Mário Maestri
Mesmo sendo de amplo conhecimento o conservadorismo de António Risério, suas investidas sobre a questão negra não deixam de ter utilidade. Elas levantam, vez e outra, espinhosas questões, jogadas para debaixo do tapete, sobretudo pelo transbordante movimento identitário negro e seus apoiadores. Questões sobre as quais a esquerda, que se reivindica do marxismo, se comporta, mais comumente, como os “três macaquinhos sábios” - não vi, não ouvi, não falo nada sobre elas. Espera, assim, escapar dos efeitos deletérios sobre seu eleitoralismo, caso avance a crítica radical que exige o identitarismo.
Não que as provocações do midiático antropólogo contribuam para esclarecer o que, aqui e ali, desvela pertinentemente. Ao contrário. Ele abre frestas na janela, como quisesse iluminar, para fechá-las rapidíssimo, lançando seus leitores em ainda maior escuridão. E são pífias as respostas, de intelectuais negros identitários e de seus “companheiros de viagem” brancos, às revelações fugidias de Risério, de realidades de sentidos por ele cuidadosamente encobertos. Em geral, limitam-se a um rosário de impropérios contra o enunciador —alguns merecidos— e repetições de lugares comuns, tidos como axiomas, contra seus enunciados, em alguns casos, pertinentes, ainda que sempre pernetas.
Causou e segue causando enorme reboliço o recente artigo “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”, publicado, em 15 de janeiro de 2022, na Folha de São Paulo, que abre amiúde suas páginas para o midiático antropólogo e outros articulistas rançosos. Como abriu generosa, desde 1977, ao finado Olavo de Carvalho. Desta vez, Risério meteu a mão de saída em enorme vespeiro, como é de seu agrado. Afirmou o evidente — que a negação de racismo por parte de negros —“racismo negro”— é uma fantasmagoria ideológica. Que é um daqueles óbvios ululantes, fulminados pelo abecedário do consenso racialista dominante, que exige respeito sob pena de cancelamento e lapidação dos que não o soletram.
Para começo de conversa, a negação de “racismo negro” contra “branco” é uma sandice identitária que conquistou foro de verdade inquestionável, ao se apoiar na negação axiológica do dito “racismo reverso”. Uma categoria que já traz embutida a proposta impertinente de que “racismo” seria sinônimo de “racismo anti-negro”. O grande argumento em prol dessa tese esdrúxula é que o racismo e seu exercício só podem se dar por parte de comunidades dominantes sobre comunidades desprovidas de poder político ou econômico. Portanto, no caso em questão, por parte de brancos sobre negros.
Em palavras simples, “racismo” é a crença na inferioridade de indivíduo devido à sua “raça”, “etnia”, “casta”, “religião”, etc., seguida em geral de atos positivos. Fenômeno social, as concepções racistas conscientes e inconscientes constituem parte da cultura da sociedade, determinando-a em formas e em graus diversos. É fato incontestável a existência de culturas e práticas racistas, com destaque para as anti-negros, anti-judeus, anti-árabes, anti-ciganos, anti-indígenas, anti-orientais e por aí vai, em um desdobrar sem fim. Mais comumente, diversas culturas racistas coabitam em uma mesma sociedade, umas fortes, outras mais fracas, como é o caso do Brasil.
Antônio Risério apoiou sua afirmação na enunciação de fatos conhecidos, com destaques para os ocorridos nos Estados Unidos. O que, de per si, registra diversidades entre as relações raciais, aqui e lá, também negadas comumente pelo identitarismo. Relatou ataques sobretudo de gangues de jovens negros, exclusivamente a indivíduos brancos, no metrô de Nova Iorque, no Brooklyn, no Michigan, como expressão de ódio racial. Referiu-se a organizações, lideranças e ideólogos negros —Nação do Islã, etc.— que propõem a eliminação de brancos retoricamente. A enfática afirmação de Risério a um difundido racismo negro anti-judaico estadunidense constituiu sobretudo um elogio marginal ao Estado racista israelense, associado a ataque aos palestinos. Um discurso sempre retribuído com dividendos ideológicos conservadores.
São racistas as razões imediatas dos atos descritos por Risério, realizados por indivíduos que não possuem autoridade e poder sobre suas vítimas, a não ser a do exercício da violência, no caso, agressões e assaltos. Qualquer um exerce poder sobre nós, ao nos apontar um 38. O antropólogo poderia ter citado casos de racismo soft : famílias negras que não aceitam casamentos de filhos com brancos, com latinos, com asiáticos, etc. De clubes, associações, escolas, etc. frequentadas exclusivamente pela comunidade negra, sobretudo das classes médias e ricas, fechados para membros de outras etnias, etc. São fatos incontestes, com destaque para os Estados Unidos.
Nas ciências sociais, os fenômenos devem ser identificados, descritos, contextualizados, hierarquizados, para, através da aplicação de processos cognitivos pertinentes, serem compreendidos e explicados, para serem combatidos, caso possuam caráter social patológico. Karl Marx lembrava: “Se a aparência e a essência das coisas correspondessem, seria desnecessária a ciência.” É tudo que Risério não faz, conscientemente. Para ele, a aparência dos fatos brutos se confunde com a sua essência, quando interessa a sua pregação conservadora. Negando-se a hierarquizar os fenômenos, Risério jamais assinala que o racismo anti-negro é cultura e prática histórica multitudinária, de amplíssimo alcance e sequelas, impossível de ser comparado a atos isolados e residuais de racismo anti-branco, de baixa incidência e ainda menores consequências.
Em um sentido lato, racismo “negro” contra o “branco” foi comum na história da escravidão colonial americana, com caráter não raro revolucionário. Em inícios do século 19, em revoltas de cativos africanos baianos, planejava-se matar ou escravizar brancos e mulatos, visualizados como agentes da opressão social. Na mesma época, o mesmo ocorreu quando da gloriosa revolução haitiana. No Haiti, o massacre de escravistas brancos e mulatos foi o caminho necessário para a conquista da liberdade e da construção do primeira nação americana livre da escravidão. O ódio ao “branco” era a figuração com que a luta pela liberdade se apresentava nas consciências dos sublevados, em forma quase inelutável. Entretanto, a confederação dos Quilombos de Palmares aceitou, como refugiados, mulatos e homens brancos livres que ali se apresentaram desgarrados.
O atual ódio anti-branco estadunidense é comumente reação alienada de comunidade negra historicamente explorada, segregada, marginalizada, violentada, agredida. E foi o Estado capitalista USA que militou para que esse ódio não se convertesse em consciência e organização política. Ele promoveu sempre a indigência cultural e educacional das comunidades marginalizadas e exploradas, com destaque para afro-descendentes, nativos, chicanos, etc. Com o mesmo sentido, financiou e apoiou as correntes pequeno-burguesas negras identitárias e colaboracionistas e perseguiu, reprimiu, prendeu e assassinou as direções negras classistas, socialistas, marxistas. Um identitarismo que propunha e avançava uma promoção de fachada, abandonando de todo as grandes comunidades exploradas e desassistidas. Em inícios dos anos 1980, essas práticas e concepções ianques foram exportadas para o Brasil, alcançando um imenso sucesso nos dias atuais.
Risério se espanta que jovens negros, nascidos não raro em famílias uniparentais; de formação cultural e profissional precária; desempregados, vivendo em bairros e moradias degradadas, do sub-emprego e da pequena delinquência; bombardeados pela sociedade de consumo e pela mitologia do vencer ou morrer (winner/loser), ressintam-se vendo coreanos —e outros orientais—, apenas chegados, progredirem no comércio a retalho em bairros negros e pruri-raciais. E, sobretudo, expliquem o sucesso por eles alcançados como devido a pretensas cupidez, rapacidade, esperteza, desonestidade, etc., vistas como características raciais de tais comunidades. Comerciante orientais não raro de cultura pouco universalista, voltados sobre si, apenas balbuciando em inglês.
Nos USA, como no Brasil, a crescente naturalização da brutalização social, pelo capitalismo em estágio senil, resulta na introjeção das múltiplas faces da violência por largas facções da população. Grupos sociais que são os primeiros a sofrer as sequelas quotidianas da banalização da crescente barbárie social. Realidade gerida pelo Estado e pela sociedade dominante com instrumentos e mecanismos tradicionais e novos, diretos e indiretos — a polícia; a prisão; a droga; a religião; a televisão; a legislação trabalhista, penal, fiscal, etc.; a cultura do cidadão nascido bom ou mau, etc.
Risério investe firme pela via conservadora —que lhe assegura a ampla midiatização— ao se referir à origem e ao sentido do identitarismo negro, por ele atacado desde um tênue mas claro viés supremacista branco. Sem outra possibilidade, é obrigado a apontar certeiro para a origem do identitarismo negro brasileiro, os Estados Unidos, ao propor sua divulgação pela “universidade e a mídia norte-americanas”. Mas, ao mesmo tempo, dispara em sentido contrário, ao afirmar como o objetivo do “discurso antirracista”, projeto “supremacista” do “movimento negro” e da … “esquerda”. Em verdade, segundo ele, o objetivo desse movimento não seria conquistar posições na sociedade, na política, no governo. Risério assusta seu povo branco conservador afirmando: “Militantes pretos (…) querem o poder.” (Destacamos) Revive o terrível medo dos escravistas do passado de insurreição servil que transformasse o Brasil em um Haiti falando português.
Não há dúvidas sobre a origem do identitarismo negro, nos USA, como instrumento de neutralização da organização e da luta de classes anti-capitalista das classes oprimidas, muito logo exportado para o Brasil, sobretudo. Segundo essa visão de mundo, a luta não é pelo controle e domínio dos grandes meios de produção, isto é, pelo controle do capital, mecanismo estrutural de reprodução da opressão e da desigualdade social. A luta é de pretos contra brancos, todos eles privilegiados. Mesmo o que vive, acampado na rua, explorando dois grandes coletores municipais de lixo, diante da porta de entrada de meu edifício, em Porto Alegre. A luta é superestrutural, contra um racismo proposto como estrutural, apontado como o alfa e o ômega dos mecanismos da desigualdade social, mesmo ali onde, no Brasil, a população negra é minoritária e os explorados são sobretudo brancos. A proposta da contradição racial, cultura, e não de classe, material, como instrumento básico e estrutural da opressão social, foi refinada e divulgada sobretudo pelo imperialismo estadunidense. E teve e tem sua ampla difusão, com recursos milionários, através do Departamento de Estado, da CIA e da inocente e magnânima Fundação Ford. Essa afirmação, já acusada de antiamericanismo primário e delirante, tem sido confirma ad nauseam por estudos acadêmicos apoiados em documentação primária estatal estadunidense.
Em 2019, o historiador Wanderson Chaves, doutor em História Social pela USP, publicou precioso trabalho sobre A questão negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1850-1970). Esperamos que, em sucessivos pós-doutoramentos, esse historiador espiche o arco cronológico de seu estudo até os dias de hoje! No livro, descreve os projetos, os financiadores multimilionários, a participação do capital monopólico estadunidense e do Departamento de Estado, através da CIA e da Fundação Ford, no mundo e no Brasil, na difusão —não apenas— do que hoje definimos como identitarismo negro. A política definida foi de abandonar a população pobre, para a qual o imperialismo não tinha e não tem nada a oferecer. E centrar as atenções e investimentos nos intelectuais - historiadores, cientistas sociais, antropólogos, jornalistas, comunicadores, etc. No caso da população negra, praticamente havia que formar uma elite, já que era muito limitada. Ela deveria expressar, em um viés identitário, uma classe média frágil, a ser fortalecida. E, sobretudo, neutralizar, com a ajuda da repressão, as direções radicalizadas da população negra marginalizada. Projeto desenvolvido há bem mais de meio século nas terras do Tio Sam, sem qualquer avanço real para a grande população negra explorada. O mesmo projeto tem sido aplicado no Brasil, onde liderança negra identitária caiu literalmente dos céus, servindo-se de paraquedas ianque.
Para mim, está sendo uma delícia ler o trabalho do Wanderson Chaves. Em inícios dos anos 1980, no finzinho da ditadura militar, no Rio de Janeiro, quando professor do Curso do PPGH emHistória da UFRJ, vi chegar talvez o primeiro recrutador explícito da Fundação Ford-CIA, no Rio de Janeiro, para o meio estudantil. Ele oferecia bolsas de estudos nos USA exclusivamente para universitários negros. O que na época era um escândalo, para uma esquerda de princípios classistas, universalistas e internacionalistas. Tentei aproximação para me informar melhor, quando o encontrei, duas vezes, no Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Cândido Mendes, ao visitar meu grande amigo, o saudoso africanista José Maria Nunes Pereira. Não teve jeito. O missionário ianque, de minha idade, era escorregadio como uma enguia. Pediu licença e desapareceu. Nessa época eu era quase uma Avis rara. Trabalhava com a escravidão e com a África Negra Pré-Colonial, e apenas chegara do exílio. Era, portanto, um esquerdista carimbado.
Nesse anos, Abdias do Nascimento, ex-integralista, desembarcava no Brasil, dizendo-se exilado nos USA, disparando sobre a esquerda, que lambia suas feridas, levantava a cabeça, procurava se reorganizar, aproveitando a não muito respeitada “abertura” da ditadura militar. Abdias, ex-integralista, proclamou a guerra racial no Brasil, o combate aos brancos e mulatos e a qualquer miscigenação E, a seguir, foi se aconchegar sob a asa do branquela Leonel Brizola e do PDT, que lhe garantiram uma feliz, longa e remunerativa carreira parlamentar, sem jamais contar com o eleitorado para tal. Era ruim de teoria e de voto. Clóvis Moura, autor de obras referencias sobre a formação social brasileira, liderança anti-racista no Brasil desde sempre, tendo aguentado no Brasil os anos ditatoriais, por ser marxista, morreu em 2003, semi-esquecido e literalmente cancelado pelas vertentes negras identitárias.
Em 16 de dezembro de 2017, um anos após o golpe, Risério publicou artigo, sempre na Folha de São Paulo, que causou também enorme arranca-rabo, ao revelar, em seu viés eternamente conservador, a contradição do ataque ao “mulato”, por parte de Abdias do Nascimento, já falecido. Apontou, corretamente, a evolução de Abdias do “fascismo integralista para o racialismo ´made in USA”, no artigo “Movimentos negros repetem lógica do racismo científico, diz antropólogo”. O artigo comentava a faixa levantada, em manifestação, no 20 de novembro, na avenida Avenida Paulista, propondo: "Miscigenação também é genocídio”. Essa era, lembrava, uma das teses dos livros inaugurais confusos, para não dizer mais, de Abdias do Nascimento. E apontou a contradição do líder “made in USA”, entre o que pregava e o que vivia, por ter desembarcado dos Esteites trazendo pelo braço, como esposa, uma estadunidense totalmente branca. Lembrou que a tese da conspiração pelo branqueamento da população brasileira através da mestiçagem era uma baboseira, refutada pelo próprio Kabengele Munanga, importante intelectual e liderança negra. Na mestiçagem, meu querido amigo africanista congolês, radicado há décadas no Brasil, via uma grande qualidade, não um defeito, de nosso povo.
A contradição apontada por Risério era indissolúvel e nascera de uma apressada aclimatação ao Brasil, por Abdias do Nascimento e seus assistentes, de vertente identitária ianque dura. Muito logo, o identitarismo resolveu esse impasse ao promover o mulato, mesmo o quase branco, a totalmente negro, negando assim todos os seus ascendentes não-negros! Procedimento aleatório que resultou em um irreconhecível Carlos Marighella, todo negro, filho apenas de sua mãe, sem pai, com um estranho sobrenome italiano caído das nuvens! Operação aplaudida em alguns casos ao nível do orgasmo por intelectuais que se reivindicam da esquerda marxista. Marxismo que, partindo do princípio que apenas “a verdade é revolucionária”, abomina os retoques e manipulações, pequenos e grandes, dos fatos e da história, por motivos ideológicos, políticos, etc.
A origem, os financiadores e os objetivos do identitarismo negro são atualmente límpidos, mas seguem dominantes, apoiados e sustentados pelas forças e relações sociais conservadoras, hoje hegemônicas. Avança a proposta de emancipação de uma elite negra, despreocupado com a grande população marginalizada de brasileiros com afro-ascendência. Sabota a luta pelas reivindicações universais, horror do grande capital, — trabalho, salário, saúde, escola, moradia para todos, não para os poucos sorteados na Loteca identitária.
O “empreendedorismo negro” é referência paradigmática do alpinismo social identitário na sociedade capitalista. Recentemente, um professor da rede pública estadual e militante negro, daqueles de antigamente, no estilo raça e classe, foi convidado para uma dessas reuniões. Saiu logo, discretamente, após ser olhado torto ao perguntar se os “empreendedores negros” pagariam melhor seus trabalhadores, brancos e pretos, que os “empreendedores brancos”.
Jamais no Brasil as reivindicações identitárias negras receberam tamanho apoio da Justiça, do Congresso, do IBGE, das Universidades, da grande mídia, de grandes empresas nacionais e multinacionais. Entre elas, a Nike, Twitter, Citigroup, Ambev, Americanas, Coca-Cola Brasil, Colgate-Palmolive, CSN, Danone, DHL, Gerdau, Carrefour Brasil, Heineken, JBS, e por aí vai. Paradoxalmente, agora, como jamais nas últimas décadas, a população trabalhadora e marginalizada, com destaque para a negra, mas também a parda e a branca, conheceu condições tão terríveis de existência. E segue sofrendo golpe sobre golpe, sob um silêncio ensurdecedor.
Mário Maestri, 73, é historiador e professor colaborador do PPGH da UPF. [email protected]
Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni
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