“Mercado” ou a ignorância ao alcance de todos

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Todo processo administrativo passa por três etapas: o planejamento, a execução e a avaliação. Podem ser mais detalhadas, implícitas ou explícitas, mas elas sempre existem. Sem elas o fracasso é certo, o prejuízo, garantido. 

O mundo ocidental, para este artigo, será definido compreendendo a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América (EUA), e se forma na concepção capitalista a partir do século XV. Ele se desenvolve com as crises do feudalismo, onde se inserem pestes e as cruzadas católicas, e ganha força com a descoberta da América – pela apropriação das riquezas minerais (ouro e prata, principalmente) e vegetais (batata, baunilha, quinina, cacau, milho e outros) – e com a escravidão dos africanos. 

Portanto a “lição” de Ludwig von Mises (“As seis lições”, tradução de Maria Luíza X. de A. Borges, do original inglês “Economy Policy: thoughts for today and tomorrow”, para o Instituto Liberal, RJ, 1993), de que o capitalismo surge da demanda, “existe em todos os países onde há um sistema de produção em massa extremamente desenvolvido”, é absolutamente falsa. 

Como igualmente errônea é a pressuposição de Mises, difundida como verdade, que “as classes governantes”, “os estadistas” não sabiam o que fazer diante de adversidades, e foi “um grupo de pessoas capaz de produzir, de inovar”, para “satisfazer a necessidade de todos” que trouxe a solução. Seres extraterrenos, novos deuses descidos do Olimpo, benfeitores da humanidade? 

Apenas estes novos dirigentes e seus prepostos promoveram a apropriação, com extermínio das populações originárias das Américas (o maior genocídio na História do Mundo) e a escravidão (trazida com lucro dos habitantes da África subsaariana), promovendo o que o capitalismo faz com perfeição: a acumulação de capital. 

Saiamos da fantasia para a realidade. Examinando a realidade latino-americana, Theotonio dos Santos (“Socialismo ou fascismo”, Editora Insular, Florianópolis, 2018) esclarece que “o caráter expansivo e as dimensões das empresas entram progressivamente em choque com as limitações dos mercados internos, com as estruturas exportadoras e o autoconsumo”. 

Por que o mercado da América Latina é limitado? Porque foi onde a escravidão perdurou por mais tempo. No Brasil, ela ainda existe nas formas de trabalho sem qualquer garantia dos “microempreendedores individuais” (MEI), dos empregos “uberizados”, e das revogações das leis trabalhistas e previdenciárias, que ocorrem desde 1990 até este 2022, com maior ou menor frequência e intensidade. 

Pode-se afirmar, sem receio de incorreção, que o Brasil inicia sua trajetória de Nação Independente, a partir de 1930. E o 7 de setembro de 1822, perguntará, motivado pelos festejos do bicentenário, o atilado leitor? 

Devemos distinguir as independências e as soberanias. Um país pode obter sua liberdade política, ou seja, passa a escolher seus governantes, pelo voto ou pela sucessão dinástica. Mas ele tem a restrição de decisão, imposta pelo exterior, quer pela força militar que garante a manutenção da liberdade política, quer pela econômica, que afiança os recursos para existência do país e seus dirigentes, quer pelo psicossocial, que dá a segurança espiritual, o sentimento de autonomia, pelo credo ideológico que a sociedade está imersa. 

Porém, em todas estas condições não existe a Nação Soberana mas o Estado Servil (José Walter Bautista Vidal). 

O que ocorreu em 24 de outubro de 1930 foi a Revolução Brasileira. Políticos, militares, intelectuais, profissionais liberais, operários, estudantes, homens e mulheres em todo País se revoltaram com a submissão do Brasil a interesses estrangeiros, com a estagnação econômica, tecnológica, com a falta de autonomia decisória dos dirigentes e se levantaram com armas e coragem para constituir o novo País: a Nação Soberana. Em 3 de novembro, Getúlio Dornelles Vargas assume interinamente a presidência do País. 

Duas decisões demonstram a vontade e a capacidade soberana: a criação, em 14 de novembro de 1930, do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública e, em 26 de novembro de 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e do Comércio.  

Pela primeira vez, o trabalho ganha a proteção do Estado, é o fim da escravidão. Passa a ter a garantia legal, o que se concretiza, em 1º de maio de 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), iniciativa de brasileiros humanistas e progressistas e da organização dos trabalhadores, que o Ministério impulsionava e abonava.  

Muitos anos depois, no período denominado da redemocratização, fazendo coro a “intelectuais uspianos” que combatiam o Estado Nacional, sindicalistas brasileiros dirão que a CLT era o Ato Institucional (Instrumento dos Dirigentes nos Governos Militares, 1964-1985) dos trabalhadores. Ou demonstravam ignorância ou má-fé, como muito em breve, com o “mercado” assumindo o governo brasileiro, todos constatariam. 

A legislação previdenciária embora mais antiga, beneficiando os funcionários dos correios, da imprensa nacional, das estradas de ferro, da marinha, da casa da moeda e da alfândega, teve, em 1923, a Lei Eloy Chaves criando o sistema das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP), com extensão a várias categorias profissionais até 1934. Com a nova Constituição, as CAPs foram substituídas pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), com o custeio tríplice, dividido entre o empregador, o empregado e a União. 

Entre 19 de abril de 1890 e 30 de outubro de 1891, para atender ao positivista, republicano e militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães, o governo do Marechal Manuel Deodoro da Fonseca (15 de novembro de 1889 a 23 de novembro de 1891) criou o Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Fora a primeira vez, e por muito breve período, dezoito meses, que o Estado Brasileiro assumia a gestão da educação. 

Educação, saúde e trabalho significam parte importante da cidadania. A cidadania é dever do Estado, para que possa ser universal e independer da condição do habitante do País. Em todos os países que prezem o valor da vida e a condição de existência profícua de seus filhos, as questões da cidadania – trabalho, saúde, educação, habitação e mobilidade urbana – são responsabilidade do Estado Nacional. O “mercado”, quando atua, é de modo complementar, subordinado às diretrizes do Estado. 

No início deste artigo, afirmamos que planejamento, execução e avaliação estão presentes em toda ação administrativa. O Estado sempre assumirá o planejamento e a avaliação das ações da cidadania, e de maneira a não se deixar conduzir pelas questões do lucro financeiro. O lucro é o bem estar da população; não existe maior para o País. 

A cidadania é garantia do amanhã, da segurança do presente e no futuro, da pessoa e seus haveres. Um povo sem cidadania é sujeito aos mais extremos comportamentos, à intranquilidade e incerteza que transforma irmãos em inimigos. Por isso, para encobrir as falácias do “mercado”, da ideologia neoliberal, que se elogia a competitividade, mesmo sabendo pela teoria administrativa que a solidariedade produz maiores e mais duradouros resultados. 

Outro “papa” neoliberal, além de Mises, é Friedrich A. Hayek (“O Caminho da Servidão”, tradução de “The Road to Serfdom” por Leonel Vallandro, para o Instituto Liberal, RJ, 1984) que confunde código ético com estrutura administrativa. Lê-se no livro citado: “que se deve permitir ao indivíduo, dentro de certos limites, seguir seus próprios valores e preferências em vez dos de outrem; e que, neste contexto, o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios. É esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas ideias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a conduta, que constitui a essência da visão individualista”. 

Excluídas as imprecisões conceituais, que surpreendem num doutor em direito e em ciências políticas, professor na Universidade de Chicago e na Escola de Economia de Londres, o que propõe Hayek é a guerra permanentemente entre os indivíduos. A liberdade absoluta dos autoproclamados liberais é uma patologia. Nenhum homem pode agir em desacordo com a sociedade. O convívio é próprio da natureza gregária, da união indispensável para superar problemas causados pelas condições geológicas e geográficas que modificam a própria vida.  

Também a ausência de planejamento, do caminho a trilhar, é um convite à corrupção, ao suborno, à chantagem que atinge seus pontos mais elevados no Brasil sob os governos do “mercado”. 

O brasileiro Alberto Guerreiro Ramos foi o mais profundo analista da organização e da administração da sociedade humana. Observou as características que davam respostas diversas para problemas que, apenas aparentemente, eram idênticos, pois variavam conforme as condições físicas e culturais onde surgiam. Sua obra constitui um sólido referencial para análise do Estado Nacional Brasileiro. Dela destacamos: 

a) o desejo de poder inspirou estruturas organizacionais. Por conseguinte, não existe um modelo universal e geral, existem modelos mais adequados para determinados poderes. O “mercado” exige um sistema frouxo de controle e mutável de avaliação, pois não tem compromisso com a situação das pessoas, apenas com o lucro financeiro dos seus dirigentes, muitas vezes residentes fora dos limites do Estado Nacional. Também tem planejamento pouco eficiente, pois os objetivos explícitos não correspondem aos interesses do poder (ver, “Mito e Verdade da Revolução Brasileira”, 1963; “Administração e Contexto Brasileiro”, 1966; e “A Nova Ciência das Organizações”, 1981); 

b) a isonomia é um conceito que se impõe nas organizações. Já era descrito por Aristóteles (“A Política”, Livro I). Esta prática associativista permite a constante atualização, a mais ampla participação nos processos decisórios, aumentando a sua adequação e o tempo de implementação, e gera uma autogratificação entre os envolvidos; 

c) a dimensão das estruturas diz mais respeito à intensidade das relações diretas do que o porte, limites máximos e mínimos de participantes. Daí o corolário da intensidade em função dos objetivos, os empreendimentos corporativos, as propriedades coletivas, os recursos utilizados; 

d) por fim a questão da cognição. Os modelos sistêmicos exigem grande diversidade de tecnologias integradas, sendo a compreensão abrangente uma imposição de eficácia. Porém as pessoas têm percepções conforme seus desenvolvimentos e não se deve promover exclusões pelas diferenças. Assim fortalece a habilidade administrativa para colocar estas integrações de diversos universos cognitivos numa possibilidade efetiva, onde os aspectos psicológicos ganham especial relevância. Ou seja, o super-homem neoliberal é um coletivo integrado de ações solidárias e não competitivas. 

Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado. 

 

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Author`s name Pedro Augusto Pinho