o bônus alto, você tem uma visão de curto prazo, na exploração e no desenvolvimento de um recurso que já tem o grau de confirmação muito alto - não há dúvida de que tem petróleo lá". Ou seja, mesmo com a certeza da existência do petróleo, o governo submete todo o ganho potencial futuro do Estado a uma parcela menor. Nessa operação de R$ 15 bilhões, o governo vai receber de imediato, mas no lucro do futuro, o governo vai ficar com uma fatia menor.
Evidentemente, num campo com tal reserva, o lucro do futuro é imenso e muito maior que esses R$ 15 bilhões. O valor que deveria ser pago em bônus, mais o de investimento para a instalação das plataformas de exploração, serviram de argumento pelo governismo para justificar a privatização, já que segundo eles a Petrobras "não teria recursos para investir sozinha".
Ildo Sauer defende que a Petrobras deveria assumir a exploração do pré-sal sozinha, e não em consórcio com empresas estrangeiras. Segundo ele, a estatal brasileira é a empresa mais capacitada do mundo para fazer exploração de petróleo em águas ultraprofundas, e poderia obter empréstimos junto a bancos. Como afirmou em entrevista ao jornalista Luiz Carlos Azenha, nenhuma empresa pode arcar com estes custos, sendo que tomar empréstimos é exatamente o que as companhias privadas farão. "De fato, a Petrobras fará o trabalho pesado - tem tecnologia e conhecimento para isso. As parceiras terão, lá na frente, um lucro desproporcional ao investimento feito agora."
Ainda segundo Sauer, não dá para calcular, ainda, exatamente com quanto o Brasil ficará da produção de Libra, o que seria por volta de 60%, quando o padrão internacional para empresas estatais é de 80% (no caso da PDVSA venezuelana e da Aramco, da Arábia Saudita). Seria diferente se, por exemplo, o governo tivesse optado por contratar a Petrobras diretamente, o que está previsto em lei.
Alguns ideólogos do governo petista chegaram inclusive a atribuir à presença de empresas chinesas um caráter "anti-imperialista" ao modelo de partilha. Entre os "argumentos" estaria o de que a presença da China deixaria a IV Frota do EUA longe da costa brasileira, ou de que a China, em sua busca por recursos naturais, teria uma "relação de troca" com o Brasil por meio de estímulos ao empreendedorismo etc. Houve até quem questionasse se entregar para estatais chinesas seria ainda assim privatização. Trata-se de uma grande piada, ou desonestidade intelectual pura e simples.
Como afirma Sauer, o interesse da China em relação à exploração de petróleo é convergente ao dos Estados Unidos, pois ambos são grandes consumidores de petróleo e precisam de preços mais baixos no mercado internacional. Em um mundo onde o preço do petróleo é determinado - para cima - pelos países associados à Opep, a entrada do Brasil na produção de petróleo em larga escala e em curto prazo faria o preço cair. Ou seja, além de servir indiretamente aos interesses de EUA e China, o Brasil tem, dentro do consórcio que fará a exploração, os chineses, que são também consumidores.
Há ainda a questão dos royalties associada ao pagamento dos juros da dívida pública brasileira. Segundo Rodrigo Ávila, economista da Auditoria Cidadã da Dívida, os royalties - dos quais 75% iriam para Educação e 25% para a Saúde - equivalerão a apenas 15% da produção, e somente serão obtidos quando o Campo de Libra começar a operar plenamente, o que ocorrerá apenas por volta de 2019. Além do mais, o governo federal já não tem destinado os recursos dos royalties para as suas finalidades legais, mas em grande parte para o pagamento da dívida pública, o que pode ocorrer novamente com o Campo de Libra.
Além do mais, Ávila lembra que, do valor arrecadado pela União com a parcela do "excedente em óleo", apenas 50% serão destinados para as áreas sociais, pois a outra metade será destinada para aplicações financeiras, preferencialmente no exterior (por meio do chamado "Fundo Social"), e apenas o rendimento destas aplicações será aplicado nas áreas sociais. "Se é que haverá rendimento, dadas as baixas taxas de juros no mercado internacional e a abundância de papéis que podem se mostrar "podres" da noite para o dia, em um ambiente de Crise Global", questiona o economista.
Todos os movimentos sociais comprometidos com a defesa da soberania nacional foram contrários ao leilão de Libra, assim como os petroleiros, que continuam em greve e a quem manifestamos todo o nosso apoio e solidariedade.
Importante ressaltar ainda que a Petrobras já foi em grande parte privatizada, pois seu lucro é distribuído preponderantemente aos investidores privados, e a parcela pertencente à União deve ser utilizada obrigatoriamente para o pagamento da dívida pública, conforme manda a Lei 9.530/1997.
Quando o governo FHC promoveu a grande privataria dos anos 1990, um dos argumentos era o de que era necessário ter caixa para pagar os compromissos e respeitar os contratos. Isso implicou na entrega a preços módicos de setores estratégicos da economia - que hoje dão lucros extraordinários aos seus donos privados - em nome do curto prazo, comprometendo o futuro do país. Pois há apenas uma diferença em relação ao que fez o governo Dilma: o tamanho da privatização, que agora pode ser considerada a maior da História. Os benefícios de curto prazo que são agora incorporados ao ufanismo oficial cobrarão o seu preço das gerações futuras.
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